domingo, 30 de novembro de 2008

Responsabilidade e indiferença*

«Reflecti acerca disso ao longo de anos, e a única explicação mais ou menos razoável que encontrei foi esta – há qualquer coisa errada em mim, um qualquer defeito no meu mecanismo, uma peça avariada que impede a máquina de funcionar em condições. Não estou a falar de fraqueza moral. Estou a falar da minha mente – da minha constituição mental. Creio que agora estou um pouco melhor, o problema parece ter-se esbatido com a idade, mas naqueles tempos, quando eu tinha trinta e cinco anos, trinta e oito, quarenta, havia um sentimento que não me largava, o sentimento de que a minha vida nunca me tinha realmente pertencido, de que eu nunca fora realmente eu, de que eu nunca fora real. E, como não era real, não compreendia o efeito que as minhas acções poderiam ter nos outros, os danos que poderia causar, o sofrimento que poderia infligir às pessoas que me amavam.»
Paul Auster, Homem na Escuridão, p. 137.
[Alfragide: Asa, 1.ª edição, Novembro de 2008, 160 pp.; tradução de José Vieira de Lima; obra original: Man in the Dark, 2008.]

*Dava um bom título para um romance de Jane Austen e até com uma boa abertura (da lavra desta mente torturada que vos escreve): É universalmente conhecido que, na posse de uma mente prodigiosa, um homem que atravessa a meia-idade deambula perigosamente pelo mundo sem tomar consciência dos terríveis actos que inflige aos que lhe estão mais próximos. (Título, talvez este: Impassiveness and Responsibility.)

Solidarizo-me...

«Jornalistas despedidos assinalam aniversário do jornal O Primeiro de Janeiro»

Não só porque nesse grupo estão pessoas que muito estimo e admiro profissionalmente, mas também pela impunidade do despotismo dos pequenos régulos que, assim que abocanham o poder, governam um espaço que julgam só seu – qual púbere irascível agarrado ao seu brinquedo – derrogando a ética e a responsabilidade empresariais.
Stakeholders, já alguém ouviu falar?...

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Hipopótamos cozidos

Em termos literários, os anos 50 do século passado foram assolados por uma turba, que curiosamente germinou numa universidade, na Columbia University, em Nova Iorque, e que rapidamente foi baptizada de Beat Generation – o termo foi usado pela primeira vez pelo próprio Jack Kerouac e posto em papel num artigo no The New York Times por John Clellon Holmes e no seu romance de 1952 (dito) iniciador do movimento, Go. Também ficaram registados na História da Literatura pelo prosónimo tardio de beatnik.
Eram bêbados, toxicómanos e sexualmente promíscuos reunidos sob o signo das artes, cujos principais representantes ainda hoje se distinguem num trio que se destacou entre os reais fundadores do movimento: Kerouac, Ginsberg e Burroughs (este último não estudou em Columbia).
Em Agosto de 1944, em Riverside Park, um dos discípulos e amigo íntimo da dupla Kerouac e Burroughs, Lucien Carr (1925-2005), então com dezanove anos, esfaqueia barbaramente David Kammerer, por alegada tentativa de violação deste último ao mais novo, que já o assediava quando Carr ainda tinha uns imberbes catorze anos. Kammerer de 33 anos, amigo de infância de Burroughs em St. Louis, foi professor e era frequentador do círculo Beat.
O corpo de Kammerer é atirado ao rio Hudson e Carr refugia-se no apartamento de Burroughs, onde encontra Kerouac, trazendo a arma do crime, ainda ensanguentada, na mão.
Parte deste episódio vem descrito no romance semi-autobiográfico de 1968 de Kerouac, Duluoz, o Vaidoso (Vanity of Duluoz) – é a última obra escrita por Kerouac, que viria a falecer em 1969 –, onde para além do herói epónimo representar o próprio autor, aparecem os personagens Lucien Carr, com o nome ficcional de Claude, e David Kammerer, travestido de Mueller:

«No momento em que vou a passar diante da St. Paul’s Chapel, no campus, e começo a descer as velhas escadas de madeira que ali existiam, eis que surge Mueller no seu passo saltitante e ávido, de barbas, na penumbra, a caminhar na minha direcção, avista-me, pergunta: – Onde está o Claude?
– No West End.
– Obrigado. Até à vista! – E vejo-o precipitar-se ao encontro da morte.
[…]
[E]is ali Claude, de pé ao meu lado, com o cabelo loiro nos olhos, a sacudir-me pelo braço. […] Ele diz “Bom, despachei o velho a noite passada.”
[…]
– Para que é que foste fazer uma coisa dessas?
– Agora não há tempo para isso, ainda tenho a navalha e os óculos dele todos sujos de sangue. Queres vir comigo, a ver como é que havemos de os deitar fora?
[…]
– Apunhalei-o doze vezes no coração com a minha navalha de escuteiro.
– Porquê?
– Ele atirou-se a mim. Disse que me amava imenso e essas coisas todas e que não era capaz de viver sem mim e que me ia matar, que nos ia matar aos dois.
»
Jack Kerouac, Duluoz, o Vaidoso, pp. 236-237.
[Lisboa: Relógio D’Água, Abril de 2008, 285 pp.; tradução de Paulo Faria; obra original: Vanity of Duluoz, 1968]

Dois dias depois, Carr entregava-se às autoridades, e Kerouac e Burroughs são presos por cumplicidade. Burroughs sai sob fiança paga pela família, Kerouac permanece na prisão por recusa terminante do seu pai em pagar aquele valor fixado pelo tribunal. Kerouac só sairá após um casamento meteórico com Edie Parker, que assim pode aceder aos fundos da herança deixados pelo seu avô e pagar a fiança ao marido – ambos anulam o casamento passado um ano. Carr, atendendo à sua idade na altura da ocorrência dos factos e da prova produzida no que respeita ao assédio permanente de Kammerer, é condenado apenas por homicídio em 2.º grau e ao internamento num reformatório entre um e sete anos, sai ao fim de dois.

Em 1945, Kerouac e Burroughs escrevem um romance a duas mãos, a que deram o título de And the Hippos Were boiled in Their Tanks (tradução literal: E os hipopótamos foram cozidos nos seus tanques), título grotesco que tem na sua origem um incêndio ocorrido no zoo de Nova Iorque onde os colossais mamíferos foram literalmente cozinhados – Consider the Hippo, poderia ter sido um título de um manifesto de defesa dos animais escrito pelo recentemente falecido David Foster Wallace, se a prática do “hipopótamo suado” tivesse alastrado às ementas dos restaurantes no mundo ocidental.

Sessenta e três anos depois, a Grove Press (nos EUA) e a Penguin (no Reino Unido) publicam o dito romance.


«WILL DENNISON*

»Aos sábados à noite os bares fecham às três da manhã, assim cheguei a casa por volta das 3:45, depois de ter comido o pequeno-almoço no Riker’s na esquina da Christopher Street com a 7.ª avenida. Atirei o News e o Mirror para cima do sofá e esbulhei-me do meu caso de seersucker atirando-o para cima deles. Eu ia direitinho para a cama.
Nesse instante, a campainha tocou. É uma campainha estridente que te trespassa, logo apressei-me pela sala para carregar no botão e abrir a porta lá de baixo. Tirei o casaco do sofá e assestei-o a uma cadeira para que ninguém se sentasse em cima dele, e meti o jornais numa gaveta. Eu queria ter a certeza de que eles ainda estariam por cá quando acordasse durante a manhã. Caminhei em direcção à porta e abri-a. Eu cronometrei o tempo preciso para que eles não tivessem hipótese de bater à porta.
Quatro pessoas entraram na sala. Agora, dir-vos-ei de forma genérica quem eles eram e como era a sua aparência, uma vez que a histórica diz sobretudo respeito a dois deles.
»
William S. Burroughs e Jack Kerouac, And the Hippos Were Boiled in Their Tanks, pp. 3-4 [tradução: AMC]
[New York: Grove Press, first edition, November, 2008, 224 pp.]

Nota: *os capítulos de Will Dennison, detective de profissão, foram escritos por Burroughs.

E assim se divertiam os beatniks, deixando os bacanais e as orgias de drogas e álcool de lado, esfaqueavam-se uns aos outros e, por vezes, há quem diga, interpretavam com afinco o papel do herói o suíço William Tell e dedicavam-se ao famoso jogo da maçã, substituindo o arco e a flecha por um revólver… é um problema de Guilhermes, enquanto um procurava salvar e salvou a mulher, o outro matou acidentalmente a sua na prática desse jogo delicioso, para confessar décadas depois que a matou intencionalmente porque já não a suportava.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Combate à memória

When I shall go
Into the narrow home that leaves
No room for wringing of the hands and hair,
And feel the pressing of the walls which bear
The heavy sod upon my heart that grieves,
(As the weird earth rolls on),
Then I shall know
What is the power of destiny. But still,
Still while my life, however sad, be mine,
I war with memory, striving to divine
Phantom to-morrows, to outrun the past;
For yet the tears of final, absolute ill
And ruinous knowledge of my fate I shun.
Even as the frail, instinctive weed
Tries, through unending shade, to reach at last
A shining, mellowing, rapture-giving sun;
So in the deed of breathing joy's warm breath,
Fain to succeed,
I, too, in colorless longings, hope till death.

Rose Hawthorne, “Death’s Eloquence”, Along the Shore (1888)

Rose Hawthorne (1851-1926), terceira de três filhos (Una e Julian) do gigante Nathaniel Hawthorne (1804-1864).

Vocês sabem do que estou a falar®…

«É o que eu faço quando o sono se recusa a vir. Deixo-me ficar deitado na cama e conto-me histórias. Podem não ser nada de especial, mas, enquanto estou dentro delas, impedem-me de pensar nas coisas que preferiria esquecer.»

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Ah, o verdadeiro “Macho… Arábico”!

