quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Jukebox

Enquanto não consigo redimensionar a merda da grafonola aqui ao lado, para que esta exiba e permita o usufruto de todas as suas potencialidades, a lista “Regresso ao Passado” (que aqui dei conta) sofreu algumas alterações, quiçá para melhor, mantendo os 45 grupos musicais, porém alterando uma ou outra canção, que lhes havia atribuído num processo onde imperou a preguiça de procura, e introduzindo mais 10 grupos que fazem parte do meu imaginário. Ei-los por ordem alfabética:
Dead Can Dance, Electronic, Faith No More, Killing Joke, Nine Inch Nails, Q. Lazzarus, The Dandy Warhols, The Durutti Column, The Fall e Tones on Tail.

Ouvi e desfrutai, irmãos bloggers!

Ele está entre nós!

Sábado (bem que podia ser numa quinta-feira!), 10 de Março de 2007, pelas 14 horas, Gilbert Keith C. – decerto o mais recente fundador de um dos ramos do bartlebyanismo, o Bartleby Zombie – autografará na Livraria Centuries & Sleuths, em Forest Park, no estado norte-americano do Illinois, o seu mais recente livro de 1926 The Outline of Sanity (nem de propósito!)

O Rogério
conta a história.

Adianto, no entanto, a informação que a apresentação estará a cargo do inefável Padre Brown, ao que dizem para exorcizar alguns espíritos... iluminados.

Dois anos de insurgência

Os parabéns chegam atrasados, é certo, mas ainda não é tarde para uma saudação.
O Insurgente completou ontem dois anos de existência.
Felicitações à equipa e em especial ao meu homónimo Azevedo Alves, pessoa com qual divirjo convictamente na sua fé inabalável num Deus justo, crença que cheguei perfilhar mas que aos poucos fui perdendo – religiosidade transmitida por atavismo que, pelas agruras da vida e ao contrário da maioria que pelo sofrimento caminha em sentido inverso.
Todavia, há consonâncias manifestadas, de forma irredutível,
neste ponto e, de forma aparentemente diversa porém de substância similar, numa economia de pendor liberal, no meu caso mais ao jeito deste – quase ignorado pelas escolas de pensamento económico, mas que lançou as bases da economia participativa, enfatizando as potencialidades e as virtudes da produtividade do capital, em detrimento, da invocada até exaustão, produtividade laboral.

Amiguismos?

John Banville recenseia o último romance de Martin Amis, House of Meetings, no Volume 54(3), de Março deste ano, da The New York Review of Books.

Nesta obra, Amis retrata o horror dos Gulags estalinistas pelos olhos de um ex-exilado russo, agora octogenário, milionário e a residir nos Estados Unidos, que decide, no fim da sua vida, viajar até ao local onde despendeu catorze tenebrosos anos da sua juventude na companhia do seu meio-irmão, e viu e sofreu as mais bárbaras atrocidades do regime comunista soviético. Pelo meio vagueia o espectro de uma paixão de ambos pela mesma mulher, uma garbosa judia que mais tarde será a mulher do seu irmão e que esteve na origem da prisão arbitrária deste e na consequente deportação para os campos da Sibéria, havendo sido acusado de exultar a América quando, numa fila de uma cafetaria, este se referia à mulher da sua vida a quem atribuiu o nome de código “America”. (Para mais informações, ler a recensão)

A sinopse é sugestiva. Martin Amis há muito que, por mérito próprio, dispensa quaisquer apresentações. A recensão do ilustre Banville deixou-me uma enorme expectativa da real qualidade da obra. E depois, há todo aquele delicioso jogo de “quem influencia/influenciou a escrita do autor” que, pelos escritores referenciados, enredam de forma inapelável um apaixonado pela Literatura com os seus mais insignes autores: Amis é um admirador de Vladimir Nabokov, que todavia foi influenciado no início dos anos 80 por Saul Bellow, que por sua vez procurou ser um Gustave Flaubert americano até ter escrito As Aventuras de Augie March,... and so forth

Banville termina com uma pequena queixa, se é que, como ele diz, se trata mesmo de uma queixa:

«House of Meetings is a rich mixture, all the richer for being so determinedly compressed. In fewer than 250 taut but wonderfully allusive, powerful pages Amis has painted an impressively broad canvas, and achieved a telling depth of perspective. The first-person voice here possesses an authority that is new in Amis's work. It is as if in all of his books he has been preparing for this one. In his depiction of a nation stumbling, terrified and terrifying, through rivers of its own, self-spilt blood, he delivers a judgment upon a time—our time— the spectacle of which, if it had been but glimpsed by the great figures of the Enlightenment on whose reasonings and hopes the modern world is founded, would have struck them silent with horror. Stalin and Stalin's Russia have provided Martin Amis with a subject worthy of his vision of a world which, as Joseph de Maistre has it, is "nothing but an immense altar on which every living thing must be immolated without end, without restraint, without respite, until the consummation of the world, until the extinction of evil, until the death of death,"[10] and in which, in the cruelest of Wildean ironies, the victims of tyranny survive to become tyrants in their turn, destroying even those whom they love most dearly. It is a bleak vision, assuredly, yet as always in the case of a true work of art, our encounter with Amis's dystopia is ultimately invigorating.»

(nota: olha quem fala! O tal que escreveu uma obra-prima, vencedora do Booker, com cerca de 200 páginas na versão original inglesa – na portuguesa conta com 176 páginas.)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Mais uma…

E de que maneira!
Desta feita foi a Universidade Independente:
«Tráfico de diamantes, fraude fiscal e falsificação de assinaturas e de documentos na Universidade Independente (UNI), em Lisboa, estão a ser investigados pela Polícia Judiciária.» [in
Correio da Manhã, 27/02/2007]

Mas já foram outras, umas com
casos já julgados em forma de rato parido por uma prometedora e incomensurável montanha, outras caíram no olvido do imbricado da Arquivadoria-Geral da República e outras ainda caminham de negação em negação.

Porém, em jeito de prognóstico, uma vez mais o Apito Dourado tudo ofuscará, como convém à súcia das correntes subterrâneas do crime de colarinho branco em Portugal. Aliás, a impunidade – que resulta na obnubilação das relações perigosas entre estas instituições, o poder político e judicial, partidos, seitas, bancos financiadores e agentes representantes de interesses imobiliários – tem sido o seu melhor predicado.

Apetecia-me terminar este com um kizomba, mas venceu uma vontade inaudita de trautear um sambinha (talvez em tom de modinha) nesta vasta e multicolor Aquarela que contrasta, e muito, com o branco dos colarinhos:
«Brasil, terra boa e gostosa / Da morena sestrosa / De olhar indiscreto / O Brasil verde que dá / Para o mundo se admirar / O Brasil do meu amor / Terra de Nosso Senhor / Brasil! Brasil!» [Ary Barroso, excerto de Aquarela do Brasil]

O Engenho Revisitado

Javier Bardem no papel de Reinaldo Arenas em «Antes que anoiteça»Como aqui referi, li O Engenho de Reinaldo Arenas no início deste ano.
Desconhecia a obra do autor cubano, apenas lhe conhecia a vida atribulada encarnada por Javier Bardem em Antes que anoiteça. Agora conheço-lhe as entranhas – salvo seja! – pela eloquência da sua prosa poética, pelo sofrimento e pela revolta interior sublimadas em arte literária. Lendo-o percebe-se a dor, o terror do poder discricionário exercido em nome de uma causa apelidada de justa, como se pelo sangue de milhões de inocentes se conseguisse fazer justiça… até à vitória, sempre, pisando os cadáveres daqueles que um dia ousaram ser diferentes.

Vale a pena ler as
palavras transcritas pelo Tomás no seu Hoje há conquilhas..., curiosamente postadas no dia em que a RTP exibia um filme – bem ao estilo muito em voga da película-Omo – sobre as viagens, em cima de uma Norton, do inocente braço direito do ideador do Paredón.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Oscares 2007

A melhor cerimónia de entrega dos Óscares da Academia das Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood desde a fabulosa e surpreendente noite de Março de 1992.

Ellen DeGeneres ao nível de Billy Crystal.

Excelentes trechos dirigidos pelos meus muito apreciados realizadores Giuseppe Tornatore e Michael Mann.

Nada é por acaso, quando vi o trio Coppola/Lucas/Spielberg no palco para anunciar o Óscar para melhor realizador só um nome sobreveio ao meu pensamento, Martin Scorsese.

Ladies & Gentlemen, good night!

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Regresso ao Passado

Na coluna do lado direito deste blogue figurará, durante algumas semanas, uma pequena colectânea de 45 músicas que povoaram o meu imaginário entre o início da minha adolescência de rebeldia sem causa e o início da idade das grandes decisões – esta última poder-se-ia definir como os meus middle twenties.
A lista contém algumas das bandas ou cantores que me acompanharão até ao fim dos dias. Todavia, as canções seleccionadas não querem significar que são as melhores entre as melhores, resultaram apenas de um rápido processo de escolha na impossibilidade – auto-imposta – de abarcar mais do que um intérprete por lugar nos 45 postos à disposição pelo fornecedor do serviço de escuta.

