
Apesar do desgaste pelo uso, a expressão que melhor poderá designar a sensação por mim experimentada na leitura do conjunto de contos da escritora norte-americana Flannery O’Connor, intitulado de Um Bom Homem É Difícil de Encontrar, é “um autêntico murro no estômago”. A crueza e o realismo emprestados às narrativas curtas de Flannery são de deixar qualquer leitor desconcertado, a começar desde logo pelo conto que deu o título à obra, onde a cada momento a piedade, qualidade que estatuímos inerente a qualquer ser humano por mais vil que se possa revelar, só existe na Literatura e, paradoxalmente, não tem lugar, pelo arrepiante realismo, na escrita da autora.
A maldade e a insensibilidade intrínsecas ao homem ganham corpo e sublimam-se, de forma abrupta, no final de cada história.
Um bom exemplo da perversidade latente que habita silenciosamente a nossa alma e que a todo o momento se exibe numa violência que até então nos fora desconhecida, é o conto “O Preto Artificial” – o meu preferido –, do qual deixo aqui um pequeno excerto:
«Mr. Head ficou totalmente imóvel e sentiu uma vez mais a misericórdia descer sobre si mas desta vez sabia que nem teria palavras para descrever o que sentia. Percebeu finalmente que a misericórdia nasce da agonia, que não é negada a nenhum homem e que é dada as crianças de formas estranhas e inesperadas. Compreendeu que era isso tudo o que um homem podia levar consigo depois da morte para apresentar ao juízo do seu Criador, e, pela primeira vez, ficou aterrado com o que teria para levar consigo. Nunca se considerara um grande pecador mas agora compreendia que a sua verdadeira perversidade estivera a vida inteira escondida dentro de si, aguardando apenas um instante de desespero autêntico para poder manifestar-se.» (pp. 122-123)
Um livro esmagador, que exige uma leitura atenta e cuidada. Já o li no início de Janeiro e ainda não me consegui esquecer das entrelinhas que aparentemente – dada a forte subjectividade que inunda a afirmação – moldam o texto.
Classificação: Muito Bom (*****)
Referência bibliográfica:
Flannery O’Connor, Um Bom Homem É Difícil de Encontrar. Lisboa: Cavalo de Ferro, 1.ª edição, Abril de 2006, 235 pp. (tradução de Clara Pinto Correia; obra original: A good man is hard to find, 1955).
Próximas análises nesta categoria (por ordem de leitura em Janeiro de 2007): II – Reinaldo Arenas, O Engenho (Antígona); III – Agustina Bessa-Luís, A Ronda da Noite (Guimarães Editores); IV – Michel Houellebecq, A Possibilidade de Uma Ilha (Dom Quixote).
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