Aos marialvas, aos machões, aos taberneiros, ao homem português médio (afinfador polissémico), aos bigodados, aos raybanistas de aro dourado e lente esverdeada… aos palhaços.
Se vos acháveis orgulhosos pelo entupimento diário das urgências hospitalares provocado por casuais percalços físicos conjugais; se vos consideráveis como verdadeiros átilas domésticos sempre que ultrapassáveis a soleira da porta, onde jamais o bolor voltou a crescer, descarregando no ente amado a frustração e a ignomínia diárias dos mandos e desmandos dos vossos superiores, que, desgraçadas, numa ânsia feminil, vos espera com o quente manjar dos deuses servido, a alfazema da roupa lavada e a diligente geometria da cama feita, eis que surge algo que vos fará corar de inveja, pondo a nu a profundidade da vossa incompetência autoritária intramuros.
Quando lerdes as palavras que abaixo se reproduzem, agarrai-os com força, não os deixeis fugir, e pesai-os perante a tranquila preeminência e sensatez doutrinal que veio das arábias…
Ah, meu terno, alambicado e possessivo macho latino, quo vadis?

«Os homens batem mais vezes nas mulheres do que as mulheres batem nos homens. Alá criou as mulheres delicadas, frágeis, servis e macias porque elas usam mais as emoções do que usam os seus corpos. Embora o homem possa usar o açoitamento para disciplinar a mulher, ela por vezes usa as lágrimas para o disciplinar. Para os homens, as emoções das mulheres poderão ser mais violentas do que o golpe de uma espada.
Antes de bater numa mulher, repreenda-a primeiro – uma vez, duas, três, quatro ou dez vezes. Se isso não ajudar, deverá regressar ao ensinamento “recusar partilhar as suas camas.” Assim, um marido distancia-se ele próprio da mulher na cama e na conversação. Se um marido chega para comer uma refeição e a sua mulher lhe perguntar, “Como estás?” “Queres alguma coisa?” ele não deve responder. O marido não deve dormir com a sua mulher. Ele deverá dormir noutro quarto.
Se isso não ajudar, então a terceira opção do marido é a de açoitar suavemente a sua mulher de modo a não deixar uma marca. Ele não pode desfigurar a sua cara. Bater na cara é proibido. Mesmo que queira que o seu burro ou camelo caminhe mais depressa, não está autorizado a bater-lhe na cara. Se este é o comportamento correcto nos animais, ainda o é mais nos humanos. Se o marido estiver irritado com a sua mulher – se ele lhe disser, “Cuidado, a criança caiu perto do fogão,” e ela disser, “Estou atarefada” – então o marido deverá bater na sua mulher com um palito ou com algo do género*. Ele não deverá bater-lhe com uma garrafa de água, um prato ou uma faca. Repare quão delicado é um palito quando usado para bater – isto mostra-lhe que o objectivo não é o de infligir dor. Quando bate num animal, pretende que isso lhe provoque dor para que ele lhe obedeça, porque um camelo não entenderia se lhe dissesse, “Camelo, anda, mexe-te.” Um burro não entende nada mais para além dos açoitamentos, mas para uma mulher, um açoite leve transmite, “Mulher, foste longe de mais.”
Um marido não deverá bater na sua mulher como o faria a um filho, batendo-lhe a torto e a direito. Infelizmente, muitos maridos batem nas suas mulheres apenas quando ficam irritados, e quando começam a bater, eles usam ambas as mãos e algumas vezes os pés, como se estivessem a esmurrar uma parede. Lembra-te, irmão, isso é proibido; a tua mulher é um ser humano.
»
*ou talvez, com o avanço tecnológico, com fio dental [nota simplesmente desnecessária e jocoso-especulativa deste vosso tradutor].
in Harper’s, “Beat Her Like a Lady”, November, 2008, p. 29. [tradução: AMC]

Segundo a Harper’s, que atribuiu ao texto o subtítulo Etiqueta, estas palavras foram proferidas num programa televisivo transmitido no ano passado na Arábia Saudita e no Kuwait pelo clérigo Muhammad al’Arifi. Destinavam-se a aconselhar os jovens maridos na forma de tratamento das suas mulheres.

Depois de ter testemunhado a verdadeira epifania funcional do “palito”, ainda dizem que estes árabes não são civilizados...
Imaginem só se um destes homens entrasse num restaurante português e assistisse ao triste espectáculo daquelas mãos afanadas a cuspinhar a barbela, pontuada por aquele chilreio salivar interdental.

[disclaimer: este texto demonstra cabalmente o estado de espírito (se é que ele o tem) do autor deste blogue: sem paciência, rasteiro, hortero como suelen decir os meus queridos amigos espanhóis.]

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Sátira de um exílio

A Ulisseia acaba de lançar no mercado nacional o primeiro livro da trilogia que finalizou a obra de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), escritor maldito pela sua associação ao governo fantoche do Regime de Vichy durante a ocupação alemã de parte da França entre 1940 e 1944 e pelas suas ideias marcadamente racistas, xenófobas e anti-semitas.
Trata-se de uma reedição há muito aguardada no mercado editorial português – o mesmo livro havia sido publicado pela Dom Quixote em 1992, sob o título De Castelo em Castelo, actualmente encontrava-se esgotado – que recebeu desta feita o título de Castelos Perigosos (D’un château l’autre, 1957).
Castelos Perigosos retrata, em forma de romance, escrito na primeira pessoa, o picaresco do exílio do autor entre 1944 e 1945 em Sigmaringen, no Estado Baden-Württemberg, no sudoeste da Alemanha, em companhia dos colaboracionistas do governo de Vichy, onde aquele tentava retomar o exercício da sua profissão de médico – Céline era Doutor em Medicina desde 1924, pela École de médecine de Rennes.
A trilogia completa-se com os romances Nord (1960) e Rigodon (1969; publicado postumamente), todos sob a chancela da Gallimard – romances ainda inéditos em Portugal, sabendo-se que, segundo a Ulisseia, a segunda obra da trilogia já se encontra no prelo (ou, pelo menos, na vizinhança da tipografia) sob o título Norte; esperando que a mesma editora venha a publicar num futuro próximo o terceiro volume, ampliando assim a sensatez demonstrada com a publicação dos dois primeiros.
Apesar da profunda náusea e do menosprezo que poderão assaltar a mente mais empedernida, pelo terrível passado panfletário que fizeram do autor um torcionário intelectual, associado a um dos regimes mais hediondos que a História da humanidade jamais conheceu, Céline é quase unanimemente considerado pela crítica e pelos seus pares como um dos melhores escritores franceses de todo o século XX; consideração que em muito contribuíram as suas duas primeiras e notáveis obras, ainda publicadas na era pré-Vichy: Viagem ao Fim da Noite (Voyage au bout de la nuit, 1932; ed. port. Ulisseia) e Morte a Crédito (Mort à crédit, 1936; ed. port. Assírio & Alvim).

Sem conseguir resistir à transcrição, deixo aqui ficar o primeiro e longo parágrafo da obra que deu origem a este texto:
«Para falar com franqueza, aqui entre nós, eu ainda acabo pior do que comecei… Oh! não comecei muito bem… nasci, repito, em Courbevoie, Sena… repito-o pela milésima vez… depois de muitas andanças chego ao fim da vida realmente muito mal… a idade, dir-me-á você… a idade!… pois claro!… com sessenta e três anos feitos, torna-se muito difícil refazer a vida… ganhar de novo clientela… aqui ou em qualquer outro sítio!… já me esquecia de lhe dizer!… sou médico… a clientela médica, e isto que fique entre nós, em confidência, não é apenas uma questão de ciência e de consciência… mas sim, em primeiro lugar, e acima de tudo, de encanto pessoal… encanto pessoal depois dos sessenta? com uma idade destas você ainda pode fazer de manequim no museu, de figura decorativa… talvez… e agradar a uns quantos excêntricos, curiosos de enigmas… e as senhoras? o velhote anda nos trinques, perfumado, pintado, laca no cabelo?… um espantalho! com clientela ou sem clientela, exercendo medicina ou não, ele provoca-lhes vómitos!… e se estiver podre de rico?… ainda vá!… é tolerado… hum! hum!… mas um velho de cabelos brancos e sem dinheiro?… ele que se vá embora! basta ouvir as clientes nos passeios, nas lojas… a falar de um jovem colega dele… “oh! sabe, minha senhora!… minha senhora!… que olhos! que olhos, aquele médico!… entendeu logo o meu caso!… e as gotas que ele me receitou! ao almoço e ao jantar!… que gotas!… este jovem médico é maravilhoso!…” mas espere a sua vez… espere até elas falarem de si!… “embirrento, desdentado, ignorante, corcunda, sempre a cuspinhar…” elas vingam-se de si!… a tagarelice das senhoras é soberana!… enquanto os homens parem as leis, as senhoras só se ocupam de coisas sérias: a Opinião Pública!… uma clientela médica é feita pelas senhoras!. .. não as tem do seu lado?… deite-se a afogar!… as suas senhoras são umas atrasadas mentais, umas idiotas de fugir?… tanto melhor! quanto mais tacanhas, casmurras e irredutivelmente estúpidas, mais soberanas elas são!… arrume a bata, e o resto!… o resto?… roubaram-me tudo em Montmartre!… tudo!… na rue Girardon!… repito-o e nunca o repetirei o bastante!… fazem de conta que não me ouvem… justamente as coisas que devem ouvir!… no entanto eu ponho os pontos nos ii… tudo!… uns indivíduos, libertadores e vingadores, entraram em minha casa por arrombamento, e levaram tudo para a Feira da Ladra!… tudo passado a patacos!… não estou a exagerar, tenho provas, testemunhas, nomes… todos os meus livros e os meus instrumentos, os meus móveis e os meus manuscritos!… a tralha toda!… não encontrei nada!… nem um lenço, nem uma cadeira!… até as paredes eles venderam!… a casa, tudo!… saldado!… metido ao bolso!… e ponto final! sei o que você pensa! estou a ouvi-lo!… é natural! oh! que isto não lhe acontecerá! que nada de semelhante lhe acontecerá! que tomou as devidas precauções!… que é tão comunista como qualquer milionário, tão poujadista como Poujade tão russo como todas as saladas, mais americano que Buffalo!… perfeitamente conluiado com tudo o que é importante, Loja, Célula, Sacristia, Ministério Público!… Vrunzês da nova vaga como ninguém!… o sentido da História passa-lhe pelo meio das nádegas!… irmão honorário?… claro!… criado de carrasco? veremos!… adulador da guilhotina?… he! he!»
Louis-Ferdinand Céline, Castelos Perigosos, pp. 7-8.
[Lisboa: Ulisseia, Setembro de 2008, 362 pp.; tradução de Clara Alvarez; obra original: D’un château l’autre, 1957].


