sexta-feira, 24 de julho de 2009

Deserto Vermelho


Há uns dias discutia com o Vítor Neves Fernandes sobre o Mestre Antonioni. Falávamos da impenetrabilidade de alguns dos seus filmes. Hoje recordei-me do singular (porque exclusivamente antoniniano) final de Il Deserto Rosso (último filme de uma tetralogia sobre o isolamento e desmoronamento emocional, sempre com a belíssima Monica Vitti como protagonista, que se inicia em 1960 com L'avventura, prossegue em 1961 com La Notte e em 1962 com L'eclisse):
Vitti (Giuliana), no centro da desolação de um campo pestilento da refinaria onde trabalha o seu marido, é confrontada por mais um dos sagazes dilemas do seu filho pequeno, quando este lhe pergunta porque é que as chaminés deitam fumo amarelo; ela responde que o fumo é daquela cor porque está carregado de veneno; o filho então retorque, alarmado, dizendo que os pássaros que por ali passarem irão morrer; Vitti remata (e cito de memória):

«Não, os pássaros já não passam mais por ali, eles já o sabem.»

Lembrei-me das eleições que se avizinham e já vislumbro o dealbar das guerras na blogosfera e nas redes sociais a roçar o insulto, a troça e a velhacaria; de uma coisa podem estar certos (também a quem interessa?) por esse deserto vermelho, ou rosa, ou laranja, nunca mais irei passar (em perfeita eponímia com este blogue) … Já senti no meu corpo os miasmas coloridos e perfidamente sedutores (o engodo corrupto) do poder.

domingo, 12 de julho de 2009

Divagação apartidária + John Berger

Porque é que deixamos que um grupo compacto, homogéneo na mediocridade dos seus elementos - meros veneradores de uma insígnia infame -, nos maltrate, humilhe e despedace até ao nível da indigência intelectual?
Despojos da prostituição do poder político. A ditadura dos partidos aniquilou de vez a hipótese de alcance de uma qualquer visão remota de Democracia. E eles que nos enchem os ouvidos com o "dever cívico"… votai!… dever cívico…
Mas existe "bem comum" para que possa considerar-se o voto como um gesto altruísta a favor do bem-estar da comunidade em que, sem voto, nos inseriram? Grupos de interesse… gentalha arrivista… chusma de necrófagos que se aproveita dos pedaços da alma que se vão extinguindo com a implacável voragem da desesperança que se assenhoreou de um povo exânime.
As leis por encomenda, por John Berger (título de minha autoria, convenientemente adequado ao ambiente político de podridão, cujo cheiro nos tolhe o discernimento):
«Por muito boa que seja uma lei, ela é invariavelmente inapta. É por isso que a sua aplicação deveria ser disputada ou questionada. E a prática de fazer isto corrige a sua inépcia e serve a justiça.
Existem leis más que legalizam a injustiça. Tais leis não são inaptas, porque elas reforçam, quando aplicadas, exactamente aquilo que se pretendia que reforçassem. E é preciso resistir-lhes, é preciso que sejam ignoradas, desafiadas. Mas é claro, compañeros, que o nosso desafio a elas é inapto!»
John Berger, De A para X. Cartas de Amor, pág. 36
[Porto: Civilização, Abril de 2009, 207 pp; tradução de Isabel Baptista; obra original: From A to X. A Story in Letters, 2008]

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Bellow, a indiferença e o meu pathos




A propósito de um episódio que se sucedeu comigo hoje através de e-mail, que me magoou profundamente pela "Indiferença" (grafada propositadamente com maiúscula) de uma amizade que julgava existir apesar da distância física (encurtada por estas diabólicas redes sociais), recordei-me de um dos personagens mais marcantes de Saul Bellow, Asa Leventhal, e da salutar reprimenda que um dos seus melhores amigos, Dan Harkavy, lhe deu, como se o quisesse acordar para um mundo que não se condói com as nossas pequenas emoções… sou assim, é o meu pathos, que me desculpem aqueles que o conseguirem.



(Levou algum tempo a encontrá-la… já é por demais conhecida a minha mania ou fórmula enquanto leitor: "sublinhar=profanação")



«Se não te importas, Asa, há uma coisa que quero sublinhar e ainda não percebeste. Não somos crianças. Somos homens vividos. É quase pecado ser tão inocente como tu és. Pensa. Está bem? Queres que o mundo inteiro goste de ti. Mas existem fatalmente pessoas que não gostam. Como eu gosto, por exemplo. Não te chega que algumas pessoas gostem de ti? Não aceitas o facto de que algumas pessoas nunca hão-de gostar de ti? (…) É uma questão de vida ou de morte?»
Saul Bellow, A Vítima, p. 75 
[Lisboa: Texto, 1.ª edição., Março de 2006, p. 75; tradução de Sofia Gomes; obra original: The Victim, 1947]