Ei-las (por ordem alfabética do nome de quem as interpreta):

  1. Bela Lugosi's Dead – Bauhaus
  2. Girls – Beastie Boys
  3. Don't Need a Gun – Billy Idol
  4. Evangeline – Cocteau Twins
  5. Don't Panic – Coldplay
  6. China Girl – David Bowie
  7. Lips Like Sugar – Echo And The Bunnymen
  8. I Heard Ramona Sing – Frank Black
  9. 24 Hour Party People – Happy Mondays
  10. The Passenger – Iggy Pop
  11. Jane Says – Jane's Addiction
  12. Far Gone and Out – Jesus & Mary Chain
  13. Sister Ray – Joy Division
  14. Perfect Day – Lou Reed
  15. So Alive – Love and Rockets
  16. Angel – Massive Attack
  17. Dreams Never End – New Order
  18. As I Sat Sadly by Her Side – Nick Cave & The Bad Seeds
  19. Molly's Lips – Nirvana
  20. Jeremy – Pearl Jam
  21. Socrates the Python – Peter Murphy
  22. Arnold Layne – Pink Floyd
  23. Every You Every Me – Placebo
  24. It's a Fire – Portishead
  25. Country Girl – Primal Scream
  26. (This Is Not a) Love Song – Public Image Limited
  27. The National Anthem – Radiohead
  28. EMI – Sex Pistols
  29. Israel – Siouxsie and the Banshees
  30. This Corrosion – Sisters of Mercy
  31. Disarm – Smashing Pumpkins
  32. 100% – Sonic Youth
  33. Fortunately Gone – The Breeders
  34. Janie Jones – The Clash
  35. Human Fly – The Cramps
  36. A Forest – The Cure
  37. Wave of Mutilation – The Pixies
  38. Lorca's Novena – The Pogues
  39. I Wanna Be Well – The Ramones
  40. Panic – The Smiths
  41. Strange Little Girl – The Stranglers
  42. Sweet Jane – The Velvet Underground
  43. Song to the Siren – This Mortal Coil
  44. Rez – Underworld
  45. American Music – Violent Femmes

Nota: Agradecimentos a CJ do blogue (éter) pelo facto de me ter dado a conhecer esta plataforma à laia de jukebox.

A Porta no Chão

Este é o título de um conto ilustrado para crianças, escrito e desenhado por Ted Cole, personagem de ficção idealizada pelo escritor norte-americano (n. 1942) John Irving no seu excepcional romance de 1998, Viúva por Um Ano (A Widow for One Year).
Aclamado internacionalmente pelos romances O Estranho Mundo de Garp (The World According to Garp, 1978), o grande impulsor da sua carreira e, entre outros, As Regras da Casa (The Cider House Rules, 1985) – por este último Irving venceu o Óscar para Melhor Argumento Adaptado em 2000, filme realizado pelo sueco Lasse Hallström –, John Irving merece que lhe dedique este texto porque neste preciso momento a TVI transmite o filme de 2004, A Porta no Chão, realizado por Tod Williams e protagonizado por Jeff Bridges e Kim Basinger, inspirado num romance que me deixou saudades depois de o haver lido.
O filme apenas retrata a primeira de três partes que constituem o romance de Irving, Viúva por Um ano.
A Porta no Chão não se trata de um excelente filme, longe disso, todavia não se poderão dar como perdidas as suas quase duas horas de duração, principalmente para quem leu o livro.

Como já referi, um bom livro – na minha muito subjectiva opinião – é aquele que, apesar de repousar num qualquer canto da casa, enquanto nos encontramos a meio da sua leitura exerce sobre nós um fascínio de tal ordem que, no desempenho das nossas tarefas diárias, todo o tempo a que a ele não dedicamos parece criar-nos uma ânsia inaudita e no limite uma sensação de infelicidade. Se a isso juntarmos a envolvente do momento, um estado de espírito que, maioritariamente, por questões que extravasam a nossa vontade, se caracteriza por uma vulnerabilidade de ordem afectiva ou sentimental, a leitura transforma-se num alimento indispensável da alma, um refúgio da realidade que no-la dilacera, como um corte na carne produzido por facas afiadas na melhor pedra de moleiro.
Foi essa a experiência por que passei durante a minha leitura de Viúva por Um ano.
Em 2002 materializou-se, pela lei da vida – que, paradoxalmente, se consubstancia na morte –, a época mais difícil da minha, porventura, ainda curta existência. A profunda plangência advinda de uma dor lancinante por uma perda jamais compensável, inesperada, cruel na sua plenitude. E o romance trata disso mesmo, da dificuldade do ser humano em suportar a dor, das camuflagens que erigimos, da derrota e da desistência da vida, do sofrimento que, sem darmos por isso, infligimos àqueles que nos rodeiam no momento em que só nos apetece gritar, desfazermo-nos em lágrimas, soltar a amargura agrilhoada, anunciar ao mundo a devastação provocada por essa perda insanável.
John Irving não é reconhecido pela crítica talvez porque, tal como Grisham, consegue vender livros em barda. Não fosse um dos raros momentos de cedência do meu superego literário – construído pelo preconceito na leitura dos supostamente doutos da Literatura – ficaria a desconhecer, tal como As regras da Casa, esta obra-prima da literatura contemporânea.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Do pé para o chinelo

Ou vice-versa. Com tranquilidade.

O Mustang, memorável cigano das grandes noites europeias, ia pondo o Special One, agora a sério!, de cabeça à roda na sua desmedida incapacidade de reconhecimento do brilhantismo alheio… «Já a seguir não perca…» E o que me interessa isso a mim? Dragão hipnotizado por uma paixão que não se explica – como todas, não será assim? – a ver o “7” da sorte, das maravilhas e das partidas do mundo, a pôr a cabeça em água àquele que veio a sério – terá sido desta? – e o jovem francês com nome de soltura, como se diz em terras transmontanas... «a primeira entrevista do senhor Procurador…» Foda-se!

Glosando blogger recatado, em nome de D. Pedro IV – algures por essa imensa blogosfera – «é a Elisabete!» Elisabete, com “s” ou com “z”, corruptela da virgem, a primeira, e da mãe infortunada, a segunda, ou quiçá uma terceira, a manicure do Cabeleireiro Soraia na rua direita, mais esconsa, de Rio Tinto.

E sai poema (para descontrair):
À Câmara Elisabete vai
Sindicar o Carmona,
A ver se em esquecimento cai
O processo Furacão (?)

«E a Operação Furacão? Já ninguém fala nela!»
Ele, o Especial à boa maneira do estrelato em solo luso, não gosta dos “Megas”, se Ferreira, apoio, se bytes – mas é f... – é imperdoável na sociedade da informação.
O homem criador da "Bete" quer transformar O Furacão em Furacõezinhos… Homessa, ao menos essa – rima estúpida e voluntariamente pobre – porque quisera ele mudar de laços e de filhos passasse à mãe… o desastre deixaria de ser apenas a impunidade que se espera, aditar-se-lhe-ia um lapsus linguae – a introdução do prefixo cunnus não seria despiciendo – que encheria de humor cada esquina, até como sucedâneo do par de salazares para impôr ordem neste país cheio de gajos com tesão, mas tristemente sem concretização.

Descalcei o pé que havia fugido pouco antes para o chinelo. Fui-me deitar e, entre a vigília e o sono solto, só me lembrava daquela em que Cristo chorava, não pela impotência revelada ante a constatação da impossibilidade de cura da malformação através de milagre, mas, por si só, ser-se português já é tristeza que baste.

Apaguei a luz.

Booker Prize 2006 - Em Portugal

Estará brevemente disponível em língua portuguesa o romance The Inheritance of Loss da escritora de origem indiana Kiran Desai, vencedor do Man Booker Prize for Fiction de 2006, sucedendo-se, na galeria dos notáveis, à pequena obra-prima O Mar do meu muito apreciado autor irlandês John Banville.
A Herança do Vazio – título que recebeu em Portugal – foi editado pela
Porto Editora que, finalmente, se lançou no mercado editorial da ficção.

De notar que, com a publicação deste romance, três dos seis finalistas do prestigiado prémio já se encontram editados na nossa língua – galardão atribuído a obras de ficção originalmente editadas em língua inglesa no Reino Unido, Commonwealth e Irlanda –, juntando-se, assim, ao excepcional romance de Sarah Waters, O Vigilante, editado pela Bizâncio, o qual considerei estar entre os dez melhores livros de ficcção estrangeira editados em Portugal em 2006 e por mim lidos até 31 de Dezembro do ano passado (
ver aqui), e ao recentemente estreado Em terra de Homens, de Hisham Matar, publicado pela Civilização Editora, que já aqui dei conta.

Para ler um excerto do 1.º capítulo da obra,
carregar aqui.

Até à sua compra, seguida de leitura, parafraseando o bombo de festa dos blogues que, de certa forma, se dedicam à coisa literária, bons livros!


Nota: Para obter mais informações sobre esta obra, aceder a esta página da Porto Editora.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Explicativo


A entrevista concedida ontem por Fernando Pinto Monteiro a Judite de Sousa na RTP revelou à saciedade a necessidade que o responsável máximo por uma organização que, devendo acompanhar e proteger os cidadãos, directa ou indirectamente, afectados nos seus direitos, liberdades e garantias por terceiros, se encontra completamente desacreditada aos olhos da opinião pública, em geral, e ante aqueles que, em particular, se socorrem da máquina judicial para que seja responsabilizado criminalmente e, em termos cíveis reparado e/ou compensado, o dano infligido pelos tais terceiros.