Como dizia o MEC, por outras palavras, mas cujo sentido é o que se segue, se fôssemos a eliminar todos os livros de todos os autores com gigantescos esqueletos no armário – pederastas, nazis, estalinistas, assassinos, toxicómanos, bêbados, adúlteros, burlões, etc. – ficaríamos reduzidos às excepcionais obras de Samuel Beckett, que, segundo ele – e eu confirmo, por aquilo que conheço de um dos meus autores favoritos, residente no meu top-5 literário –, era um santo.
Entretanto, para quem já leu, vai lendo ou faz tenções de ler as obras fundamentais de Pound, Gorki, Bernard Shaw ou Jünger (para não sair da linha acusatória celiniana), este livro não irá legitimar, de forma alguma, a hediondez doutrinária perfilhada pelo autor francês.

domingo, 23 de novembro de 2008

Realismo e a visão cinemática

I

«Ao sabor do acaso, subia o Quartier Latin, habitualmente tão tumultuoso, mas deserto naquela época, porque os estudantes tinham partido para casa da família. Os grandes muros das escolas, como que alongados pelo silêncio, tinham um aspecto ainda mais taciturno; ouviam-se todas as espécies de ruídos calmos, batimentos de asas nas gaiolas, o fragor de um torno, o martelo de um sapateiro; e os vendedores de roupa, no meio das ruas, interrogavam com o olhar cada janela, inutilmente. No fundo dos cafés solitários, a mulher que atendia ao balcão bocejava entre as garrafas cheias; os jornais permaneciam arrumados na mesa dos reservados de leitura; na oficina das engomadeiras, as roupas estremeciam sob as lufadas do vento tépido. De vez em quando, detinha-se diante da montra de um alfarrabista; um ónibus, que descia roçando o passeio, fazia-o voltar-se; e, chegado em frente do Luxembourg, não ia mais além.»
Gustave Flaubert, A Educação Sentimental, p. 59.
[Lisboa: Relógio D’Água, Outubro de 2008, 367 pp.; tradução de João Costa; obra original: L’Éducation sentimentale, 1869.]


II

«Isto foi publicado em 1869, mas podia ter surgido em 1969; muitos romancistas soam essencialmente ao mesmo. Flaubert parece perscrutar as ruas de uma forma indiferente, como uma câmara. Enquanto assistimos a um filme não somos capazes de determinar aquilo que foi excluído, aquilo que ficou de fora das margens do enquadramento da câmara, da mesma maneira que não somos capazes de assinalar o que Flaubert decidiu não assinalar. E já não reparamos que aquilo que ele escolheu não foi, como é óbvio, casualmente procurado mas ferozmente bem escolhido, em que cada pormenor é quase coalhado no seu soro de escolhimento. Quão soberba e magnificamente isolados estão estes pormenores – a mulher a bocejar, os jornais, por ler, arrumados, as roupas a estremecer ao vento tépido.»
James Wood, How Fiction Works, p. 33. [tradução: AMC]
[London: Jonathan Cape, 2008, 194 pp.]

Nota: uma vez mais, apesar da promessa de não intervenção autoral no domingo das citações, vejo-me obrigado a deixar umas pequenas anotações para, lá está, dar o devido enquadramento, de natureza não especulativa – senão largava-as tout court –, àquilo que acima foi reproduzido.
James Wood é um admirador confesso de Flaubert, atribuindo-lhe a paternidade do realismo literário e o papel de precursor da narrativa moderna – assim como João Baptista para os vários cristos (os ungidos da modernidade), sem, no entanto perder a cabeça por uma Salomé… não, esse foi o pai do Eterno Retorno… [passagem bem demonstrativa da precariedade humorística que atravessa este blogue].
Para além das longas divagações woodianas sobre o uso e abuso do “discurso indirecto livre”, uma marca distintiva em Flaubert e em Henry James, o crítico britânico fica fascinado pela forma como o escritor francês trabalha a sua narrativa em torno da invisibilidade autoral, ou do processo em que as palavras do protagonista parecem cortar o cordão umbilical que o liga ao criador, actuando com vida própria, semelhante à vida, criando no leitor uma espécie de assombro. Nas palavras de Flaubert, retiradas do livro de Wood (p. 34,; tradução: AMC):

«Um autor no seu trabalho tem de ser como Deus no universo, presente em todo a parte e visível em nenhuma.»

Anotação à nota anterior: este capítulo do livro de Wood é verdadeiramente uma delícia para quem gosta e se interessa por Literatura (palavra intencionalmente grafada desta forma), principalmente com a riqueza dos exemplos reveladores, não só de trabalho árduo (investigação), mas sobretudo de uma memória e de uma erudição ímpares. A seguir, ainda neste registo, faz-se a comparação entre o famoso poema de Auden perante a observação do picaresco quadro de Brueghel, A Queda de Ícaro; a atitude de Andrómaca perante a recentíssima morte de Heitor, o seu marido, no Canto XXII da Ilíada; o famoso traveling narrativo de McEwan em Expiação, quando Robbie deambula no cenário de devastação na praia de Dunquerque.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Um prémio em etapas (com direito a revisão)

Ontem foram anunciados os sempre aguardados com ansiedade, embora hajam perdido o brilho de anos anteriores, National Book Awards. Na categoria de ficção, entre 271 livros a concurso, depois de seleccionados os cinco finalistas, venceu o romance-calhamaço do escritor, ecologista e monge budista converso, Peter Matthiessen, nascido em Nova Iorque em 1927.
Este é o primeiro livro de ficção que Matthiessen, pertencente ao grupo que fundou em 1953 a revista literária The Paris Review, publicou no século XXI, e apenas o terceiro se contarmos com os seus dois livros de viagens publicados no início da década.
Mas o vocábulo publicação e os seus matizes, através dos seus afixos, associado às palavras inédito e original, tem gerado um burburinho no meio literário norte-americano.
Shadow Country não é um romance original e inédito, longe disso, é uma espécie de súmula dos três anteriores romances do autor, denominados pela “Trilogia Watson”: Killing Mister Watson, 1990; Lost Man’s River, 1997; e Bone by Bone, 1999.
Com efeito, o autor nova-iorquino dedicou-se a corrigir imprecisões, a cortar e a compilar num livro contínuo três das suas obras anteriores, retirando ao seu somatório cerca de 400 páginas.
No passado dia 11, Charles McGrath escreve um artigo para o The New York Times cujo título levanta, de forma directa, a questão da originalidade como condição sine qua non para a atribuição de um prémio literário: «Serão 3 romances, revistos como um, um livro novo?».
A resposta de um dos membros da fundação que atribui o prémio foi o de atribuir a esta compilação romanesca reestruturada o mesmo valor de uma antologia poética ou de uma colectânea de contos previamente publicados reunidos num só livro. Disse não se tratar de uma mera reimpressão – o que motivaria a sua exclusão da lista à partida –, até porque a obra sofreu cortes – ou mutilações, que foram alvo de censura e de descontentamento manifestados por leitores/admiradores da trilogia na íntegra – e muitas partes foram reescritas.
Matthiessen defende-se dizendo que dificilmente existirá alguma frase no novo livro que não houvesse sofrido alguma alteração.

Sem querer passar por um puritano, intransigente e moralista, defensor da virgindade literária na atribuição de prémios desta índole e tentar minorar o enorme esforço de revisão, reestruturação e reescrita empreendido pelo autor octogenário, tal como vem descrito nos diversos artigos de crítica e de opinião a ele dedicados, creio que a atribuição do referido prémio a esta obra inquina, sem hipótese de retrocesso ou de reparação sem estridência, o espírito que lhe está subjacente: a igualdade de oportunidades para todos os autores concorrentes, materializada no esforço inventivo de contar novas histórias, do poder único de, através da arte, criar novos mundos, novos horizontes, e de os poder transmitir como novidade aos seus leitores. É tudo isto que se premeia. Deste modo, por uma questão de equidade, que se crie um National Book Award for Revised, or Rewritten Fiction.

Apesar de tudo, deixo aqui ficar um excerto da página de abertura do romance vencedor, que integrava o primeiro livro (Killing Mister Watson, 1990), que consistia na recolha de testemunhos dos assassinos do personagem semificcional Edgar J. Watson (1855-1910):


«ERSKINE THOMPSON

»Nunca tivemos algum problema com Mr. Watson, e do que pudemos assistir, ele nunca causou nenhuns, não entre os seus vizinhos. Todos os seus problemas chegavam-lhe de fora.
»E. J. Watson apareceu em Half Way Creek em 1892, trabalhou em quintas durante uns tempos, trabalhou na cana-de-açúcar. Era também um trabalhador incansável, mas ao que parece não amanhava a cana por dinheiro, era mais provável que pretendesse obter uma certa afecção da nossa comunidade. Forte, era um tipo bem-parecido na casa dos trinta, de cabelo ruivo escuro, bem constituído, largo de ombros mas sem sinal de gordura, não naqueles dias. Andava perto do metro e oitenta e três e tinha-se em boa conta, a malta topava-o de imediato e ninguém se metia com ele. A primeira vez que se vê o homem quer-se ser amigo dele – ele era desse tipo. Envergava um largo chapéu preto e uma sobrecasaca preta de grandes bolsos, faziam-no parecer imenso. Quando cortávamos madeira de sicómoro com machados e serras, dois a três molhos de lenha de quatro metros cúbicos por dia – é um trabalho violento, duro e suarento, no caso de ainda não o terem feito – Ed Watson nunca mudou o seu traje. Manteve aquele casaco sobre o seu fato-macaco de sarja, ele disse, porque nunca sabia quando poderia aparecer alguma companhia do Norte. Quando disse isso, é capaz de ter sorrido um pouco, mas nunca deu uma única explicação.
»A malta não sabia de onde este estranho tinha vindo e ninguém perguntava. Nunca fazíamos a um homem perguntas difíceis, não nas Dez Mil Ilhas, não naqueles dias. Hoje a malta contará isto de outra forma, mas na altura não havia muitos na nossa secção que não se encontrassem em fuga de um lugar qualquer. Quem viria para estas ilhas apodrecidas pelas chuvas sem solo suficientemente duro e alto para construir uma casa com fundações, e com tantos mosquitos a chagá-lo nos maus verões que pensava que seguira pelo caminho errado directo ao inferno?»
Peter Matthiessen, Shadow Country, p. 9 [tradução: AMC]
[New York: Modern Library, 2008, 912 pp.]

