sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Hipopótamos cozidos

Em termos literários, os anos 50 do século passado foram assolados por uma turba, que curiosamente germinou numa universidade, na Columbia University, em Nova Iorque, e que rapidamente foi baptizada de Beat Generation – o termo foi usado pela primeira vez pelo próprio Jack Kerouac e posto em papel num artigo no The New York Times por John Clellon Holmes e no seu romance de 1952 (dito) iniciador do movimento, Go. Também ficaram registados na História da Literatura pelo prosónimo tardio de beatnik.
Eram bêbados, toxicómanos e sexualmente promíscuos reunidos sob o signo das artes, cujos principais representantes ainda hoje se distinguem num trio que se destacou entre os reais fundadores do movimento: Kerouac, Ginsberg e Burroughs (este último não estudou em Columbia).
Em Agosto de 1944, em Riverside Park, um dos discípulos e amigo íntimo da dupla Kerouac e Burroughs, Lucien Carr (1925-2005), então com dezanove anos, esfaqueia barbaramente David Kammerer, por alegada tentativa de violação deste último ao mais novo, que já o assediava quando Carr ainda tinha uns imberbes catorze anos. Kammerer de 33 anos, amigo de infância de Burroughs em St. Louis, foi professor e era frequentador do círculo Beat.
O corpo de Kammerer é atirado ao rio Hudson e Carr refugia-se no apartamento de Burroughs, onde encontra Kerouac, trazendo a arma do crime, ainda ensanguentada, na mão.
Parte deste episódio vem descrito no romance semi-autobiográfico de 1968 de Kerouac, Duluoz, o Vaidoso (Vanity of Duluoz) – é a última obra escrita por Kerouac, que viria a falecer em 1969 –, onde para além do herói epónimo representar o próprio autor, aparecem os personagens Lucien Carr, com o nome ficcional de Claude, e David Kammerer, travestido de Mueller:

«No momento em que vou a passar diante da St. Paul’s Chapel, no campus, e começo a descer as velhas escadas de madeira que ali existiam, eis que surge Mueller no seu passo saltitante e ávido, de barbas, na penumbra, a caminhar na minha direcção, avista-me, pergunta: – Onde está o Claude?
– No West End.
– Obrigado. Até à vista! – E vejo-o precipitar-se ao encontro da morte.
[…]
[E]is ali Claude, de pé ao meu lado, com o cabelo loiro nos olhos, a sacudir-me pelo braço. […] Ele diz “Bom, despachei o velho a noite passada.”
[…]
– Para que é que foste fazer uma coisa dessas?
– Agora não há tempo para isso, ainda tenho a navalha e os óculos dele todos sujos de sangue. Queres vir comigo, a ver como é que havemos de os deitar fora?
[…]
– Apunhalei-o doze vezes no coração com a minha navalha de escuteiro.
– Porquê?
– Ele atirou-se a mim. Disse que me amava imenso e essas coisas todas e que não era capaz de viver sem mim e que me ia matar, que nos ia matar aos dois.
»
Jack Kerouac, Duluoz, o Vaidoso, pp. 236-237.
[Lisboa: Relógio D’Água, Abril de 2008, 285 pp.; tradução de Paulo Faria; obra original: Vanity of Duluoz, 1968]

Dois dias depois, Carr entregava-se às autoridades, e Kerouac e Burroughs são presos por cumplicidade. Burroughs sai sob fiança paga pela família, Kerouac permanece na prisão por recusa terminante do seu pai em pagar aquele valor fixado pelo tribunal. Kerouac só sairá após um casamento meteórico com Edie Parker, que assim pode aceder aos fundos da herança deixados pelo seu avô e pagar a fiança ao marido – ambos anulam o casamento passado um ano. Carr, atendendo à sua idade na altura da ocorrência dos factos e da prova produzida no que respeita ao assédio permanente de Kammerer, é condenado apenas por homicídio em 2.º grau e ao internamento num reformatório entre um e sete anos, sai ao fim de dois.

Em 1945, Kerouac e Burroughs escrevem um romance a duas mãos, a que deram o título de And the Hippos Were boiled in Their Tanks (tradução literal: E os hipopótamos foram cozidos nos seus tanques), título grotesco que tem na sua origem um incêndio ocorrido no zoo de Nova Iorque onde os colossais mamíferos foram literalmente cozinhados – Consider the Hippo, poderia ter sido um título de um manifesto de defesa dos animais escrito pelo recentemente falecido David Foster Wallace, se a prática do “hipopótamo suado” tivesse alastrado às ementas dos restaurantes no mundo ocidental.

Sessenta e três anos depois, a Grove Press (nos EUA) e a Penguin (no Reino Unido) publicam o dito romance.


«WILL DENNISON*

»Aos sábados à noite os bares fecham às três da manhã, assim cheguei a casa por volta das 3:45, depois de ter comido o pequeno-almoço no Riker’s na esquina da Christopher Street com a 7.ª avenida. Atirei o News e o Mirror para cima do sofá e esbulhei-me do meu caso de seersucker atirando-o para cima deles. Eu ia direitinho para a cama.
Nesse instante, a campainha tocou. É uma campainha estridente que te trespassa, logo apressei-me pela sala para carregar no botão e abrir a porta lá de baixo. Tirei o casaco do sofá e assestei-o a uma cadeira para que ninguém se sentasse em cima dele, e meti o jornais numa gaveta. Eu queria ter a certeza de que eles ainda estariam por cá quando acordasse durante a manhã. Caminhei em direcção à porta e abri-a. Eu cronometrei o tempo preciso para que eles não tivessem hipótese de bater à porta.
Quatro pessoas entraram na sala. Agora, dir-vos-ei de forma genérica quem eles eram e como era a sua aparência, uma vez que a histórica diz sobretudo respeito a dois deles.
»
William S. Burroughs e Jack Kerouac, And the Hippos Were Boiled in Their Tanks, pp. 3-4 [tradução: AMC]
[New York: Grove Press, first edition, November, 2008, 224 pp.]

Nota: *os capítulos de Will Dennison, detective de profissão, foram escritos por Burroughs.

E assim se divertiam os beatniks, deixando os bacanais e as orgias de drogas e álcool de lado, esfaqueavam-se uns aos outros e, por vezes, há quem diga, interpretavam com afinco o papel do herói o suíço William Tell e dedicavam-se ao famoso jogo da maçã, substituindo o arco e a flecha por um revólver… é um problema de Guilhermes, enquanto um procurava salvar e salvou a mulher, o outro matou acidentalmente a sua na prática desse jogo delicioso, para confessar décadas depois que a matou intencionalmente porque já não a suportava.

1 comentário:

El-Gee disse...

curiosamente, acabo de comprar "On the road", numa deliciosa edicao revivalista da Penguin, que editou alguns (penso que cerca de 50 ) dos seus clássicos em edicoes baratissimas com o look de decadas passadas (apenas as faixas com cores e o titulo a negro)