Com efeito, a Procuradoria-Geral da República – há quem a cognomine de Arquivadoria ou de Prescritoria – e toda a estrutura do Ministério Público sob o seu domínio, são normalmente rotuladas pelo cidadão comum de nebulosas e ingovernáveis, dada a imbricada estrutura de comando, que por vezes parece atingir contornos notoriamente kafkianos, na estrita medida em que confere o poder absoluto a milhares de funcionários do estado, cujas acções de investigação, no âmbito do processo de inquérito, e de arquivamento ou de acusação no final desse processo, dificilmente serão objecto de escrutínio para que, de forma clara e inequívoca, se responsabilize o funcionário encarregado pelo eventual cometimento de infracção negligente ou dolosa na prossecução das suas tarefas de interesse público.

Por exemplo, no caso de um arquivamento de um crime de acusação particular devido ao não cumprimento dos prazos de investigação pelo magistrado do Ministério Público encarregado do inquérito, ou seja, por prescrição do direito de acção penal sem culpa do queixoso, quem é o responsável?


A resposta a esta pergunta não apela a algum esforço de abstracção: neste caso concreto é o Estado, logo o prejudicado – o queixoso que viu a sua queixa-crime desmoronar por culpa do Ministério Público – só poderá intentar uma acção judicial de ressarcimento contra o Estado que, para além de cara – taxas de justiça, custas, honorários do(s) advogado(s) de defesa –, funciona, na prática, como uma autêntica máquina de tortura já que, por regra, o Estado recorre até ao Supremo Tribunal de Justiça se razão não lhe for dada nas instâncias anteriores. Porém, o que de mais grave resulta num caso desta natureza é a dolorosa impunidade do denunciado que se livra, assim, da acusação do crime de que foi formalmente indiciado e, para além disso, a total impunidade – pelo menos é o que transparece dada a hermeticidade e a prática de protecção corporativa – do funcionário, o magistrado do M. P., responsável pelo não andamento do processo.

Assim só nos resta perguntar ao Sr. Procurador-Geral:

Quem nos protege dos nossos protectores?

Minimalismos

Ou serviços mínimos? Ou simples aporia?

Estou cansado da inacção de tudo querer fazer.

«Mahood. E se afinal fôssemos apenas um, como ele quer, apesar das minhas recusas? E se eu tivesse passado pelos sítios por onde, segundo ele, passei, em vez de ter ficado aqui, tentando aproveitar-me da sua ausência para arrumar o meu caso? Que faz Mahood aqui, no meu país, como é que ele passa por aqui? Cá estou eu lançado numa história inútil, cá estamos nós frente a frente, eu e Mahood, se é que somos dois, como eu digo. Não o vi, não o vejo. Ele disse-me como é, como sou, todos me disseram, deve fazer parte das suas atribuições. Não basta que eu saiba o que faço, também tenho de saber como sou.»
Samuel Beckett, O Inominável (pág. 43)
(Lisboa: Assírio & Alvim, Março de 2002, 189 pp.; tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo; obra original: L’Innomable, 1953)

Ou será Basile? Se já foi Murphy, Molloy ou Malone? Ou até terá sido a dupla Mercier & Camier?
O que interessa à história? Um nome? Quem? Sem perguntar a mim mesmo!

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Desassossego

O Génio escreveu:
«With never a word exchanged they grew to be as one.»

Samuel Beckett's Ohio Impromptu (1980)



Blue Angel Films & Tyrone Productions - 2001
para
BBC / Channel 4 Television Corporation

Leitor: Jeremy Irons
Ouvinte: Jeremy Irons

Realização: Charles Sturridge

Sem mais comentários.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Bartleby

É caso para dizer que o assédio continua. Evoco de novo o Sérgio Lavos e o seu Auto-Retrato, agora a propósito da sua excelente sucessão de textos sobre os Bartlebys deste mundo.
Este texto do Sérgio recorda um episódio ficcionado de Enrique Vila-Matas numa deambulação por Nova Iorque. Vila-Matas encontra Jerome David, ou melhor, J.D. Salinger num autocarro, mas, simultaneamente, julga ver ao seu lado o amor da sua vida. Uma rapariga que despertou no autor uma paixão assolapada e a forte convicção do tal raríssimo encontro com a alma gémea. Eis o dilema: as mulheres ou a Literatura?
Salinger, é o epítome do Síndrome de Bartleby – o escrivão do conto de Herman Melville, ao que dizem inspirado em R. W. Emerson. E mais não direi, o enlace vem na nota de rodapé n.º 31 ao texto invisível de Bartleby e Companhia de Enrique Vila-Matas: – Não te preocupes. Por amor de Deus, não te preocupes. (que repetitivo!)

Mas o mais fascinante na Bartlebylândia é imperfeição revelada em alguns dos seus habitantes menos ortodoxos. Por exemplo, Salinger é um Bartleby ortodoxo, deixou de escrever e acabou-se (a propósito: tem algum conto guardado na sua gaveta?) Com 88 anos, e há 42 sem publicar, dêem-lhe o Prémio Nobel da Literatura… do Não!
Thomas Pynchon é um caso à parte. Ninguém o vê, fotografa ou filma há décadas e Pynchon continua a publicar. É o caso de um Bartleby errático ou, se se preferir, heterodoxo em termos batlebyanísticos. Todavia, não foi Pynchon que me trouxe aqui.
Um feliz exemplo, de igual modo apontado por Vila-Matas, é o do escritor uruguaio Felisberto Hernández (1902-1964) que, para além do abandono precoce da carreira de pianista, se embrenhou nas artes literárias através da narrativa curta, cujos contos eram famosos por simplesmente não terminarem, ou melhor dito, possuírem finais incompletos. O paradigma do conto incompleto é o seu famoso texto “Ninguém acendia as luzes”, que, por muito paradoxal que possa parecer, Vila-Matas considera dispor de um final inesquecível, o qual não revelarei, porque:

A ler (em castelhano): «Nadie encendía las lámparas».

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Submissão (parte III)

Pelos seus partidários:
«A dor gosta do abismo e só quer ouvir ecos de si própria».
Hisham Matar, Em Terra de Homens (Civilização Editora), pág. 210

Eu contraponho, glosando, em parte, o louro filósofo do bairro do Falcão:
A cegueira do medíocre persegue-nos até à orla do abismo, dar o passo em frente nada tem de corajoso, é apenas um acto de amor-próprio.

Pré-Publicação

Este blogue tem a honra de pré-publicar o segundo capítulo do décimo romance de Luís Carmelo, E Deus pegou-me pela cintura, Guerra & Paz, Lisboa.

Sessões de apresentação do livro:

  • No dia 6 de Março, às 18h30, no Restaurante de Âmbito Cultural, Piso 7, do El Corte Inglés de Lisboa. Com a presença do autor. Apresentação de Francisco José Viegas;

  • No dia 13 de Março, às 18h30, na Sala de Âmbito Cultural, Piso 6, do El Corte Inglés de Gaia. Com a presença do autor. Apresentação de João Pereira Coutinho.

PRÉ-PUBLICAÇÃO


2


Da infância, Guilherme guarda a leveza do céu que sobrevoava Portalegre e o inesperado pico da Penha onde se adivinham os altos de Sousel, as ogivas da Flor da Rosa, a delicadeza do Crato e os longínquos mármores de Estremoz. Aos quinze anos, quando o pai foi trabalhar para a Sacor em Cabo Ruivo, entrou no Liceu D. Diniz nos Olivais e o paraíso encantado começou a desfazer-se. Era uma Lisboa de relvados, de vigas e torres, de autocarros podengos com dois andares esverdeados e uma ingénua combustão de transatlântico. Onde antes reinava a placidez das braseiras de cisco e pinhão, havia agora máscaras inquietas, jogos da sedução e algumas guitarras eléctricas. Guilherme parecia outra pessoa: subitamente ficou com dois metros de altura, a tez muito morena perdeu o ar eclesiástico e o cabelo encaracolado e almorávida passou a realçar ainda mais o nariz subido e o bigode sulcado. Mas quando aos dezassete anos os pais enviaram o rapaz para Évora para estudar sociologia, Guilherme sentiu um pasmo violento. Ao menos na “cidade museu” não havia “subversão”, nem “gorilas”, nem confusões e entre os alunos havia gente de “boas famílias”. Apesar dos breves protestos e da metáfora mágica da passagem “de cavalo para burro”, assim aconteceu.

Quando naquele início de Outono chegou a Évora, Guilherme teve a impressão de que a cidade era uma espécie de âncora que caíra abrupta e desamparadamente no fundo do mar. Depois dessa biogénese remota, os oceanos ter-se-iam evaporado e sobrara em torno da urbe a planura extensa e lisa onde choravam granitos austeros e sorriam com timidez as alvenarias claras. Uma catedral desproporcionada face ao resto do casario dominava e domava a quase desolação dos pátios, dos muros, dos ciprestes solitários e dos rostos paralisados que desciam pelas sombras das ruas estreitas e frias.