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

À vista um Titanic à portuguesa

Talvez não seja a ocasião certa para trocadilhos, por simples respeito às pessoas que derem o seu melhor no desenvolvimento de um projecto faraónico e que dele dependiam como base remuneratória de sustentação das suas vidas. Mas a ameaça de encerramento, como explica, e bem, o Eduardo, começou com a sua inauguração.
Prometia muito, mas deu muito pouco ou nada. Durou um ano.
Os meus contactos limitaram-se a duas ou três compras via internet, quase sempre para usufruir de vantagens promocionais de vária índole. As encomendas de livros, por exemplo, duravam uma eternidade quando a disponibilidade era superior a 24 horas, para depois chegarem luxuosamente, com entrega dedicada, via Express Mail.


Os prometidos fundos editoriais jamais chegaram a ver a luz do dia, nunca ultrapassando a disponibilidade dos concorrentes directos: Fnac, Bertrand, Bulhosa/Leitura ou a Almedina.

Em Fevereiro anunciava-se com toda a soberba comercial a construção da
maior livraria do país no Porto. Ocuparia o espaço, hoje degradado, do antigo Clérigos Shopping – mais um dos muitos projectos falhados na Invicta por erros de gestão, que apenas apresentava como atractivo o saudoso Café na Praça –, situado na sistematicamente degradada Praça de Lisboa – ainda me recordo da horrenda e anti-higiénica feira que aí difundia o seu miasma de ruralidade putrefacta em pleno coração do Porto, ao lado do monumento projectado por Nicolau Nasoni.
O projecto de reconversão estava (ou ainda está) a cargo da famosa Bragaparques, mas quem por lá passa apenas vê uma série de taipais cheios de graffitis, e de cartazes rasgados e deteriorados a fazer lembrar as zonas de guerra citadinas realisticamente imortalizadas pela lente de Rossellini no pós-guerra de 1945. Já os cartazes a anunciar a abertura da livraria, que me garantiram estiveram lá postados até há meio ano, desapareceram, ou pereceram por obsolescência induzida por telepatia, ou foram retirados por agente possuidor de informação privilegiada sobre a iminência do naufrágio. Era o prenúncio de que algo corria mal no reino de Areal – e que se me perdoe a rima que, mesmo pobre, surgiu de uma valiosa irritação pela aparente megalomania tão lusa (aparente, ou seja, no caso de estarmos apenas no domínio da negligência, do mero devaneio faraónico… processos omo, desconheço.)

De resto, fica apenas a minha solidariedade para com os trabalhadores que, afortunadamente, cairão nas malhas do faustoso subsídio de desemprego – a levar a sério a última brincadeira de chancela Constâncio, que se reveza no despautério e na idiotia, numa perfeição quase comovente, com a interruptora de democracias Manuela Ferreira Leite, o PGR e o Governo – ou rezar por aqueles que, eventualmente, nada mais tinham que um vínculo precário sem a garantia da possibilidade do exercício de direitos pela perda do posto de trabalho.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

IMPAC 2009

Como já se tornou um hábito nesta época do ano, foi anunciada a lista dos semifinalistas do International IMPAC Dublin Literary Award. A referida lista é constituída por 146 romances de outros tantos autores.
Nesta primeira fase de selecção intervieram 153 bibliotecas, espalhadas por 117 cidades de 47 países de todos os cantos do mundo.
Segue-se, agora, uma 2.ª fase, a cargo de um júri pré-seleccionado constituído por cinco elementos, e presidido por um sexto sem direito a voto, neste caso é o famoso juiz/escritor norte-americano Eugene R. Sullivan. A primeira tarefa do júri é desbastar a lista inicial, seleccionando aproximadamente dez obras que integrarão a lista de finalistas, cuja divulgação está marcada para o dia 2 de Abril de 2009.
Escolhidos os finalistas, atinge-se a 3.ª e última etapa, que consiste na eleição da obra vencedora dos cem mil euros em jogo que reverterão na íntegra para o autor, no caso de a obra seleccionada ter sido publicada originalmente em língua inglesa, ou serão repartidos numa proporção de ¾ para o autor e ¼ para o tradutor nos outros casos. O vencedor do IMPAC Award de 2009 será anunciado no dia 11 de Junho de 2009.

A curiosidade deste prémio reside precisamente nestas duas fases distintas de selecção, onde há a intervenção de especialistas de dois níveis distintos: bibliotecários, na 1.ª fase, e autores, críticos, editores e gente das letras nas duas últimas fases.
As regras para as bibliotecas seleccionadas através de candidatura previamente elaborada são bastante simples (replicação de um texto já publicado neste blogue com as necessárias adaptações para o ano em causa):
Como acabámos de ver, todos os anos o Dublin City Council, através da administração das bibliotecas públicas da cidade de Dublin recebe uma lista de obras de ficção nomeadas por responsáveis de bibliotecas espalhadas pelas capitais e principais cidades de países de todo o mundo.
Cada biblioteca pode nomear até 3 obras de ficção que apenas têm de obedecer a uma condição: a sua publicação em língua inglesa.

Para o prémio de 2009 só poderiam ser nomeadas:

  • Obras originalmente publicadas em inglês durante o ano de 2007;
    ou,
  • Obras originalmente publicadas noutra língua entre o quadriénio 2003/2007 e que hajam sido publicadas em inglês durante o ano de 2007.

Para o prémio de 2009, destacaram-se oito obras que obtiveram mais de quatro votos (entre as quais constam quatro que já foram publicadas em Portugal e uma outra a publicar em breve), no total dos 291 exercidos (para um máximo de 459 votos) pelas 153 bibliotecas (1 biblioteca – 3 obras diferentes; 1 obra – 1 voto):

  • 18 votosKhaled Hosseini, Mil Sóis Resplandecentes (Presença) – A Thousand Splendid Suns;
  • 13 votosMichael Ondaatje, Divisadero;
  • 10 votosIan McEwan, Na Praia de Chesil (Gradiva) – On Chesil Beach (vencedor de dois British Book Awards: Reader's Digest Author of the Year por este romance e do Galaxy Book of the Year);
  • 8 votos (2 obras)Michael Chabon, The Yiddish Policemen's Union e Mohsin Hamid, O Fundamentalista Relutante (Civilização) – The Reluctant Fundamentalist;
  • 7 votosJunot Diaz, The Brief Wondrous Life of Oscar Wao (esta obra irá ser publicada pela Porto Editora; vencedor do 2007 The National Book Critics Circle Award – Fiction e do Pulitzer Prize for Fiction 2008);
  • 6 votosAnne Enright, Corpo Presente (Gradiva) – The Gathering (vencedor do Booker Prize 2007);
  • 5 votosCatherine O'Flynn, What Was Lost (vencedor do 2007 Costa First Novel Award, antigo Whitbread Award; vencedora do British Book Awards: Waterstone's Newcomer of the Year).

Com quatro votos ficaram nove obras, de onde destaco três de autores bem conhecidos do público português e com a respectiva obra publicada no mercado nacional: Don DeLillo, O Homem em Queda (Sextante) – Falling Man; J.M. Coetzee, Diário de Um Mau Ano (Dom Quixote) – Diary of a Bad Year; e o fabuloso romance de Mario Vargas Llosa, Travessuras da Menina Má (Dom Quixote) – The Bad Girl.

De notar, que toda a estatística atrás vertida pode revelar-se assaz irrelevante, na medida em que a palavra final cabe sempre ao júri seleccionado, podendo eleger como vencedor uma obra que, no limite, tenha obtido apenas uma nomeação (1 voto). Aliás, se atentarmos aos vencedores dos três últimos anos, verificamos que o vencedor de 2008 – Rawi Hage, Como a Raiva ao Vento (De Niro's Game) – foi nomeado apenas por 1 biblioteca, a Winnipeg Public Library, no Canadá, enquanto o vencedor de 2007 – Per Petterson, Cavalos Roubados (Out Stealing Horses) – foi nomeado somente por 2 bibliotecas, e ambas norueguesas; porém, em contraste com os seus sucessores, o vencedor de 2006 – Colm Tóibín, O Mestre (The Master) – foi previamente nomeado por 17 bibliotecas (menos uma que a obra de Hosseini no concurso deste ano).

Uma vez mais, Portugal participou na referida 1.ª fase de nomeação através das duas habituais bibliotecas: a Biblioteca Pública Municipal do Porto (BPMP) ao jardim de São Lázaro e a Biblioteca Municipal Central de Lisboa (BMCL), situada no Palácio das Galveias.

BMCL (exerceu os 3 votos que tinha direito):

  • Arturo Pérez-Reverte, O Pintor de Batalhas (Asa) – The Painter of Battles (1 voto no total);
  • Ian McEwan, Na Praia de Chesil (Gradiva) – On Chesil Beach (votaram neste livro mais 9 bibliotecas);
  • Jonathan Coe, The Rain Before It Falls (votaram neste livro mais 3 bibliotecas) – uma curiosa antecipação à possível edição portuguesa.

BPMP (apenas votou numa obra, que, acrescente-se, é cromo repetido de outros anos):

  • Richard Zimler, A Sétima Porta (Asa) – The Seventh Gate (1 voto no total).

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Alerta aos austerianos

Blogue de Paul Auster em Portugal

Acabou de ser criado, sem qualquer tipo de responsabilidade ou intervenção inspiratória da minha parte, um blogue português dedicado ao poeta do acaso: Paul Auster, de origem judaica, nascido em Newark, Nova Jérsia, a 3 de Fevereiro de 1947.

