quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Venham mais quatro… (IV)

Finalmente, a quarta leitura de Janeiro de livros de 2006. Tratou-se do último romance de Michel Houellebecq, A Possibilidade de Uma Ilha (Dom Quixote). Vencedor do prestigiado Prix Interallié de 2005, atribuído preferencialmente a obras de ficção escritas por jornalistas.

Em 1932, o imortal escritor britânico Aldous Huxley publicou um livro, em jeito de romance distópico, que abalou o mundo; tratava-se do fabuloso Brave New World (Admirável Mundo Novo), onde se retratava uma sociedade cuja individualidade dos seus elementos havia sido suprida pelo autoritarismo do bem supremo social, baseado nos princípios de organização industrial de Henry Ford da massificação, da produção em série e o do primado da tecnologia sobre o ser humano. Vivia-se na era d.F., depois de Ford, o sofrimento e a infelicidade seriam abolidos; a gestação do próprio ser humano deixou de pertencer ao domínio da decisão individual para obedecer a uma lógica produtiva das necessidades de uma sociedade fortemente hierarquizada em castas de Alfas-mais até Epsilones – respectivamente, dos mais dotados e com mais direitos aos menos dotados e a quem cabia o consentido trabalho escravo. O mundo passou a ser habitado por uma sociedade meramente hedonista, onde um centro de condicionamento era responsável pela reprodução de embriões humanos e o sexo promíscuo não só era consentido como incentivado: Orgia, folia! Os problemas que inquietavam a sociedade até à revolução mundial do então longínquo século XXI foram ultrapassados através da toma de doses maciças de uma droga indutora da felicidade, a Soma, que contribui para a eliminação dos males que se soltaram no mundo assim que se abriu a Caixa de Pandora.

Houellebecq segue o rumo de Huxley e de outros eminentes romances distópicos da época – não esquecendo Orwell ou Bradbury – introduzindo o elemento novo da imortalidade através da possibilidade oferecida pela evolução da ciência genética na perpetuação indefinida do próprio indivíduo.
A Possibilidade de Uma Ilha é a história narrada por Daniel e pelos seus sucedâneos, que explicam a evolução da sociedade como hoje a conhecemos até a um aglomerado de individualidades de neo-humanos que dispensam o contacto físico e a socialização como forma de perpetuação da espécie, individualista, sem os desnecessários afectos, cujo amor, há muito dispensável por uma mentalidade hedonista cultivada a partir do finais do século XX e que resultou de uma crescente dissociação entre este e o sexo, poderia ser sentido mas não compreendido.
Aparentemente aparece-nos um Houellebecq rendido ao lirismo ao eleger o amor – o sentimento indutor da (in)felicidade e carente da reciprocidade entre dois seres humanos –, mesmo que surja, aqui e ali, de forma subentendida, como tema central da sua obra, mas que é destruído pela frialdade inerente à globalização presente das relações humanas, dominadas pelo consumismo, o egoísmo e pela busca última do prazer dissociado do efeito provocado na contraparte, apenas entendida como objecto da nossa auto-satisfação.
Mas qual é a origem da destruição do Homem como hoje o conhecemos? Que mudança comportamental fomentou até ao limite a aniquilação da condição humana?
Houellebecq fala-nos do seu princípio, da revolução sexual e da emancipação do sexo discricionário desprovido de um sentimento mais profundo, onde a dita seita eloimita funda a sua tese de perpetuação do ser humano como objecto de prazer, levando à extinção das religiões quer através da realização de OPA's, quer através do esvaziamento do seu fundamento.
Em dado momento, após o estabelecimento da carnal e animalesca relação entre Daniel e a bela e sedutora Esther, aquele rende-se à superfluidade reinante, culminado com dois dias quentes de Agosto em Madrid, plenos de lubricidade, que resultam no doloroso ponto de viragem da narrativa, na tomada de consciência do rumo que o mundo segue de forma inexorável:

«Toda a energia é de ordem sexual, não principalmente mas exclusivamente, e quando um animal não serve para se reproduzir não serve para mais nada. Acontece o mesmo com os homens; quando o instinto sexual morre, escreve Schopenhauer, está consumido o verdadeiro núcleo da vida; assim, observa ele numa metáfora de uma violência aterradora, “a existência humana assemelha-se a uma representação teatral que, iniciada por actores vivos, terminasse com autómatos vestidos com os mesmos trajes”. Eu não queria tornar-me um autómato, e fora isso, essa presença real, esse sabor da vida viva, como diria Dostoievski, que Esther me restituíra. Para quê manter em funcionamento um corpo no qual ninguém toca? E por que razão escolher um bom quarto de hotel se for para dormir sozinho? Após tantos outros afinal derrotados, apesar do escárnio e da ironia, restava-me apenas render-me: imensa e admirável, decididamente, a força do amor.» (pág. 183)

Dois dias, de muitas horas roubadas ao sono retemperador, foi o tempo que demorei a deglutir as quase 400 páginas que compõem o romance. Houellebecq tem esse dom de prender o leitor do princípio ao fim do livro. Afinal não será essa a mestria que se exige ao escritor? O puro prazer da leitura…

Classificação: ***** (Muito Bom)

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