“A minha primeira imagem foi a de uma profunda solidão e arrepio. Lembro-me que subia a ladeira que conduz ao Jardim Diana, mesmo ao lado da faculdade (um Instituto superior regido por jesuítas), quando avistei sobre o pórtico dos Lóios um corvo que se aproximava de outro pássaro igualmente negro e espesso de plumagens. No meio daquele breu esculpido pela manhã de Outubro, apenas o bico deste último, era um melro, se distinguia do conjunto. Os pássaros pareciam ter cristalizado os seus movimentos e encostaram a certa altura os bicos um ao outro em agouro ainda hoje por explicar. Foi então que percebi que a cidade arrastava asas ocultas e semeava segredos e talvez fel a quem vinha de fora. O quadro, ao mesmo tempo arrepiante e tentador, persistia ainda no momento em que decidi avançar e cruzei a calçada granítica do templo romano para entrar finalmente no Instituto. O bico cor de mel e a azáfama negra das cabeças quase erguidas das aves acabaria assim por sinalizar o meu ingresso na ordem dos sociólogos que nunca viriam a sê-lo. De facto, desde esse ano de 1973 e durante vários e intensos meses de estudo, nunca chegaria a compreender o significado de tal ciência.”

O Instituto Superior Económico e Social de Évora, assim se chamava a faculdade, estava instalado no edifício onde uns séculos antes a segunda inquisição mais mortífera do país tinha feito jus à “História”. Não havia parede que não exalasse esse destino de horror. Nem era preciso subir ao primeiro andar para visitar a antiga sala do tribunal, local onde agora a sessão de boas-vindas se assemelhava a uma liturgia de capoeira que emprestara ao galo-mor um tremendo esporão de ornitorrinco. “Sempre imaginei, aliás, que antes de este edifício ter sido construído por aqui abundaria um cardume de limoeiros muito altos, árvores caprichosas que herdavam o ronronar antigo do mar e que haviam transformado a sua saudade naqueles citrinos de cor quente, cujo cheiro me fazia agora imaginar maresia, velames e as fontes da antiga fauna manuelina e mudéjar. E foi, de facto, quando dava a volta completa ao limoeiro gigante que escala ainda hoje pelos muros traseiros do edifício – estaria há um mês em aulas –, que vi a Rute pela primeira vez. Há sinas que vêm por bem.

Por trás do teatro de sombras densas que Évora nunca chegaria a desocultar, havia pequenos acenos de uma genealogia suave. À noite, punha-me a ver as lanternas que se perdiam nas travessas desertas, uma espécie de ferro meio forjado que embalava quatro trapézios laterais de vidro sempre coberto de pó. Dessas construções inocentes saía uma luminosidade baça como a das traineiras descoradas por excesso de navegação, ou por cisma e teima do sal. Suspensas das paredes liminarmente brancas, estas lanternas eram as jóias da desolação de Évora. E foi sob a sua luz auspiciosa que vi na expressão de Rute o grande milagre da vida. O amor. Havia uma mesma tonalidade no bico do melro, nos limões do pátio do Instituto e naquela luz de embalar a perdição das noites. A pouco e pouco, Évora começava a parecer-se com um minúsculo jardim das delícias: era uma nova cidade que se desenhava nos lençóis da cama do meu quarto onde o sangue e a iniciação se tornaram em dádiva única dos deuses.

E enquanto na cátedra falavam os descendentes das espécies maléficas que os oceanos aqui teriam há muito preservado, eu limitava-me a auscultar o olhar de Rute. Ela tinha um sorriso que se enrolava e que fazia lembrar a água a sair com fúria de uma represa. Era uma pessoa de rosto esguio, dedos finos e olhos transparentes, amarelados e bastante fixos. O cabelo muito liso da cor daquelas lagoas perdidas nas minas de cobre abandonadas. Era boa aluna e deve ter percebido, desde o primeiro dia, o que significava a ciência sociológica. Viera de Loulé, era filha de professores primários e encontrara em mim o primeiro ‘voo de longo alcance’ – cito as suas próprias palavras da época para evitar qualquer tipo de prosápia. Nesse tempo, eu empenhava-me em variadíssimas revoltas e ela achava graça ao figurão sem contudo se intrometer nos meus jogos. Lembro-me que interrompia as aulas com uivos, provocava os professores mais escolásticos, lia livros proibidos e gostava de os exibir; criava pequenos escândalos nos cafés, misturava Deep Purple com ‘mortes ao fascismo’, exibia-me portanto sem qualquer ar apaziguador ou cordato. E ela, como se fosse ainda uma doce pena apaixonada, dava-me cobertura e acompanhava-me com a maior das calmas e como se nada se passasse. No fundo, achava piada ao meu perfil de inconsequente.

Embora mais velha, havia uma prima direita do meu pai que morava em Évora há já várias décadas. Era filha de uma das muitas irmãs e irmãos que o meu bisavô, um filho bastardo da nobreza latifundiária, espalhara entre Portalegre, Monforte, Estremoz, Elvas, Borba, Vila-Viçosa, Moura, Olivença, Badajoz e até Trujillo. Casara com um veterinário que tinha grandes suíças e que arrastava botas altas de cabedal pelas calçadas da cidade e pelas mesas do Café Arcada onde praticamente só entravam homens. Essa prima, Maria Filomena (mais uma mão cheia de nomes) adorava brasões e morava numa casa grande de bons soalhos que se perdia ao longo de um corredor sombrio e cheio de retratos, molduras, jarrões, arcas e algumas cristaleiras atafulhadas por alfaias religiosas e santos carecas ou debruados com talha dourada. O casal não tinha filhos, nem quase recebia visitas, mas, durante a tarde, a minha prima convidava-nos de vez em quando para lanchar. Tratava-nos então ternamente por “filhos” e achava talvez graça ao que considerava ser a transgressão do nosso namoro. Ria muito alto como se fosse uma hiena sem forças para a caça, mas sem qualquer compaixão para com as suas presas. Untava as unhas de um vermelho muito forte e na sua face via-se ainda a menina que nunca deixara de ser. As elites locais aceitavam-na no Movimento Nacional Feminino e na Misericórdia. Mas não mais do que isso.

A meio da Primavera de 1974, estávamos a acabar o primeiro ano quando chegou a revolução.”

Submissão (parte II)

«As forças revolucionárias [era a voz do Guia] são capazes e têm o direito de usar o terror para eliminar todo aquele que se oponha à revolução. Agora já podemos verdadeiramente acabar com a velha sociedade líbia e construir uma nova, na qual os elementos revolucionários se ajudam uns aos outros na luta contra todos os movimentos anti-revolucionários das universidades, das fábricas e das ruas.» (pp. 237-238)

Estas palavras são atribuídas ao infame Coronel Muamar Khadafi, o Guia, presidente da Líbia desde o golpe de estado, levado a cabo pelos militares, de 1 de Setembro de 1969 que depôs o regime monárquico líbio liderado pelo rei Idris I e formou a República Árabe da Líbia.

Hisham Matar, nascido em 1970 na cidade de Nova Iorque, é filho de pais líbios. Aos três anos sai dos Estados Unidos para viver a sua primeira infância na Líbia, de súbito interrompida quando, em 1979, por acusações de dissidência política, a família é deportada para o Cairo, cidade que o acolherá até 1986, ano em que se estabeleceu definitivamente em Londres, para onde viajou sozinho e se licenciou em arquitectura. Em 2006 publica o seu primeiro romance In the Country of Men que, desde logo, integrou em 2006 o restrito grupo de finalistas do mais prestigiado prémio literário da língua inglesa fora dos Estados Unidos, o
Booker Prize, vencido pela escritora de origem indiana Kiran Desai – filha da escritora Anita Desai – com o romance, ainda não editado no nosso país, The Inheritance of Loss.

Em Terra de Homens, Matar descreve a triste realidade de uma família líbia pertencente à classe média-alta que, no Verão de 1979, se vê envolvida na opressiva e discricionária trama da justiça do seu país, comandada pelo despótico Coronel Khadafi e pelos Comités Revolucionários, os doutrinadores e algozes do regime.
A história é narrada pelos olhos de Suleiman, um rapaz de 9 anos – idade que o próprio autor atingira nesse ano – que vivencia, na plenitude da sua inocência – a qual muita vezes o leva a pactuar com os malfeitores do regime –, todo o tipo de atrocidades e de selvajaria em nome de uma revolução que a maioria não entende.
Hisham Matar descreve, usando uma linguagem aparentemente simples, a complexa relação entre uma Líbia conservadora e arcaica e a resignada aceitação do regime ditatorial instaurado por Khadafi, fortemente incentivador da delação, da traição e da desconfiança entre os elementos pertencentes a uma sociedade que, de acordo com a sua tradição ancestral, renega o papel e o contributo da mulher e vive profundamente absorvida e circunscrita pela teosofia islâmica e pelos seus dogmas, ritos e preceitos.

Em Terra de Homens é um relato apaixonante, comovente e, por vezes, arrasador dos efeitos da barbárie e da iniquidade do ser humano – a tal relação perene "vergastador e vergastado" – na vida de uma simples criança submetida, desde nova, aos dilemas existenciais e às duras opções, mutuamente exclusivas, sobre o exercício do poder de amar.