Biografia resumidíssima: Para além de trabalhos de tradução de poesia francesa, publicou a sua própria poesia, ensaios e memórias, escreveu argumentos para cinema, organizou antologias poéticas e de obras de ficção de autores consagrados, realizou quatro filmes A Vida Interior de Martin Frost (The Inner Life of Martin Frost, 2007), Lulu on the Bridge (1998), Fumo Azul (Blue in the Face, 1995) e Fumo (Smoke, 1995), os dois últimos em parceria com o realizador natural de Hong Kong Wayne Wang (n. 1949), e publicou doze romances; discriminados a seguir e ordenados segundo a minha preferência no momento presente (ao longo dos anos foi-se alterando à medida das releituras e/ou da minha percepção distanciada no tempo):

  1. Leviathan (Asa) – 1992
  2. A Trilogia de Nova Iorque (Asa) – The New York Trilogy, 1987
  3. A Música do Acaso (Asa) – The Music of Chance, 1990
  4. Palácio da Lua (Presença) – Moon Palace, 1989
  5. Timbuktu (Asa) – 1999
  6. No País das Últimas Coisas (Presença) – In the Country of Last Things, 1987
  7. As Loucuras de Brooklyn (Asa) – The Brooklyn Follies, 2005
  8. Mr. Vertigo (Asa) – 1994
  9. O Livro das Ilusões (Asa) – The Book of Illusions, 2002
  10. Viagens no Scriptorium (Asa) – Travels in the Scriptorium, 2006/2007
  11. A Noite do Oráculo (Asa) – Oracle Night, 2004

Ainda não lido: Homem na Escuridão (Asa) – Man in the Dark, 2008 (nas livrarias na próxima semana, editado pela Asa)
Próximo Romance (13.º): Invisible, 2009

As suas principais referências (confessadas em diversas entrevistas): Shakespeare, Beckett, Celan, Mallarmé, Blanchot, Poe, Proust, Hamsun, Cervantes, Kafka, Borges, Melville, Hawthorne, Thoreau, Dostoievski, Hölderlin, Montaigne, Leopardi, entre outros.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Coisas Simples

É desta forma, abrupta, que Pacheco Pereira entra pela tarde, reproduzindo um raríssimo exemplar de um quadro pintado a óleo sobre zinco, neste caso de François Bonvin uma natureza morta e alguns objectos de scriptorium.
Hoje, ontem, não há, não houve, “milieu”, ou «o ambiente miasmático em que tudo se passa».

Ficam as imagens para mais tarde recordar (onde até houve um corajoso agente da autoridade que pretendia deter o operador de câmara da RTP – o agredido – depois de deixar fugir o agressor):



Nota: os mesmos indivíduos (oito homens e duas mulheres) já de cara destapada – ao que chega a impunidade… – e mais um grupo que se lhes juntou após os primeiros incidentes retratados no vídeo, permaneceram a tarde inteira em frente do TIC intimidando e ameaçando jornalistas e as respectivas famílias nas barbas da polícia e da segurança privada do DCIAP.

Prevê-se um Quadratura do Círculo alargado para discutir este tema.

domingo, 16 de novembro de 2008

Combater o destino

«Havia algo acerca do homem e do rosto que eu vira sob a luz trémula das nossas lanternas. Agora de repente tenho a certeza. […] e se aquilo fosse algo de um romance, limitar-se-ia apenas a ser irritante. De facto, tenho lido muito, em especial durante os últimos anos, mas antes também o fazia, e tenho pensado sobre aquilo que li, e esse tipo de coincidência parece demasiado rebuscado na ficção, pelo menos nos romances contemporâneos, e acho que é difícil de aceitar. Pode parecer muito bem em Dickens, mas quando se lê Dickens estamos a ler uma longa balada de um mundo desaparecido, em que tudo tem de se juntar no fim como uma equação, em que o equilíbrio daquilo que foi anteriormente perturbado deve ser restaurado de modo a que os deuses possam sorrir. Talvez uma consolação ou um protesto contra um mundo que saiu dos eixos, mas agora já não é assim, o meu mundo não é assim, e nunca me dei bem com aqueles que acreditam que as nossas vidas são governadas pelo destino. Eles queixam-se, lavam as mãos e infundem piedade. Eu acredito que somos nós que modelamos as nossas vidas, de qualquer maneira, eu modelei a minha, valha o que valer, e assumo toda a responsabilidade. Mas de todos os lugares para onde me poderia ter mudado, tinha de aterrar exactamente aqui.»
Per Petterson, Cavalos Roubados, pp. 73-74.
[Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Outubro de 2008, 275 pp.; tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Ut og stjæle hester, 2003.]

Para quando?

Com estreia mundial em Maio passado, e sucessivos adiamentos da sua estreia nacional, impõe-se a pergunta que exalta o título deste texto.
Resposta mais que provável: lançamento directo no circuito de DVD (aluguer e venda directa).


Entretanto, é um dos filmes incluídos pela organização do Estoril Film Festival 2008 na excelente galeria “Fora de Competição”.

sábado, 15 de novembro de 2008

Sair para roubar cavalos [actualizado]

Quando em Junho de 2007 o júri do International IMPAC Dublin Literary Award – na altura o prémio literário pecuniariamente mais valioso do mundo a galardoar uma só obra de ficção – anunciou o vencedor, muitos foram os que ficaram de boca aberta pela escolha: um romance, com cavalos no título, de um escritor norueguês quase desconhecido chamado Per Petterson, soava, em primeira mão, a folclore nórdico.
A perplexidade foi ainda maior conhecendo-se a priori a
lista dos oito semifinalistas seleccionados pelo referido júri – constituído por seis elementos, que em 2007 incluía o escritor português Almeida Faria – dos quais destaco cinco, para além do vencedor, todos já com edição portuguesa: Arthur & George de Julian Barnes (Asa); O Homem Lento de J.M. Coetzee (Dom Quixote), Nobel da Literatura em 2003; Extremamente Alto, Incrivelmente Perto de Jonathan Safran Foer (Quetzal); Este País Não É para Velhos de Cormac McCarthy (Relógio D’Água); e Shalimar, o Palhaço de Salman Rushdie (Dom Quixote).
Porém, havia um facto anterior que não poderia ser desprezado, o mesmo romance já havia vencido em 2006 o prémio do jornal britânico
The Independent para a melhor obra de ficção estrangeira, derrotando autores como David Grossman, Claudel, Murakami, Kertész (Nobel da Literatura em 2002) e o autor marroquino Tahar Ben Jelloun.

Tal como referi
aqui, a versão portuguesa chegou (tarde) pelas mãos da Casa das Letras, adiantando-me, desde já, à nota de apreciação, para referir a tradução irrepreensível de Maria João Freire de Andrade* – menção que tem alguma razão de ser, dada a debilidade de algumas das traduções de obras lançadas pela mesma editora, cujo livro de memórias de Gore Vidal, Navegação Ponto por Ponto, é o epítome.

«Toda a minha vida ansiei estar sozinho num lugar como este. Mesmo quando tudo corria bem, como era frequente acontecer.» (pág. 11)

Cavalos Roubados – título concludente escolhido pelo editor português, enquadrável na polissemia do jogo de palavras do título original norueguês (dá o título a este texto) – foi publicado pela primeira vez na Noruega em 2003 e traduzido para inglês em 2005, e daí a sua elegibilidade para o IMPAC de 2007. Trata-se de uma história narrada na primeira pessoa pelo protagonista Trond Sander, que aos sessenta e sete anos se decidiu pela reforma e pela fuga de Oslo, desfazendo-se de todos os seus bens e compromissos que o agarravam à capital, procurando o isolamento numa cabana imersa na paisagem bucólica, verdejante, gélida e despovoada do interior da Noruega: «O meu plano para este lugar é bastante simples. Esta vai ser a minha última casa. Quanto tempo isso poderá demorar é algo acerca do qual ainda não pensei.» (pág. 74)

Aí instalado, na companhia da sua cadela Lyra, previamente adquirida para atenuar o isolamento previsto, Trond é o protagonista de uma estranha coincidência que irá despoletar uma série de rememorações dolorosas: «isso liga-me a um passado que pensei estar muito atrás de mim e afasta para o lado os cinquenta anos com uma ligeireza quase obscena.» (pág. 115). Rememorações que vão tão longe como o ano de 1940, quando o narrador tinha sete anos; passando pela ocupação nazi na Noruega e a sua retirada com a vitória dos Aliados em 1945; o Verão do afloramento de toda a verdade em 1948, desfrutado na companhia do pai, na última vez que estiveram juntos, deixando a mãe e a irmã em Oslo, num local muito parecido com o que actualmente escolheu para morrer; e as duas mortes trágicas ocorridas, no intervalo de um mês, três anos antes do momento presente. O agora é Novembro de 1999, um mês antes da passagem do milénio, segundo o autor e uns tantos milhões de pessoas em todo mundo na altura, que, com a sua ignorância, contribuíram para mais umas vergastadas na tão maltratada Matemática – e já agora, a talho de foice, o mesmo erro é cometido por Frederico Lourenço por haver escolhido, no inquérito levado a cabo pelo blogue
Os Livros Ardem Mal, como o melhor livro de ficção portuguesa do século XX A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queirós publicado em 1900, logo, ainda, no último ano do século XIX, embora aqui interesse a influência que a obra exerceu na literatura portuguesa subsequente e nas gerações vindouras, e assim durante o século XX.

Per Petterson, com uma escrita limpa, escorreita, sem o recurso a artifícios de linguagem ou a uma bateria de figuras de estilo, consegue agarrar o leitor do princípio ao fim, alternando com mestria os diversos períodos históricos atrás referidos. E talvez seja nessa limpidez de linguagem onde reside o principal brilho da obra: inocente, jamais estéril, que consegue captar a ingenuidade imanente de um ser intrinsecamente bom, profundamente emocional e sem a mácula da violência dos tempos que corriam.
Não há ressentimento, nem qualquer vestígio de vingança ou sequer de autoflagelação por um passado inamovível, em que se desconhece por completo a importância e o valor do papel desempenhado, nem isso parece importar ao narrador: «Se me irei transformar no herói da minha própria vida, ou se esse papel será representado por outra pessoa, é isso que estas páginas irão mostrar.» (pág. 228) Trata-se da abertura do romance de Charles Dickens, David Copperfield, o escritor preferido de Trond que a sua filha Ellen (fruto do seu primeiro casamento), após o haver encontrado na sua cabana e isto depois de o ter procurado pela Noruega rural, já que aquele partira de Oslo sem avisar, lhe recomenda a releitura – este é, sem dúvida, na minha opinião, um dos episódios mais pungentes e comovedores de todo o livro.
De seguida Trond reflecte sobre as admiravelmente tocantes palavras da filha, depois de lhe haver citado a introdução de Dickens: «Não me é fácil responder àquilo. Não sabia que ela pensava daquele modo. Nunca mo disse. É óbvio que pelo simples motivo de que eu não estava lá quando ela precisara de falar, mas ela não pode saber com que frequência pensei o mesmo e li aquelas primeiras linhas de David Copperfield e depois tive de continuar, página após página, quase petrificado de terror porque tinha de ver se no fim tudo encaixava no seu devido lugar, e como é natural encaixava, mas demorava sempre muito tempo até me sentir seguro. No livro. A vida real era de certo modo diferente.» (pág. 229).

