É domingo, dia quase oficial das citações tout court neste blogue, mas no entanto… Uma vontade irreprimível, como se os dedos que comandam as teclas houvessem ganhado vida, autónoma, independente da vontade da alma que se lhes infiltra a carne… é fraca, eu sei. Talvez, à laia de lenitivo lúbrico, o Soneto CXXIX de Shakespeare não fosse má ideia.
Recriando as palavras do outro, barricado em Novembro 1975 no Parlamento português, não gosto que façam sexo comigo quando contrariado…
Magalhães, vendido como tremoços em cimeiras internacionais… que vergonha! Por favor, não façam amor comigo sem a minha anuência!
(Auxiliar de leitura da citação: o rei que se segue, em conversa com o seu criado – que poderia ser a representação fiel de todos nós –, tem o hábito imperial de se referir a si mesmo na primeira pessoa do plural.)
«– Somos o Imperador da Índia, Bhaktri [sic] Ram Jain, mas não somos capazes de escrever o raio do nosso nome […]
– Sim, ó ditosíssima entidade, pai de muitos filhos, esposo de muitas esposas, monarca do mundo, abarcador da terra – respondeu Bhakti Ram Jain [o criado], estendendo-lhe uma toalha. Esta altura, a hora do levantar do rei, era também a hora da lisonja imperial. Bhakti Ram Jain detinha orgulhosamente a categoria de Lisonjeador Imperial de Primeira Classe, e era mestre no floreado estilo da velha escola conhecido por bajulação cumulativa. Só um homem com uma memória excelente para as barrocas formulações dos encómios excessivos era capaz de bajular cumulativamente, devido às repetições exigidas e à necessária precisão da sequência. A memória de Bhakti Ram Jain era infalível. Era capaz de bajular durante horas.
[…]
– Somos o rei dos reis, Bhakti Ram Jain, mas não somos capazes de ler as nossas próprias leis. Que dizes a isto?
– Sim, ó mais justo de todos os juízes, pai de muitos filhos, esposo de muitas esposas, monarca do mundo, abarcador da terra, governante de tudo o que existe, congregador de todo o ser – volveu Bhakti Ram Jain, fazendo aquecimento para a sua tarefa.
– Somos a Sublime Radiância, a Estrela da Índia e o Sol da Glória – disse o imperador, que sabia também uma ou duas coisas de lisonja, – e contudo fomos criados naquela esterqueira de cidade onde os homens fodem com as mulheres para fazerem filhos mas fodem com rapazes para os fazerem homens, criados tanto a estar alerta ao atacante que operava pelas costas como ao guerreiro mesmo na nossa frente.
[…]
[A bajulação do criado continua no seu mais firme estoicismo (nota minha)]
– Sim, ó mais perspicaz que os Videntes, pai de muitos...
– És um bode ao qual se devia cortar a garganta para podermos comer a sua carne ao almoço.
– Sim, ó mais misericordioso que os deuses, pai...
– A tua mãe fodeu com um porco para te fazer.
– Sim, ó mais eloquente de todos quantos têm eloquência, p...
– Deixa lá – atalhou o imperador. – Já nos sentimos melhor. Vai-te embora. Podes viver.»
Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, pp. 44-45.
[Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Outubro de 2008, 343 pp.; tradução de J. Teixeira de Aguilar; obra original: The Enchantress of Florence, 2008.]
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