Depois da leitura completa deste relato romanceado, porém com alguma base factual e eminentemente ocular, apenas fica um desabafo: Quão espúrio e aviltante é este mundo – estende-se aos políticos, aos estrategas da política e aos abutres que dela vivem – que agora acolhe, reverencia e visita com regularidade este facínora e as suas ideias! Em nome de quê e de quem?

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Hisham Matar, Em Terra de Homens. Porto: Civilização, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 270 pp. (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz; obra original: In the Country of Men, 2006).

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Submissão

Ser vergastador e passar a vergastado e o seu contrário, eis o triste ciclo da condição humana.
Mas se o vergastado nunca vergastou e, na sua fé angelical, aprumou sempre o seu corpinho para que a vergasta lhe faça amolgadura (mesmo quando existe a firme certeza de que nada pensou, fez, disse ou elidiu para merecer a embaraçosa punição), então meu caro e bonómico vergastado essa tua condição religiosa, atávica, de ocidental resignado fez de ti um pária de ti mesmo. Não mereces o ar que respiras.

Submeter-se – do Lat. submittere, v. refl.; aceitar o domínio de algo ou alguém; obedecer; entregar-se, subordinar-se, render-se.


Poderá não ter nada que ver (depois se justificará):
«A sala fora arranjada com a cor da revolução – as paredes verde-pálido, os assentos estofados com um tecido verde-escuro, ainda cobertos com plástico de tal modo que, quando nos mexíamos, faziam o som de um peido, o que nos obrigava a mexermo-nos outra vez para provar que não nos tínhamos peidado.»
Hisham Matar, Em Terra de Homens. Porto: Civilização, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, pág. 176 (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz; obra original: In the Country of Men, 2006).


PQP! Jamais!

(Na imagem: São Sebastião, Andrea Mantegna, circa 1480; tela; Museu do Louvre, Paris)

sábado, 17 de fevereiro de 2007

O Senhor Pássaro de Corda*

Um pássaro pousado num ramo de uma árvore dá corda ao mundo?
O seu trinado monocórdico e repetitivo acompanha as manhãs e imita a vida banal de Toru Okada, de 30 anos, voluntariamente desempregado, vive numa moradia em Setagaya – um bairro calmo na buliçosa Tóquio –, casado há seis anos com uma mulher esbelta (Kumiko), de fino trato, que exerce a sua profissão com assinalável sucesso numa editora responsável pela publicação de uma revista sobre nutricionismo. Ambos levam uma vida calma e feliz de jovem casal:
«Vindo do arvoredo ali próximo chegava até nós o canto constante, estridente, de um pássaro que parecia estar a dar corda a algum mecanismo. Chamávamos-lhe o pássaro de corda. Foi Kumiko que se lembrou de lhe chamar assim. (…) Todos os dias vinha até ao arvoredo perto de casa e punha-se a dar corda ao nosso pequeno e pacato mundo.» (pág. 13)

Como se justifica, então, o preenchimento de 634 páginas para descrever a vida corriqueira de um japonês comum, com uma vida sem sobressaltos?
«Estava na cozinha a vigiar o esparguete ao lume, quando tocou o telefone. Ao mesmo tempo ia assobiando a abertura da ópera La Gazza Ladra de Rossini, que estava a tocar numa estação de rádio em FM. O fundo musical perfeito para cozinhar massa.» (abertura do romance, pág. 9)
Trivial.
Porém, do outro lado da linha, estava uma voz tão doce como enigmática, sensual, de uma mulher desconhecida que não se quis identificar:
«– Esparguete? Quem é que se lembra de cozinhar esparguete às dez e meia da manhã?» (pág. 10)
Apenas pedia 10 minutos do tempo do indolente Toru:
«– Dez minutos podem significar mais tempo do que julgas» (pág. 15)
«– Dez minutos – disse ela. – Não é por causa de dez minutos que a tua vida vai começar a andar para trás. Responde à pergunta que te fiz, só isso. Preferes que eu esteja nua ou que vista qualquer coisa? Tenho todo o tipo de coisas, sabes? Cuecas de renda preta...» (pág. 16)

Estava quebrada a rotina. Inicia-se, com um telefonema curto e aparentemente anódino, um período vertiginoso de 18 meses na vida do jovem Okada. Início atribulado que se consuma com o estranho desaparecimento do gato, chamado, com nome de gente, Noboru Wataya: «(…) é o nome do irmão mais velho da minha mulher. O gato faz-nos lembrar ele (…) Na maneira de andar. E têm o mesmo olhar vazio.» (pág. 21)

Em 1995, Haruki Murakami dá por terminada a escrita do terceiro e último livro que a ocidente se materializou na terceira parte do seu romance mais aclamado: Crónica do Pássaro de Corda. O romance conduziu à sua consagração definitiva em solo americano. Antes da pré-publicação em 1997 do 1.º capítulo “O pássaro de corda das terças-feiras / Seis dedos e quatro mamas” na revista norte-americana The New Yorker, Murakami já havia publicado na mesma revista duas histórias – respectivamente, em 1995 e 1997 – que iriam corresponder a mais dois capítulos do livro: a primeira – capítulo 9 do Livro III, pp. 416-435 na edição portuguesa, “O ataque ao jardim zoológico (ou um massacre injustificável)” – conta a história da chacina dos animais selvagens no jardim zoológico da cidade de Hsin-Ching em Agosto de 1945, durante a retirada dos japoneses do território da Manchúria – território chinês onde o exército imperial do sol nascente havia criado pela força o império fantoche de Manchukuo em Fevereiro de 1932 –, perante a iminente chegada do exército soviético; a segunda – capítulo 26 do Livro III, pp. 527-543 na edição portuguesa, “Crónica do Pássaro de Corda N.º 8 (ou O segundo massacre injustificável)” – narra os acontecimentos do dia seguinte ao massacre perpetrado pelos soldados japoneses no jardim zoológico e uma estranha forma de morrer (matar) presenciada pelo veterinário do zoo.

Como Murakami já nos habituou, designadamente através dos três romances que já se encontravam editados na nossa língua – se bem que, originalmente, um tenha sido publicado antes deste, Norwegian Wood (1987), ao contrário dos restantes, Sputnik Meu Amor (1999) e Kafka à Beira-Mar (2002) – a realidade – aqui entendida como verosimilhança – é apenas o pano de fundo que serve de suporte à narrativa do imaginário, conferindo-lhe uma textura cada vez mais rara na literatura contemporânea.

Um jovem assistente de advogado no desemprego vê-se enredado numa trama de contornos pouco claros que, à medida que a narrativa avança, se vai atando cada vez mais, chegando a um ponto em que o próprio não consegue distinguir o real do ilusório.
Desde as atrocidades praticadas por ambos os lados da contenda no conflito da Manchúria – um dos vários episódios negros da 2.ª Guerra Mundial – até à condenação pela União Soviética ao recolhimento dos prisioneiros de guerra nos campos de trabalhos forçados na Sibéria debaixo do jugo de Josef Estaline, Murakami desmonta com mestria a perpetuação das atrocidades cometidas no fragor da guerra nas gerações futuras, quer seja através de dolorosos processos de expiação vividos por aqueles que nela participaram, quer na consciência colectiva de um povo que dificilmente, nos tempos mais próximos, sarará as feridas abertas pelo conflito.
Esta é a história de um homem inocente que, fatidicamente, a partir do Verão de 1984, passará a carregar o pesado fardo da culpa dos outros, as manchas que persistem na memória colectiva de um povo que, em nome dos supostos grandes valores civilizacionais, participou na barbárie de uma guerra fraticida.

Crónica do Pássaro de Corda é, a par de Norwegian Wood, o melhor romance que li do sublime escritor nipónico.

Referência bibliográfica:
Haruki Murakami, Crónica do Pássaro de Corda. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Novembro de 2006, 632 pp. (tradução de Maria João Lourenço; obra original: Nejimaki-dori kuronikuru, 1995; obra em língua inglesa – EUA: The Wind-Up Bird Chronicle, 1997)


*O título foi inspirado na excelente crónica “O Senhor Murakami” escrita por Rui Tavares e publicada no seu livro Pobre e Mal Agradecido (Tinta da China, 2006, pp. 51-63), e não só…

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Em Estado de Choque

Maria Sharapova

Depois de haver lido este texto do Tomás, um frémito voyeurista despertou os espaços mais recônditos da minha alma onde se alojam os resquícios de macho latino puramente ostensivo.
E lá fui em busca de Maria (ao lado na imagem). Fiquei em estado de choque. Atónito com a extensão desmesurada em que se move o relativismo humano na apreciação do belo. Por todo o corpo senti um arrepio de genuíno horror ao haver constatado não só a miserável 49.ª posição (31.ª no ano anterior) de Maria, como também pelo simples facto de esta ter ficado atrás daquilo… de Nelly Furtadocomemá força! Uma alma de pássaro!?



Sou como um pássaro, apenas voarei
Não sei onde se encontra a minha alma, não sei onde fica a minha casa
(e amor, tudo aquilo que necessito que saibas é que)
Sou como um pássaro, apenas voarei

(…)

Que profundidade! (À boa maneira de S. Tomé, verificar
AskMen.com's Top 99 Most Desirable Women, 2007 edition)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Venham mais quatro… (IV)

Finalmente, a quarta leitura de Janeiro de livros de 2006. Tratou-se do último romance de Michel Houellebecq, A Possibilidade de Uma Ilha (Dom Quixote). Vencedor do prestigiado Prix Interallié de 2005, atribuído preferencialmente a obras de ficção escritas por jornalistas.