É esta a magia de Cavalos Roubados, o paradoxo da inquietação tranquila, de um raro lirismo na literatura contemporânea. E que melhor resumo nos pode dar a percebida epígrafe dissimulada, porque há uma pequena chamada na ficha técnica que nos alerta, sem mais assunto, para umas frases no interior do texto, cujo sentido é repetido umas páginas mais adiante. As palavras pertencem ao romance de 1934 Viagem no escuro (Voyage in the Dark) da escritora dominicana Jean Rhys (1890-1979):

«Foi como um cortinado se tivesse fechado e escondido tudo aquilo que eu sempre conhecera. Era quase como renascer. As cores eram diferentes, os cheiros diferentes, a sensação que tocar nas coisas nos dava interiormente era diferente. Não apenas a diferença entre calor, frio; claridade, escuridão; roxo, cinzento. Mas a diferença estava no modo como me sentia assustado e no modo como me sentia feliz.» (pág. 255).

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Uma nota final para as estrelas que encerram esta nota de apreciação. Das 40 obras publicadas este ano que tive a oportunidade de ler, três figuram na categoria de excepção – se se tratassem de hotéis, eram de super luxo –, às restantes 35 que figuram em posições inferiores a esta – das 5 estrelas (Muito Bom) a 1 estrela (Mau) –, uma vez que 2 não foram reveladas para esta contagem, Cavalos Roubados é aquela que se aproxima mais do limiar da genialidade, e só não figura na categoria mais acima dados o fôlego, a profundidade e a intemporalidade das obras de Musil, Cortázar e Donoso que aí são referenciadas; em suma, ainda não dispõe da pátina de genialidade, ainda não obtida pela curta distância temporal entre os dias que correm e o momento em que foi publicada.

Classificação final: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Per Petterson
, Cavalos Roubados. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Outubro de 2008, 275 pp. (tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Ut og stjæle hester, 2003).

Nota: esta obra será vítima da habitual citação dominical, amanhã, portanto.

[adenda: 22:50]: *Alertado por e-mail, dei conta que ficou por referir, no que à tradução diz respeito, que a versão editada pela Casa das Letras foi elaborada a partir da versão inglesa, Out Stealing Horses, da poetisa e tradutora Anne Born (tradutora de norueguês e dinamarquês, traduziu, entre outras, obras de Isak Dinesen/Karen Blixen), cuja tradução do 2.º romance de Petterson (Cavalos Roubados) foi objecto de enorme aclamação no meio literário anglófono, realçada pelo próprio júri do IMPAC Award. Quanto às minhas referências neste campo apenas se circunscrevem (constava do espírito) à comparação entre a tradução inglesa (que já havia lido em deambulações livreiras) e a tradução de Maria João Freire de Andrade – infelizmente, não sei norueguês, e como diz Chico Buarque «devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira.»
Noutro aspecto, seria, como parece óbvio, preferível que se procedesse à tradução directa da língua original, mesmo que, como é o caso presente, a primeira tradução (do norueguês para o inglês) seja a todos os títulos irrepreensível, há sempre algo que se perde. Na tradução de uma tradução essas perdas serão, decerto, maiores.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Fernando Dinis

Acabo de receber a excelente notícia pelas mãos do próprio, o vencedor da 6.ª edição do Prémio Literário Fnac/Teorema Novos Talentos, foi o nosso conhecido, e meu muito estimado, blogger, músico e poeta, agora romancista Fernando M. Dinis.
O romance, que venceu entre «cerca de uma centena de candidaturas», recebeu o título de A Casa do Esquecimento e será editado pela Teorema no próximo mês de Dezembro.
São estas pequenas (grandes) coisas que me vão deixando literalmente agarrado a este fenómeno, relativamente recente, da blogosfera.
Quando para aqui entrei a título definitivo em Dezembro de 2005, o Fernando foi das primeiras pessoas com quem estabeleci laços de afectividade e isto apesar de o desconhecer fisicamente – a não ser pela sua fotografia, de modo algum decisiva para o estabelecimento desse respeito recíproco.
Houve gostos literários que se entrecruzaram, ponto de partida para pequenas e frutuosas discussões, músicas que ouvíamos com o mesmo deleite, e o contacto com os seus trabalhos de piano que, este lisboeta nascido em 1976 (puto...), amavelmente me fez chegar.
Deixou a blogosfera neste Verão com o afinal efémero Fico Até Tarde Neste Mundo, curiosamente numa altura em que eu tentava – como é visível, sem êxito – o meu 147.º bloguicídio.
A minha hiperligação permanece na barra da direita, espera pelo teu regresso.

Por agora, apenas isto: Parabéns, querido amigo!

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Murakami, fim do pousio?

Num artigo publicado no jornal londrino The Times em Julho deste ano – a propósito da publicação no Reino Unido do primeiro livro de memórias de Haruki Murakami (n. 1949), De que falo quando falo de correr (tradução aproximada), publicado no Japão em 2007 –, o jornalista, crítico e ensaísta Stephen Armstrong discorre sobre as dez coisas que precisamos de saber sobre o escritor nipónico. A primeira asserção é a mais lógica: “Murakami divide as pessoas”. Há os que o idolatram e os que renegam os seus livros e seu tipo de literatura, acusando-a de ser «pop, sem qualidade e excessivamente ocidentalizada», bem longe, como nota o autor do artigo, do aspecto formalmente tradicional das obras de autores japoneses consagrados, como Yukio Mishima, Junichiro Tanizaki ou o nobelizado Yasunari Kawabata.
Murakami é um confirmado caso de sucesso, mas é simultaneamente objecto de uma guerra sem quartel no mundo das letras. As suas recensões são normalmente favoráveis e por vezes a roçar os limites da razoabilidade encomiástica, com comparações inusitadas, dando origem, por vezes, a frases de caracterização e descrição da obra e/ou do autor destemperadamente insólitas, de pura risibilidade, como a do “produto do cruzamento de Kafka com Woody Allen”; foi doutorado “honoris causa” por Princeton e pela Universidade de Liège; todos os anos surge na lista dos principais favoritos a conquistar o Nobel da Literatura, facto que, por si só, tem suscitado acesos debates literários.

Uma coisa parece certa, Murakami vende em Portugal, tal como vendem Paulo Coelho, MRP®, Nora Roberts ou Allende, porém o tipo de comprador/leitor é diferente, bastante heterogéneo em género e habilitações literárias, um pouco mais homogéneo na faixa etária, são sobretudo os mais jovens que lêem Murakami – informação baseada em estudo estatístico sem amostra representativa, rigorosamente acientífico, sem ficha técnica, porque resulta de um empirismo primário com um diminuto tratamento racional.

Segundo as minhas notas de leitura, li o meu último Murakami em Julho de 2007 e achei-o fraquinho, rudimentar e pueril.
Ora, até meados de Novembro de 2008, ou seja, um ano e quatro meses depois, saíram para o mercado mais três livros do escritor japonês, todos editados pela Casa das Letras e com tradução de Maria João Lourenço: Dança, Dança, Dança (Novembro de 2007); o livro de contos A rapariga que inventou um sonho (Março de 2008) e After Dark – Os passageiros da Noite (Novembro de 2008). Disponho de todos em 1.ª edição, num estado de quase pudica virgindade.
Depois de ler Em Busca do Carneiro Selvagem, cansei-me de Murakami, não significando porém que não faça uma segunda tentativa, gozando da excelente oportunidade dada pela publicação entre nós do incensado After Dark (o último romance do autor, publicado originalmente no Japão em 2004).
Talvez seja por uma frívola sugestão infundida pelo design das capas dos seus livros em Portugal – o mesmo ocorre com Lobo Antunes –, mas convenci-me de que estou a ler sempre o mesmo livro com títulos diferentes. Com o tal livro de Julho de 2007, a minha babilónica cabeça emitiu um fortíssimo sinal de déjà-vu, de uma releitura de um aborrecido universo onírico agrilhoado a uma perda de capacidade criativa do quase sexagenário autor nipónico; dando por mim – ah, a prodigiosa mente humana – a pôr em causa o que já tinha dado por adquirido: a identificação de talento e génio literários em algumas das suas obras anteriores.
De um total de onze romances, para além dos ensaios, livros de contos, autobiografia e livro de memórias, Murakami tem sete publicados em Portugal (um publicado pela Civilização e os restantes pela Casa das Letras), dos quais li cinco.

Classifico-os da seguinte forma (entre parêntesis figura o ano de publicação em japonês sem o respectivo título transliterado dada irrelevância da informação, de pôr os olhos em bico):

  • De leitura obrigatória: Norwegian Wood (1987, ed. port. Civilização) e Crónica do Pássaro de Corda (1992-1995);
  • A Ler: Sputnik, meu amor (1999);
  • Prescindíveis: Em Busca do Carneiro Selvagem (1982) e Kafka à Beira-Mar (2002);
  • Não lidos: Dança, Dança, Dança (1988) e After Dark – Os Passageiros da Noite (2004).

Será o fim do retemperador pousio?
(Se ainda lido este ano, descubra na secção de apreciação literária na barra da direita, ou mesmo sendo-o, talvez não, aumentando a diferença entre os lidos e classificados. Confuso?)

