Foi a palavra que me surgiu de forma espontânea, tremulando com toda a sua carga polissémica, assim que abri a página em branco do processador de texto, à laia da libertação automática de impulsos de Breton, para escrever alguma coisa e tentar caracterizar a obra de ficção literária que acabara de desfrutar por completo havia pouco mais de vinte e quatros horas. [Este texto permaneceu encerrado na pasta de arquivo “não publicado”, que guarda os inúmeros ficheiros reprimidos deste blogue, há quase uma semana; um terrível ataque de pudor sem origem e razão certas, levaram-me a este indescritível aferrolhamento; bom, angústia, talvez advinda de uma lesadíssima auto-estima, ultrapassada].
A obra. Trata-se de As Três Vidas, o último romance publicado pelo jovem escritor lisboeta João Tordo (n. 1975) – o seu terceiro, depois de O Livro dos Homens sem Luz (2004) e do fascinante Hotel Memória (2007).
Fôlego: desmedido, em termos literários, em inspiração; meticuloso, ritmos narrativos bem medidos, uma urdidura tecida em filigrana, extraordinária gestão de expectativas; exigência, sem intervalos e outros intoxicantes, de uma leitura atenta, de uma paz de espírito que nos retire o complexo de culpa do consumo de tempo originado por uma vontade voraginosa de o ler de uma só assentada.
Uma abertura suficientemente cativante, auxiliada por um frontispício denodadamente ilusório:
«Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como um espectáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir à tentação de relembrar o tempo em que, por força da necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambulismo.» (pág. 11)
O protagonista, narrador omnipresente de uma história pontualmente feliz, matizada de uma pungente e indelével inquietude, uma pátina de melancolia, vivida durante um quarto de século, é um banal jovem lisboeta nascido em 1960, que terminando o liceu no início da década de 1980, procura emprego, após um hiato estival de indolência, como meio de ajudar a mãe, mentalmente perturbada após a morte prematura e trágica do pai, e a irmã de dezoito anos. Encontra-o, num anúncio de jornal. Irá trabalhar na Quinta do Tempo, situada nas cercanias de Santiago do Cacém, onde o espera um jardineiro muito especial, Artur, e um patrão esquivo e enigmático, de seu nome António Augusto Millhouse Pascal.
O trabalho é suficientemente repetitivo e enfadonho, que um cheque chorudo no final do mês não dá azo à desistência; catalogar e indexar as fichas de uma série de clientes que frequentam a Quinta, desconhecendo-se o objecto e a missão dos serviços que lhes são prestados.
Intercalada com o entra e sai de pessoas misteriosas de todas as nacionalidades, que de certa forma parecem ter estado ligadas a um passado brutal, surge a história dos três netos de Millhouse Pascal que calcorreiam os jardins da casa aos fins-de-semana – estudam em Cascais durante a semana num colégio inglês – de onde se destaca a jovem Camila, que depois da centelha inicial, despertou um fogo impetuoso e inextinguível no coração do pobre narrador, a que se junta o estranho desaparecimento de Adriana, a filha do patrão, que, segundo a própria filha Camila, apesar da integral perda de contacto com a progenitora, se encontra em Nova Iorque a praticar funambulismo.
Está dado o mote para o desenvolvimento de uma narrativa que, com a seus momentos decisivos, fatalmente directores das vidas dos personagens e do próprio local de todos os mistérios no Alentejo, conduzem o leitor a um labirinto emblematicamente borgiano, tão bem utilizado por Auster nas suas narrativas do acaso, a que se junta o insólito arrevesado tipicamente kafkiano; a obstinação sem fim à vista.
Borges, um leitor atento e apreensivo de Kafka, referia-se-lhe como o escritor da postergação infinita – aludindo ao paradoxo de Zenão de “Aquiles e a Tartaruga”, da busca perpétua –, cuja presença o autor argentino identificava com maior acuidade em dois dos seus três (inacabados) romances, O Castelo (Das Schloss, 1925) e O Processo (Der Prozess, 1925), e em alguns dos seus contos, onde aquele destacava a narrativa curta “A construção da muralha da China” (Beim Bau der Chinesischen Mauer, pub. 1931) como o paradigma dessa postergação, de infinito múltiplo.
As Três Vidas, o último romance de João Tordo, tem, de certa forma, matizes kafkianos na estrita medida do qualificativo definido por Borges, implicando, para isso, que da leitura da obra se tivesse verificado o uso (mais ou menos consciente) das seguintes premissas: a subordinação e o infinito – que Borges afirmava serem obsessões do jovem Kafka, e que, de certa forma, influenciarão, definitivamente, a sua extensa obra, plena de circularidades e perpetuidades.
A subordinação concentrada no personagem aglutinador de toda a trama, o misterioso António Augusto Millhouse Pascal, leva o narrador a uma viagem detectivesca no espaço e no tempo, ou seja, servindo-se do cruzamento das duas dimensões para tentar entender o alvoroço da sua situação presente. Todavia, mesmo que surjam as respostas para as suas inquietações através do achamento de determinadas pontas soltas, a que o narrador atribui a autoria ao mero acaso, a insatisfação subsiste, o convencimento da insignificância da sua existência é o obstáculo para a obtenção de uma visão geral multifacetada, que lhe escorre por entre os dedos como água, sem hipótese de a deter.
Em João Tordo, ou na sua obra, que uma simples releitura de Hotel Memória pode confirmar, não há soluções finais, nem desenlaces; existe antes a aparência de um fim, como uma imagem para dúvida existencial, para o desassossego, para a contínua dilaceração da alma.
«Se eu fosse um homem diferente, com mais imaginação, talvez pudesse acreditar – e fazer-vos acreditar – que os mistérios que perpassaram esta narrativa irão, um dia, encontrar a sua resposta; estou convencido, contudo, de que muitas coisas permanecem eternamente veladas e, com o passar do tempo, aprendi a viver com esta resignação. Por vezes, claro, é impossível evitar os enigmas que me atormentam (…); e, ao desejar sarar as minhas feridas com a lógica absurda deste mundo que, a cada hora que passa, me parece mais distante, zombando dos espíritos que ousam desafiá-lo, compreendo a inutilidade desta empreitada.» (pág. 301)
E não é este o mistério da vida?
Que se me perdoe o ar de graça com a hipérbole paradoxal, As Três Vidas é uma obra de um sufocante fôlego literário.
Classificação: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica:
João Tordo, As Três Vidas. Matosinhos: QuidNovi, 1.ª edição, Setembro de 2008, 304 pp.