Em 1932, o imortal escritor britânico Aldous Huxley publicou um livro, em jeito de romance distópico, que abalou o mundo; tratava-se do fabuloso Brave New World (Admirável Mundo Novo), onde se retratava uma sociedade cuja individualidade dos seus elementos havia sido suprida pelo autoritarismo do bem supremo social, baseado nos princípios de organização industrial de Henry Ford da massificação, da produção em série e o do primado da tecnologia sobre o ser humano. Vivia-se na era d.F., depois de Ford, o sofrimento e a infelicidade seriam abolidos; a gestação do próprio ser humano deixou de pertencer ao domínio da decisão individual para obedecer a uma lógica produtiva das necessidades de uma sociedade fortemente hierarquizada em castas de Alfas-mais até Epsilones – respectivamente, dos mais dotados e com mais direitos aos menos dotados e a quem cabia o consentido trabalho escravo. O mundo passou a ser habitado por uma sociedade meramente hedonista, onde um centro de condicionamento era responsável pela reprodução de embriões humanos e o sexo promíscuo não só era consentido como incentivado: Orgia, folia! Os problemas que inquietavam a sociedade até à revolução mundial do então longínquo século XXI foram ultrapassados através da toma de doses maciças de uma droga indutora da felicidade, a Soma, que contribui para a eliminação dos males que se soltaram no mundo assim que se abriu a Caixa de Pandora.

Houellebecq segue o rumo de Huxley e de outros eminentes romances distópicos da época – não esquecendo Orwell ou Bradbury – introduzindo o elemento novo da imortalidade através da possibilidade oferecida pela evolução da ciência genética na perpetuação indefinida do próprio indivíduo.
A Possibilidade de Uma Ilha é a história narrada por Daniel e pelos seus sucedâneos, que explicam a evolução da sociedade como hoje a conhecemos até a um aglomerado de individualidades de neo-humanos que dispensam o contacto físico e a socialização como forma de perpetuação da espécie, individualista, sem os desnecessários afectos, cujo amor, há muito dispensável por uma mentalidade hedonista cultivada a partir do finais do século XX e que resultou de uma crescente dissociação entre este e o sexo, poderia ser sentido mas não compreendido.
Aparentemente aparece-nos um Houellebecq rendido ao lirismo ao eleger o amor – o sentimento indutor da (in)felicidade e carente da reciprocidade entre dois seres humanos –, mesmo que surja, aqui e ali, de forma subentendida, como tema central da sua obra, mas que é destruído pela frialdade inerente à globalização presente das relações humanas, dominadas pelo consumismo, o egoísmo e pela busca última do prazer dissociado do efeito provocado na contraparte, apenas entendida como objecto da nossa auto-satisfação.
Mas qual é a origem da destruição do Homem como hoje o conhecemos? Que mudança comportamental fomentou até ao limite a aniquilação da condição humana?
Houellebecq fala-nos do seu princípio, da revolução sexual e da emancipação do sexo discricionário desprovido de um sentimento mais profundo, onde a dita seita eloimita funda a sua tese de perpetuação do ser humano como objecto de prazer, levando à extinção das religiões quer através da realização de OPA's, quer através do esvaziamento do seu fundamento.
Em dado momento, após o estabelecimento da carnal e animalesca relação entre Daniel e a bela e sedutora Esther, aquele rende-se à superfluidade reinante, culminado com dois dias quentes de Agosto em Madrid, plenos de lubricidade, que resultam no doloroso ponto de viragem da narrativa, na tomada de consciência do rumo que o mundo segue de forma inexorável:

«Toda a energia é de ordem sexual, não principalmente mas exclusivamente, e quando um animal não serve para se reproduzir não serve para mais nada. Acontece o mesmo com os homens; quando o instinto sexual morre, escreve Schopenhauer, está consumido o verdadeiro núcleo da vida; assim, observa ele numa metáfora de uma violência aterradora, “a existência humana assemelha-se a uma representação teatral que, iniciada por actores vivos, terminasse com autómatos vestidos com os mesmos trajes”. Eu não queria tornar-me um autómato, e fora isso, essa presença real, esse sabor da vida viva, como diria Dostoievski, que Esther me restituíra. Para quê manter em funcionamento um corpo no qual ninguém toca? E por que razão escolher um bom quarto de hotel se for para dormir sozinho? Após tantos outros afinal derrotados, apesar do escárnio e da ironia, restava-me apenas render-me: imensa e admirável, decididamente, a força do amor.» (pág. 183)

Dois dias, de muitas horas roubadas ao sono retemperador, foi o tempo que demorei a deglutir as quase 400 páginas que compõem o romance. Houellebecq tem esse dom de prender o leitor do princípio ao fim do livro. Afinal não será essa a mestria que se exige ao escritor? O puro prazer da leitura…

Classificação: ***** (Muito Bom)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Norte

Para ser sincero, reconheço e difundo que começo a ficar cansado – já lá vão os tempos da fúria incontida – do processo de lisboetização, à laia da boa cartilha maoísta, do todo nacional, como arquétipo do português escorreito, urbano, cosmopolita e civilizado.
Nada me move contra Lisboa. Parte da minha família aí nasceu e há outra parte que a elegeu como residência definitiva.
Não entrando em considerações puramente estéticas, já que, desde pequeno, a luz natural da Capital provoca em mim um deslumbramento que dificilmente encontrarei noutras cidades espalhadas por esse mundo fora, Lisboa cada vez mais assume o papel de eucalipto implantado na, há muito, angustiante aridez de um país de desequilíbrios gritantes. Não falo apenas na questão do desenvolvimento económico assimétrico, a nossa capital centralista – talvez, por bondade, excessivamente protectora dos seus filhos – vai-se solidamente constituindo como um sorvedouro de recursos culturais e tecnológicos. Não há iniciativa no resto do país sem o seu aval. Não se vislumbra o sucesso, ou pelo menos não se o obtém com a mesma facilidade, sem uma passagem pelo crivo lisboeta marcadamente elitista. Deu-se a fuga das empresas, como que atraídas pelo magnetismo emanado pela fonte de poder, fugiram os cérebros, fugiram os capitais e por aqui vão resistindo alguns teimosos.

Tudo o que vem do Norte é boçal, provinciano, falaz, corrupto e sem algum tipo mérito. E se sucesso se lhe reconhece, ele apenas se deve ao trabalho infantil; ao tráfico de influências, drogas, armas, carne branca, mão-de-obra escrava; a autarcas, dirigentes e/ou empresários corruptos e sem qualquer tipo de escrúpulos. Somos sovinas, tacanhos, medíocres, iletrados, chicos-espertos, parolos, shoppingueiros, arraialistas. E depois de ouvir os excelsos comentadores do horrível programa de ontem à noite na SIC-Notícias (no qual participaram
alguns estimados e eminentes bloggers da blogolusolândia, promovido, pois claro!, por um jornal do norte) fiquei a perceber de onde provém o epíteto de “Cidade Branca”: asséptica, imaculada, incorruptível, habitada pela mais fina nata de puro sangue (bem apetrechado de glóbulos brancos e não equídeo) lusitano, onde os males vêm por importação dos vícios nortenhos.

Nota: a propósito ler o artigo de opinião de Rui Moreira (carregar na imagem para aumentar):

Rui Moreira, in Público 12 de Fevereiro de 2007

Reminiscências

Há muitos anos ouvi, suponho que num daqueles documentários televisivos de divulgação científica, que o supostamente inexplicável fascínio dos adolescentes e dos jovens adultos pela música, de tal forma imbricado nos seus pensamentos e actos quotidianos que a vida sem ela perderia todo e qualquer sentido, levando a que, eventualmente, se cometam em seu nome as maiores loucuras, deve-se ao facto de nessa fase – a era dourada dos idealismos, da utopia e das paixões arrebatadas – ser a única ao longo da vida normal do ser humano em que o sentido da audição se encontra mais apurado que o da visão.
Não sei se tal tese está ou não cabalmente (cientificamente) comprovada, porém, no meu caso, sinto que de alguma forma a hipótese formulada se materializou no meu salutar e tresvariado percurso de jovem irreflectido entre os 17 e os 25 anos – fazendo saber que o limite máximo desse intervalo etário representa a idade com que me casei.
Serve isto para dizer que respirava música, vivia com essa estrídula e depravada que punha os nervos em franja à pobre da minha mãe: Nova Era para a disposição frenética, XFM para meditação ou até para um agravamento do estado pré-depressivo paradoxalmente tão cool, e por vezes a Antena 2 em busca dos adágios que desconhecia, ou em raras vezes o intemporal e melífluo João Chaves na RFM para encontrar em mim o amor que uma vida frívola me fizera não lembrar.
Hoje disponho de uma colecção que ronda as 6 centenas de CD’s originais de música, excluindo os discos de vinil e os DVD's musicais, e posso afirmar com toda a segurança que cerca de 4/5 foram adquiridos nessa etapa da minha vida, curiosamente quando os trocos oriundos de uma semanada, porventura não merecida, eram poucos para dividir entre o acto de comprar e de ouvir música numa discoteca do meu pequeno mundo.