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Reducionismo

Na verdade, há quem não entenda, e contra esses apenas um curso intensivo sob o título generalíssimo de “Realidade Política do Século XXI”, com um rigoroso sistema de avaliação, poderia salvá-los dessa triste ignorância; porém há outros que querem, através da verve e da pretensa legitimidade deífica para discorrer sobre todo e qualquer assunto, transformar a vitória de Barack Obama como o triunfo das forças do bem, doutas, piedosas, solidárias e compassivas concentradas na impoluta esquerda universal frente a uma direita eminentemente retrógrada, torcionária, extremista, xenófoba, racista, homofóbica, cúpida, açambarcadora do poder, geradora de todos conflitos à escala do globo, criminosa, fundamentalista e acima de tudo, como se o que ficou para trás não bastasse, profundamente inimiga do povo, essa massa informe de iletrados, sebentos e de mau gosto.
Barack ganhou com o voto universal, representativo do mosaico político, económico, social, étnico, etário e de género de uma nação formada por 50 Estados diferentes entre si. Não entender isso, tentando arrebanhar a vitória para uma facção (mooriana, por exemplo) tão notoriamente espúria como a bushiana, é pura desonestidade intelectual.
Eis as palavras do “Pai da Pátria” hoje no Diário de Notícias:

«Até 20 de Janeiro, praticamente dois meses, incluindo o Natal, o Presidente em funções é ainda George W. Bush. Obama será obviamente informado, mas não vai comprometer-se com nada.
Foi convidado para essa estranha e inoportuna Conferência dos 20 – iniciativa de Sarkozy, amigo de Bush, para dar relevo à sua presidência europeia, que termina no fim de Dezembro – mas creio bem que Obama não vai cair na armadilha que lhe estendem.
Vai ouvir – o que poderá ser útil –, mas não falar ou, muito menos, comprometer-se. Espero...
»

Estas palavras são de Mário Soares, um homem cuja idade polarizou o combate político numa luta maniqueísta de petiz folgazão – eu sou dos bons e tu és dos maus, uma brincadeira de índios e cobóis. Os maus estarão na reunião do G-20 representados por esse facínora do Sarkozy – que segurou uma França em ebulição e tem dado provas de boa governança –, acólito de Bush?, e os bons serão decerto representados pelo Brasil, a Índia e a China, porventura apresentando como cabeça de cartaz os virtuosos governantes da “Mãe Rússia”, os arautos da paz mundial, como demonstram à saciedade os acontecimentos mais recentes de Kalinegrado, da Geórgia, dos aviões e dos submarinos nucleares às portas da Venezuela, onde uma estranha amizade com o pacifista Chávez – que prontamente declarou que os aviões russos sobrevoariam Cuba para cumprimentar Fidel – foi saudada por esses emissários da concórdia entre terráqueos ou, o mesmo será dizer, pelos combatentes do imperialismo americano, com um raro e inócuo entusiasmo, que inclui alguns que ostentam sem o menor pingo de vergonha a foice e o martelo estampados no fundo vermelho do sangue que amparou Estaline, Ceausescu ou Mao Tsé-Tung nas suas purgas e eliminações sumárias pela imposição do socialismo.
Obama, como parece óbvio, estará apenas como observador. Até ao juramento presidencial que ocorrerá nas escadas do Capitólio no próximo dia 20 de Janeiro (o famoso Inauguration Day) não disporá de qualquer função executiva e prescindirá, certamente, dos conselhos paternalistas de Mário Soares: cuidado com os papões, filho, eles arrebanham-te ao primeiro sinal de fraqueza. O bom filho dir-lhe-ia: não te preocupes papá. O Savimbi foi assassinado no mato, o Craxi morreu às portas do deserto – na Tunísia fugido à justiça italiana, que o condenara a 27 anos de cadeia por corrupção –, e o Chávez não vem porque, sentado em cima de um barril de petróleo, joga ao campo minado no Windows português do Magalhães, oferecido pelo mano com nome de filósofo famoso, que não escreveu uma única linha.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Por mero ACASO

Acabei de receber por correio electrónico o que se segue: Paul Auster em Cascais no próximo domingo, em companhia do crítico de cinema Rui Pedro Tendinha.


Presumo que irão falar sobre cinema, ou do relativo fracasso de A Vida Interior de Martin Frost (The Inner Life of Martin Frost, 2007), aproveitando o autor para lançar no mercado português a tradução do seu mais recente romance Homem na Escuridão (Man in the Dark, 2008), cuja edição está a cargo da editora, ex-portuense?, Asa, agora integrada no grupo LeYa. E diga-se que, apesar da debandada de autores, não abriu mão das obras do escritor sexagenário de Newark, Nova Jérsia – e só espero que, na espinhosa tarefa de manter os bons autores na casa, os responsáveis da editora não se tenham esquecido das obras da sua mulher, a alta e loura – como ele próprio a descreveu –, e descomunal escritora Siri Hustvedt, com novo romance publicado (e bastante elogiado) este ano nos Estados Unidos, e com a restante obra quase esgotada em Portugal, com excepção do avassalador Aquilo Que Eu Amava (What I Loved, 2003), a pedir uma urgente reedição.

Regressando à tertúlia cascalense, onde, possivelmente, se irá falar de um outro assunto que tem mexido com a imprensa cultural espanhola pela casualidade envolvida (ou o chamamento do eterno acaso): trata-se da estranha inspiração extra-sensorial e quase simbiótica entre Auster e Pedro Almodóvar quando o primeiro escrevia Homem na Escuridão e o segundo redigia o argumento para o seu próximo filme Abrazos Rotos (pode traduzir-se por Abraços Quebrados), fenómeno que foi antecedido por um fortíssimo ataque de cefaleias que quase imobilizaram o realizador espanhol no preciso momento em que ambos haviam combinado em Oviedo escrever um guião para o seu futuro filme (retirado do blogue de Almodóvar):

«Ao longo dos três dias que durou a nossa estadia em Oviedo [entrega, em Outubro de 2006, dos Prémios Príncipe das Astúrias] compartilhámos muitas situações, para além de comer e beber. Num desses jantares, quando já estávamos bastante animados, sondei-o sobre a possibilidade de escrevermos um guião juntos. De acordo com o seu programa de trabalho disse-me que não havia inconveniente, e eu pensava que podia levá-lo a cabo decorridos três ou quatro meses, não me importava de me deslocar a Nova Iorque.
Apenas isso, ao acabar a promoção em Janeiro de 2007
[do filme Voltar (Volver, 2006)] decido enfrentar o problema das minhas dores de cabeça, que haviam aumentado em 2006. A partir desse momento, enquanto fazia diversos tratamentos com um grupo de neurologistas, as dores aumentaram… enfim, a coisa é que durante o primeiro semestre de 2007 vivi aprisionado pelas cefaleias e pelos tratamentos. Não pude ir a Nova Iorque nem escrever com Paul Auster. Não obstante, cada um por seu lado escreveu duas histórias sobre narradores na escuridão. Uma situação tipicamente austeriana.» [destaque meu; tradução: AMC]

Porém, e regressando à costa atlântica ocidental, será decerto inescapável abordar o tema da crítica e da péssima recepção de A Vida Interior… pela comunidade lusa de críticos e não só. Lá fora a implacável Manohla Dargis – uma quase Kakutani do cinema – desancou, sem qualquer espécie de pruridos, no filme de Auster, terminando com o desabafo que “quanto menos dele se falar, melhor seria para Auster”.

Vi o filme depois ter ouvido e lido todo o chorrilho de zurzidelas nacionais e internacionais, profissionais e amadoras, e creio que não era motivo para tanto estardalhaço negativista. Está longe, bem longe, de ser um filme técnica e esteticamente perfeito, mas à mesma distância de segurança de um slapstick como vi rotulá-lo por muito boa e letrada gente.

domingo, 9 de novembro de 2008

Dos fracos (ao ou pelo poder)

Friedrich Nietzsche«Para uma filosofia da força ou da vontade, parece difícil explicar como é que as forças reactivas, como é que os “escravos”, os “fracos” levam a melhor. Porque, se todos em conjunto formam uma força maior que a dos fortes, não vemos muito bem o que mudou, e sobre que se funda uma avaliação qualitativa. Mas, na verdade, os fracos, os escravos não triunfam por adição das suas forças, mas por subtracção da força do outro: separam o forte daquilo que ele pode. Eles triunfam, não pela composição do seu poder, mas pelo poder do seu contágio. Acarretam um devir-reactivo de todas as forças. É isso a “degenerescência”. Nietzsche mostra já que os critérios da luta pela vida, da selecção natural, favorecem necessariamente os fracos e os doentes enquanto tais, os “secundários” (chama-se doente a uma vida reduzida aos seus processos reactivos). […] As forças reactivas, ao levarem a melhor, não deixam de ser reactivas. Porque, em todas as coisas, segundo Nietzsche, trata-se de uma tipologia qualitativa, trata-se de baixeza e de nobreza. Os nossos senhores são escravos que triunfam num devir-escravo universal [...] Nietzsche descreve os Estados modernos como formigueiros, em que os chefes e os poderosos levam a melhor devido à sua baixeza, ao contágio desta baixeza e desta truanice. Qualquer que seja a complexidade de Nietzsche, o leitor adivinha facilmente em que categoria (quer dizer, em que tipo) ele teria colocado a raça dos “senhores” concebidos pelos nazis. Quando o niilismo triunfa, então e só então a vontade de poder deixa de querer dizer “criar”, mas significa: querer o poder, desejar dominar (portanto, atribuir-se ou fazer com que lhe atribuam os valores estabelecidos, dinheiro, honras, poder...). Ora, esta vontade deste poder é precisamente a do escravo, é a maneira como o escravo ou o impotente concebe o poder, a ideia que dele faz, e que ele aplica quando triunfa. Acontece que um doente pode dizer: ah! se eu estivesse bom, faria isto – e talvez o fizesse –, mas os seus projectos e as suas concepções são ainda as de um doente, e nada mais que as de um doente. Passa-se o mesmo com o escravo e com a sua concepção do domínio ou do poder. Passa-se o mesmo com o homem reactivo e com a sua concepção de acção. Por toda a parte, é a inversão dos valores e das avaliações, por toda a parte são as coisas vistas do lado pequeno, as imagens invertidas como numa clarabóia. Uma das grandes frases de Nietzsche é: “Temos sempre de defender os fortes contra os fracos.» [destaque meu]
Gilles Deleuze, Nietzsche, pp. 25-26
[Lisboa: Edições 70, 1.ª edição, Agosto de 2007, 107 pp.; tradução de Alberto Campos; obra original: Nietzsche, 1965]