Tanta charla para apenas mencionar
este texto do Sérgio Lavos no seu Auto-Retrato e com isso lhe poder agradecer o ter-me permitido descobrir um grupo – agora sei – canadiano que ignorava por completo, cuja sonoridade se aproxima e muito dos meus ídolos musicais, que ainda hoje não me canso de ouvir, de uma juventude remota que jamais esquecerei e cuja experiência passada tem contribuído para manter viva a chama que me agarra ao mundo.

Esta é uma das muitas razões por que vale a pena participar neste espaço a que se convencionou chamar de blogosfera e cujos 70 dias de ausência tanta ansiedade me provocaram (e serve isto para o Ritmo, Sérgio).

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Travels in the Scriptorium

«O velho está sentado na beira da cama estreita, as palmas das mãos abertas sobre os joelhos, a cabeça baixa, a olhar fixamente para o chão. Não faz ideia de que há uma câmara colocada no tecto directamente por cima dele. O obturador dispara silenciosamente uma vez por segundo, produzindo oitenta e seis mil e quatrocentos instantâneos a cada revolução da terra. Mesmo que soubesse que estava a ser observado, não faria qualquer diferença. Tem o pensamento noutro lado, perdido entre os fragmentos da sua cabeça enquanto procura uma resposta à pergunta que o assombra.
Quem é ele? O que faz aqui? Quando chegou e por quanto tempo permanecerá? Com sorte, o tempo encarregar-se-á de nos contar. De momento, a nossa única tarefa consiste em estudar as fotografias o mais atentamente possível, contendo-nos a retirar qualquer conclusão precipitada.
»

Paul Auster, Travels in the Scriptorium [Tradução: 1.º parágrafo: jornal Público; 2.º parágrafo do inglês: AMC]

Enquanto o velho se descobre a si mesmo nessa cela prodigiosamente austeriana, nós, portugueses amantes da língua e cansados da pátria, teremos de esperar pela edição traduzida que, fazendo fé no artigo publicado no jornal Público de ontem (pág. 18 do tal caderno P2), só sairá para o mercado no próximo (que fina ironia!) mês de Setembro. Até lá não sairá neste blogue qualquer avaliação sobre o dito cujo – para manter alguma coerência (raridade!) com o critério por mim estipulado.
Em suma, até que a
Asa – detentora dos direitos de publicação em Portugal do escritor norte-americano – se digne a colocá-lo no mercado, por agora muito entretida em publicar a Floribela e uma resma de livros de auto-ajuda que, decerto, já deram o seu contributo para tirar este país da depressão que parecia crónica, com níveis de rendimento muito próximo dos concidadãos nórdicos, não haverá aqui qualificações ao novo romance de Auster – vamos a ver se aguento!

Só mais um cheirinho para abrir o apetite:

«Há um sem número de objectos no quarto e em cada qual foi afixada na sua superfície uma tira de fita adesiva branca contendo uma única palavra escrita em letras maiúsculas.» [Tradução AMC]

Para saber mais comprar o livro em inglês editado no Reino Unido pela editora Faber & Faber e nos Estados Unidos pela Henry Holt, ou em espanhol (Viajes por el Scriptorium) editado em Espanha pela Anagrama, ou em francês (Scriptorium) editado em França pela Actes Sud, ou em italiano (Viaggi nello scriptorium) editado em Itália pela Einaudi, ou até em dinamarquês (Rejser i scriptoriet) editado na Dinamarca pela Forlaget Per Kofod, e por essa estrada fora… (uma conclusão um pouco beatnik, não?)

De cara lavada…

…apareceu o Público, com edição impressa à borla e com “P” num vermelho garrido como que a alardear uma fúria incontida. Espera-se que a circunspecção de tons cinzentos, que outrora lhe conferiram eminência jornalística, não caminhe para o sensacionalismo aberrante praticado pelos seus congéneres: diz que é uma espécie de evolucionismo.

De resto, talvez uma infelicidade, porventura um enorme equívoco, ou até, quem sabe, um pequeno gracejo do Sr. Engenheiro, o segundo caderno foi baptizado com um arrepiante “P2”. Para os mais atentos a designação “P2” é sinónimo da loja maçónica “negra” italiana “Propaganda Due” que aterrorizou o país e que, segundo se diz, esteve ligada ao escândalo da insolvência do Banco Ambrosiano e ao consequente assassinato, disfarçado de suicídio, em Londres do seu presidente Roberto Calvi, cujo IOR, mais conhecido como Banco do Vaticano, era o principal accionista.

Em suma, um infeliz acaso.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Anotações e Transcrições – 8

Cito o José Mário Silva do blogue Sim no Referendo, para tal como ele vos poder transmitir a sensação de náusea e de repugnância que experimentei após a leitura deste pequeno texto do mais asinino, reles, perverso e obsceno que jamais vi durante cerca de ano meio que levo de blogosfera – e faço aqui a transcrição na íntegra para que não se apague a sordícia da nossa memória usualmente curta:

«
Venceu a cultura da morte!
11 de Setembro, 11 de Março, 11 de Fevereiro. Datas manchadas pela morte!
»


O José Mário categoriza-o como o “
post mais infame, mentiroso e desonesto de que tenho memória”. Eu assino por baixo e ainda acrescento, para não me desenquadrar daquele contexto puramente abjecto, é na sua essência terrorista.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Quarenta por cento

O porta-voz da Comissão Nacional de Eleições assegurava na TSF que a percentagem de votantes no referendo de hoje muito dificilmente ultrapassará a marca dos 40%. Até às 12 horas de hoje apenas 11,57% dos inscritos havia exercido o seu direito de voto.

Seguro do infinitésimo contributo para o crescimento da percentagem, eram 15 horas e 49 minutos quando apus a minha cruz no boletim de voto na Alexandre Herculano. O movimento pareceu-me ligeiramente inferior ao das outras votações.

Até às 20 horas, por aqui aguardarei as primeiras projecções à boca da urna, sendo certo que espero com alguma curiosidade de que forma, desta vez, a família Soares infringirá, por declarações prestadas à saída da assembleia de voto, a legislação eleitoral.

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Venham mais quatro… (III)

A minha terceira leitura de Janeiro deste ano de livros editados em 2006 foi ocupada pelo último romance de Agustina Bessa-Luís, A Ronda da Noite (Guimarães Editores).

A Ronda da Noite – ou A Companhia do Capitão Frans Banning Cocq e Tenente Willem van Ruytenhurch, como foi originalmente denominada – é o título de uma colossal obra de arte em tela pintada a óleo por Rembrandt, concluída em 1642, cujas dimensões atingem os 4,4 por 3,6 metros. Rembrandt pintou este quadro por encomenda directa do referido Capitão – futuro burgomestre da cidade de Amesterdão –, onde figuram, para além deste último e do seu Tenente, alguns elementos pertencentes à Companhia de Arcabuzeiros de Amesterdão.
Este quadro tem alimentado ao longo dos tempos alguma especulação crítica sobre as verdadeiras pretensões de Rembrandt e até sobre a aparente escuridão da obra.
De facto, o pintor holandês parece revogar os cânones do retrato convencional – o muito vulgar para a época Retrato de Milícia –, conferindo um dinamismo ímpar à cena, obscurecendo alguns personagens e introduzindo alguns elementos picarescos – como alguns críticos de arte denominaram – como um grupo de crianças e um cão. Todo o cenário inspira movimento, apreensão e ansiedade, como se a Milícia se preparasse para o confronto iminente ou se pressentisse o dealbar de uma rebelião interna.
O título A Ronda da Noite não é o original, apenas surgiu em finais do século XVIII, foi aposto devido ao obscurecimento sofrido pela tela pela sua exposição aos elementos e pelas sucessivas aplicações de camadas de verniz.

É esta a obra que ensombra todo o romance de Agustina e a ilustre família Nabasco. Uma cópia do quadro passa de geração em geração como uma herança indivisa, exercendo, por último, um inexplicável fascínio em Martinho, neto de Maria Rosa, viúva de Filipe Nabasco. Alguns afiançam tratar-se de uma cópia reproduzida pelo próprio Rembrandt da sua obra-prima original. Outros asseveram que se trata sem dúvida de uma falsificação. Porém, não é esse o mistério que exerce o tal deslumbramento em Martinho. A disposição das partes que integram aquele todo, a razão de ser para cada movimento aparente, expressão facial, o brilho intenso da pequena Saskia – como surge no romance, note-se que Saskia van Uylenborgh, mulher de Rembrandt, foi modelo de vários quadros do autor e morre em 1642, ano de conclusão da obra.