Sem mais comentários (como quase sempre nas citações dominicais neste blogue).

sábado, 8 de novembro de 2008

A intimidação dos poderosos

A Destruição do Leviatã, de Gustave Doré, 1865Intróito
Depois de ter lido
isto e isto do Eduardo Pitta no seu blogue Da Literatura, germinou em mim uma vontade incomensurável de falar, de gritar, de exteriorizar a revolta que casos como este e similares me provocam, me revolvem as entranhas e me fazem, por vezes, estiolar em palavras de desprezo perante este país de capelinhas e sacristias, onde uma pequena turba de oligarcas dedilha os fios que fazem mover os nossos braços e pernas como se fôssemos marionetas.
Irei falar um pouco das vicissitudes de um processo desta natureza, eminentemente persecutória, que está escrito nos seus contornos quase kafkianos. E, de seguida, recupero um texto – cujo título original deu o nome ao de hoje –, à laia de ensaio, passe o possível pretensiosismo, que havia escrito, por catarse (outros queriam-no para publicação, a que resisti com alguma veemência, dada a minha indisponibilidade física e mental, não literal, para servir de Martim Moniz), em Fevereiro de 2004. Hoje, ao ler os textos do Eduardo, sabia que o houvera escrito e que estaria arrumado com centenas de outros numa das pastas abandonadas do disco rígido do meu computador; apenas cheguei lá pelo título – neste caso aparece com o subtítulo “Do Poder: a incubação dos medíocres”.

Do Processo
É esta a resignação perante uma coisa cuja denominação há muito deixou de corresponder à sua etimologia (percebe-se no final, pela circularidade).
Um exemplo cabal desse desfasamento materializa-se no processo disciplinar consubstanciado no direito do trabalho. A putativa protecção do trabalhador nestes casos, não passa disso mesmo, de uma presunção de atribuição de determinados direitos de defesa que jamais poderão ser exercidos, quer no campo meramente interno – na condução do processo disciplinar tout court, que cabe única e exclusivamente à empresa dirigir, com um instrutor parcial (de partidário) nomeado para o efeito –, quer no plano externo quando a decisão de despedimento é tomada e se recorre aos tribunais para recuperação do vínculo e de todas as prerrogativas anteriores que a mera existência desse vínculo englobava.
A lei obriga a manifestação expressa do desejo de despedir na, usualmente rocambolesca, “Nota de Culpa”. Findo o processo de inquérito, segue-se o tribunal, com a interposição do procedimento cautelar de suspensão do despedimento. A vitória aí alcançada poderá, segundo dizem, ser um prenúncio para a vitória final, mas quase sempre se trata de um presente envenenado, uma vez que nada mais repõe que não seja o direito à retribuição.
Depois chega a acção declarativa (a chamada de "principal"), o processo de impugnação desse despedimento: a verdadeira tortura. Advogados, petições, juízes, requerimentos, audiências preliminares, tentativas de conciliação, audiência de partes, arrolamento de testemunhas, adiamentos por falta de douta agenda, expedientes dilatórios, etc. Custas, taxas de justiça, preparos, honorários, telefonemas, deslocações… dois anos, na melhor das hipóteses. Em suma, o despedido via processo disciplinar é condenado a pelo menos dois anos de tortura enquadrada nos beneplácitos e nas concessões da monstruosa máquina judicial portuguesa.
Todavia, o pior chega com o impedimento de entrada do visado nas instalações onde durante anos, talvez décadas, exerceu a sua actividade profissional; onde deixou todo o seu suor, as suas ideias, a sua dedicação e natural socialização dentro de um ambiente controlado que, fatalmente, criou uma teia de relações pessoais. É precisamente aí que se inicia a tortura chinesa da difamação e da injúria: dentro das instalações, “no escurinho do cinema” (sem dropes de anis), longe da vista e do coração do terrível aviltador do status quo, sem qualquer hipótese de defesa, inicialmente difundida pelos donos do poder e perpetrada diariamente nos corredores através do boato e da inócua maledicência, e depois propagada até por aqueles que um dia havíamos reputado como colegas de trabalho dignos da nossa confiança e até, em alguns casos, como amigos fora do círculo restrito das relações profissionais. É precisamente aí que ficamos a conhecer, sem hipótese de remissão, a mesquinhez da natureza humana, a baixeza, a vileza, o grau de maleabilidade moral de seres intrinsecamente reptilários.
Já não me recordo de quem o disse, mas louvo-lhe a coragem por haver proferido a seguinte frase: «frequento muito pouco a natureza humana». Atribuo, hoje em dia, um valor imensurável à independência e à sujeição mínima perante uma hierarquia. Como diz o Miguel Esteves Cardoso na última Ler, prefiro ser «autor de mim próprio» nem que isso faça de mim materialmente mais pobre.
Sem conhecer a visada, e tão-pouco vislumbrar a hipótese de algum dia a poder vir a conhecer; sem conhecer o processo em causa, mas divisando, infelizmente, os contornos que por ora assume e que, mais tarde, irá decerto assumir, gostaria de manifestar a minha solidariedade a Joana Morais Varela, que de um momento para outro se viu despojada de um projecto que erigiu e ajudou a retirar, em definitivo, a Colóquio/Letras dos escombros da ociosa intelectualidade lusa.

Do Poder: a incubação dos medíocres
Muitas vezes, a forma mais vil de se obter o poder, ao contrário do popularmente determinado, não é aquela onde se o conquista pela força. Ela advém de um sistema genericamente considerado como o mais “humanamente benigno”, a democracia.
Winston Churchill disse, mais ou menos por estas palavras, que «a democracia é o pior de todas as formas de governo, com excepção de todos as outras que a História já deu a conhecer ao mundo».
A inquietação implícita nesta frase leva-nos ao reconhecimento cabal das falhas dos sistemas democráticos.
Arriscar-me-ia a afirmar que a democracia, na sua fase de maturidade, conduz à alienação das massas, ao triunfo dos medíocres e à permanente insatisfação das franjas populacionais que lutam por ideias de transparência, honestidade e de desenvolvimento sustentado da condição humana.
Cada acto eleitoral deveria corresponder a um acto de renovação da esperança dos eternos insatisfeitos com a classe governativa. Quando falo de classe governativa não me circunscrevo àquela que administra e representa os destinos da nossa pátria, seja ela qual for. O conceito é mais abrangente, incluindo as micro-relações de poder que vamos enfrentando na nossa vivência quotidiana.
O respeito pela democracia plena determinaria “1 Homem – 1 voto”. Empiricamente, afigura-se-nos como a solução mais generosa no sentido de garantir a participação plural de todos os membros que compõem uma dada comunidade ou uma dada organização no processo de tomada de decisão. Todavia, o somatório das vontades individuais não é igual à vontade colectiva, na medida em que o jogo da procura pela solução consensual implica, à partida, cedências de alguns desejos de cariz pessoal para benefício da colectividade.
Parece um simples truísmo, mas convém salientar que é impossível conciliar posições individuais quando estas se revelam antagónicas, sob pena de o próprio sistema democrático não funcionar. Logo, os grupos formam-se por pessoas que têm valores, comportamentos, atitudes e objectivos similares. Agrupam-se, em primeiro lugar, pela identificabilidade.
Depois de constituídos os grupos, que normalmente se arrogam de representativos de determinadas franjas sociais, há a definição da acção comum de forma a seduzir os indecisos e engrossar fileiras para a conquista da vitória final, que se poderá facilmente traduzir pela conquista do poder – é todo um léxico marcial que mais bem se adequa à explicação da génese do poder.
Inicia-se o processo de governação, normalmente começa-se por satisfazer as clientelas políticas, distribuem-se os poleiros, hierarquizados pela notoriedade, poder de influência e pelo pretenso grau de operacionalidade ou mais-valia técnico-científica. Posteriormente, tomam-se decisões de fundo e afastam-se algumas vozes críticas que, potencialmente, pelas suas integridade e idoneidade, podem constituir um entrave à governação. Arrebanham-se os volúveis e os medíocres com promessas vãs de status social, de engrandecimento da reputação e/ou com estabilidade governativa, já que geralmente o seu valor de mercado é acessível.
Quem detém o poder governa para si e para os seus e intimida os oponentes que, de forma resistente, ainda perduram, quais obstáculos, no horizonte de poder dos dirigentes.
Ao ostracismo são votados os que permanecem com as suas convicções e, o pior de tudo, são apontados a dedo, pelos neodominados partidários da elite governamental, como destruidores da instituição ou da comunidade a que pertencem e das suas vidinhas conformistas.
Usualmente, vigora a tese da intimidação pelo bem colectivo – que para os poderosos significa a eternização no poder, manutenção do status quo e conservação ou expansão do açambarcamento de privilégios extraordinários –, que é divulgada, amedrontando: "o bem colectivo" poderá ser destruído pelos, por si denominados, com direito a comunicação explícita usando os gratuitos megafones do poder, “difamadores” e/ou “sequiosos de poder”, de forma a garantirem a imposição das suas vontades individuais.

Confesso. Não sei quem de mim merece um maior sentimento de comiseração, se os medíocres que sabem que são medíocres, ou aqueles que, devido à ignorância, se acham autorizados a intervir pelo bem comum. Estes últimos são os coitados que interferem nas nossas vidas com a consciência tranquila de que contribuíram de forma decisiva para a comunidade. Os primeiros são os parasitas da sociedade, aqueles que cedem, que recuam, que deambulam neste mundo esquecendo amigos, parentes, vizinhos, colegas de profissão, e, mais grave ainda, os valores mais nobres e elevados da sinceridade, honradez, amizade, compaixão, integridade e, acima de tudo, da lealdade nas relações humanas, que deveriam ser orientadores do seu comportamento nas suas mesquinhas vidas.
A democracia emprenha intimidadores, concebe medíocres e afasta aqueles com opiniões próprias.

Mas haverá melhor sistema!? (voltar a "Do Processo")

(Imagem:A Destruição do Leviatã” gravura de Gustave Doré, 1865, para a Bíblia Sagrada: Isaías, 27)