O romance é simultaneamente um tratado filosófico, um detalhado estudo sociológico e um retrato preciso e fiel da decadente sociedade fidalga portuense em finais do século XX.
Em Martinho podemos encontrar alguns traços de um Carlos da Maia apenas mais contemporâneo. Criado pela avó após a morte do pai e do abandono do lar da mãe, que parte para Lisboa para se casar com um capitão da Marinha, Martinho vive rodeado do séquito de criadas de Maria Rosa e dos eminentes amigos de família. Porém é o que há de diletante em Martinho que o aproxima de Carlos da Maia. Amante das artes e das letras, licencia-se em Arquitectura que nunca viria a exercer. Refugia-se em tertúlias com os amigos, mesmo após o casamento, arranjado pela avó, com a terna e simultaneamente misteriosa Judite – cuja mãe, criada da casa, dizia-se, fora barbaramente assassinada pelo pai, que cumpria pena de prisão por homicídio.
Esta é a história de uma estrutura familiar que se vai desmoronando, mantendo a fachada intacta que esconde as ruínas da memória de um passado feliz, sem dilemas existenciais e supostamente filantropa. Martinho é o fim da linha, o seu epítome arrasador, insensível e amargurado, lúgubre e céptico:
«Felizes os que não amam senão a sombra das coisas»
e
«“Porque é que hei-de amar as pessoas? Basta ser-lhes grato, se for caso disso, ou gratificá-las se também for caso disso. Mas amá-las é fora de questão. O amor é como se diz de Deus: “Não devemos jurar o seu santo nome em vão”, pensava ele.» (pág. 131)

Ao contrário de Doidos e Amantes – um bom romance, porém bem longe da genialidade –, Agustina, com A Ronda da Noite, provou que os doce 83 anos, idade com a qual finalizou a obra, são a vantagem que a experiência permite para se escrever uma obra-prima, um verdadeiro tratado sobre as relações humanas cingidas à arte, transmitidas pela arte de escrever.

«Capítulo I: Dia de Finados: Naquele ano coube a Martinho Dias Nabasco acompanhar o que restava duma família numerosa e abastada, ao cemitério da terra natal.» (pág. 7; abertura do romance. Ai, os romances que começam com o triste e esmagador dias de finados...!)

Classificação: ****** (Obra-prima, classificação máxima)

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Por que votarei “Sim”

Ao longo dos últimos dias postei aqui algumas das razões que me levaram a que desta vez exerça o meu direito de voto e cumpra o meu dever cívico. Poderei resumi-las numa asserção incluída num texto escrito por Maria Velho da Costa e publicado no blogue Sim no Referendo:
«A defesa da vida, a qualquer preço, pode ser a defesa da morte.»

Foi isso mesmo que quis professar nos textos anteriormente publicados. Voto “Sim” porque perante duas soluções mutuamente exclusivas – e é apenas isso que está em causa no referendo do próximo domingo – terei de optar por aquela que menorize as eventuais sequelas que contribuirão para o agravamento da miséria humana.
Não é um simples opção científica entre a “vida” e a “morte” de um embrião humano, mas a escolha do caminho da felicidade, porque uma existência desprovida desse dom é a própria negação da vida, um martírio, uma degradação da condição humana.

Nota: ver o que escrevi sobre a matéria no tópico
I.V.G. (Aborto)

Aquilo que interessa

Medir a riqueza de um clube pelo potencial das receitas, é como analisar um quadro pela qualidade da tela e das tintas usadas na pintura.
Se quisermos ser simplistas e de alguma forma atribuir algum significado ao nosso estudo, não basta a eventual grandiosidade do nome do investigador para conferir validade científica aos resultados alcançados.
Uma hipótese, igualmente pouco trabalhosa, consistiria na análise do denominado Book Value (ou valor contabilístico). Nesta óptica o valor de uma qualquer empresa mede-se pela diferença entre os seus activos (bens e direitos) e passivos (obrigações), a que convencionámos chamar de Capital Próprio ou Situação Líquida. Embora seja um método simplista e assaz redutor, na medida em que por exemplo não entra em linha de conta com as potencialidades futuras face à capacidade instalada – neste caso o método dos Discounted Free Cash Flows é dos mais usados –, entra em linha de conta com massas patrimoniais de sinal contrário e implica, uma vez mais, informação fidedigna (clara, fiável e comparável), situação que é prejudicada pela não cotação em bolsa de equipas como o Benfica, Real de Madrid e Barcelona, devido às regras apertadas de uniformização, monitorização e de apresentação de factos relevantes susceptíveis de influenciarem as decisões de investimento dos denominados stakeholders.
Assim, a Deloitte desculpabiliza-se no preâmbulo do seu estudo:
«There are many ways of examining the relative wealth or value of football clubs – and at Deloitte we have developed sophisticated models of anticipated future cash flows to help potential investors or sellers do just that. However, for an exercise such as this, there is insufficient public information to do that. Here – in the Deloitte Football Money League – we use income as the most easily available and comparable measure of financial wealth. Income, like salary for an individual, is not the be all and end all of ‘richness’, but all would agree that – as a starting point – it is better to have more than less, and the choice of how to spend it.»
In Football Money League: The Reign in Spain, Deloitte, February 2007, p. 2

Porém, indo ao que realmente interessa – à parte desportiva – temos esta classificação relativa aos últimos 10 anos – European Club Ranking 1997-2006:

1.º) Real Madrid CF – 1.249,95 pts.
2.º) FC Bayern München – 1.239,67 pts.
3.º) FC Barcelona – 1.228,10 pts.
4.º) Manchester United – 1.227,60 pts.
5.º) Juventus FC – 1.138,82 pts.
6.º) Arsenal – 1.135,49 pts.
7.º) FC Porto – 1.100,07 pts.
8.º) Internazionale FC 1908 – 1.080,52 pts.
9.º) PSV – 1.057,47 pts.
10.º) AC Milan – 1.039,34 pts.
(…)
33.º) Sporting CP – 740,73 pts.
(…)
35.º) SL Benfica – 717,00 pts.
(…)
55.º) Boavista FC – 587,70 pts.


Posto isto, vou ver se consigo deixar de falar de futebol nos próximos tempos, enquanto assisto ao enterro antecipado do meu clube pelos Media.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Crónica de um portista arrebatado

O desafio foi sugerido pelo Ricardo, um companheiro de paixão clubística que, acudido por uma indelével memória onírica, convidou a blogosfera que se revê no azul e branco draconiano a postar as rememorações de um passado recente de alegrias e vitórias.

Uma paixão não se explica, não se arrazoa, nem pode ser entendida por quem dela não partilha o arroubamento, a entrega e um desvairado sentimento de protecção da coisa amada. É um amor exacerbado que os compêndios do comportamento humano não conseguem explicar que não seja por meras suposições e preconceitos subtractivos da razão do sujeito que ama sem condições, hipóteses ou regras de conduta.
Os apoucadores da paixão alheia soem relacioná-la com um estado de violência latente que se poderá materializar num ensandecimento lesivo da sã convivência. Embora não haja paixão sem impetuosidade – o tal ardor que nos consome as entranhas –, a sua exteriorização jamais se poderá confundir com violência; essa é um subproduto dos que supostamente amam, porque um verdadeiro apaixonado não utiliza o sujeito ou o objecto da sua paixão em serviço de outros desígnios que não sejam o alimento da própria alma.

Em Abril de 1984, tinha eu 11 anos, o FC Porto defronta o então temível Aberdeen FC de Alex McLeish e de Gordon Strachan, treinado por Sir Alex Ferguson. Disputar-se-ia a meia-final da extinta Taça dos Vencedores das Taças. Na 1.ª mão o meu Porto, num jogo inesquecível do extremo esquerdo Costa (José Alberto), ganhou por 1-0 com um golo do bi-bota Fernando Gomes aos 14 minutos de jogo. Lembro-me bem da sensação que dominava os portistas após o interminável abandono do estádio naquela quarta-feira fria de Primavera: a exibição foi portentosa, o resultado foi escasso e temíamos o poderio do adversário no jogo seguinte que se iria disputar na paisagem sombria de terras da Escócia.
Aberdeen, Escócia, Abril de 1984. Noite cerrada de nevoeiro. Um estádio repleto de fervorosos adeptos escoceses assiste à esmagadora superioridade defensiva do FC Porto – recorde-se que nessa época o Porto foi campeão nacional, tendo a defesa constituída por João Pinto, Inácio, Eurico e Lima Pereira apenas permitido o marcação de 6 golos pelas equipas adversárias – e um temível contra-ataque liderado por Gomes, Costa e pelo recém-entrado Vermelhinho. A exibição de Costa na 1.ª mão permitiu levar consigo para o flanco direito – flanco que viria a ocupar com a substituição – 3 jogadores do Aberdeen. Após um ataque da equipa escocesa alguém passa a bola a Vermelhinho que, havendo apenas corrido alguns metros, remata do meio campo para um monumental “chapéu” ao guarda-redes escocês. Estavam decorridos 76 minutos de jogo, o meu FCP acabara de se qualificar para a final de Basileia, onde veio a perder o troféu para a poderosa Juventus – que eliminara nas meias-finais o Manchester United – após os tristes acontecimentos com uma arbitragem de um senhor de nome Adolf Prokop, oriundo da ex-RDA, que de negligente nada teve…

Aqui fica o relato do golo de Vermelhinho pelo saudoso Gomes Amaro – não há portista da minha geração em diante que não se lembre dele – no Quadrante Norte (o som global!) com João Veríssimo, da noite recordo ainda um estádio inteiro, desportivamente, a aplaudir de pé a conquista do meu FC Porto:

Ficheiro wave (gravação arrancada a uma velhinha cassete Sonovox que repousava no pó da minha arrecadação)