segunda-feira, 31 de julho de 2006

Americanista

Um segredo irrevelável? Uma confissão. Uma admiração desvelada.
Não, não creio que seja inconfessável. É um grito sentido, sem medo e falsos pudores, de amor pela liberdade, pela democracia, pelo verdadeiro humanismo – importado, é certo, dos pensadores europeus – mas, como disse Pynchon, para ter humanismo, temos primeiro de estar convencidos da nossa própria humanidade.
Tenho, desde pequeno, uma admiração pelos Estados Unidos da América. É inegável e indisfarçável.
Porém, quando se admira algo ou alguém não significa que não se lhe reconheça os defeitos ou os comportamentos menos claros, até insidiosos. Por ser um americanista convicto é que me sinto com autoridade moral para desprezar um ignaro e troglodita chamado George W. Bush. Por exaltar a América sinto-me livre de complexos para poder censurar os resultados – que não vislumbrava à partida – do processo de democratização do Iraque, mesmo reconhecendo o forte peso das questões económicas e financeiras ligadas ao petróleo iraquiano no processo de tomada da decisão.
Mas… e a II Grande Guerra? E Alemanha e a Europa pós-1945? E o Plano Marshall? E o Japão? E o bastião de resistência e contra-ataque ao avanço do marxismo-leninismo despótico da URSS? E os direitos das mulheres? E as Nações Unidas em Bretton Woods?
Por gostar da América, do seu modelo de sociedade, do seu capitalismo dito selvagem, dos seus escritores, dos seus músicos, do seu cinema, não significa que não deixe de condenar a venda livre e discricionária de armas, a proibição fundamentalista do consumo de tabaco e de bebidas alcoólicas. A invasão do Panamá. O apoio tácito a regimes ditatoriais de direita. A pena de morte que prevalece em alguns Estados.
Mas o que temos nós por cá? O grande humanismo da Velha Europa? O anti-imperialismo? As ruinosas políticas de intervenção social que só desfavorecem a própria força de trabalho? Diz-me de onde vens…
Em quantos países do mundo seria possível zurzir nas instituições nacionais e nos órgãos de soberania da forma que o fazem em programas televisivos nacionais como o Tonight Show de Jay Leno, o Larry King Live, o Daily Show de John Stewart ou em pessoas como o seboso manipulador da opinião pública Michael Moore? E na Literatura e no Cinema?

Por ser americanista, não poderei lamentar o assassinato de crianças inocentes no Líbano pelo exército israelita? Terei de me calar quando um irmão israelita morre pelo simples facto de apanhar um autocarro para se deslocar ao emprego? Pelo simples facto de querer viver? Terei de me calar perante a coarctação da liberdade de expressão, pela menorização das mulheres, pela prática da excisão feminina, pelo fundamentalismo religioso, pela tortura como prática corrente nos Estados totalitários do Islão? Terei de me calar quando vejo que na nossa blogosfera a extrema-direita e a extrema-esquerda defendem a aniquilação pura e simples do Estado democrático de Israel e a autocracia, o terrorismo e as ideias professadas pelos líderes celerados dos Estados muçulmanos?

Alguém tem medo da liberdade e da democracia?

PS: não fosse este blogue um diário expiatório e catártico para uma imensa minoria, cá esperaria os comentários estouvados e monoculares do costume.

domingo, 30 de julho de 2006

Verões literários [Actualizado]

Alertado por este texto de Eduardo Pitta, no seu blogue Da Literatura, sobre as supostamente profícuas leituras de Verão dos portugueses açuladas pelo semanário Expresso (sem ligação disponível), cinquenta cêntimos do meu modesto pecúlio foram descontados do meu cartão pré-pago – Balsemão, meu caro, é favor agradecer ao Eduardo.
Tal como fez o Eduardo, centrar-me-ei nos 25 livros de ficção recomendados.
Assim, das 25 obras apenas li três, a saber:
Aquilo Que Eu Amava, de Siri Hustvedt (Asa, 2005); Os Contos de Clerkenwell, de Peter Ackroyd (Teorema, 2006); Medeia, de Eurípedes, recriação poética da tragédia de Eurípides por Sophia de Mello Breyner Andresen (Caminho, 2006).
Na calha, para próximas leituras, já se encontram cinco livros – uns há mais tempo que outros: Novelas e Textos para Nada, de Samuel Beckett (Assírio & Alvim, 2006); Um bom homem é difícil de encontrar, de Flannery O’Connor (Cavalo de Ferro, 2006); Gastar Palavras, de Paulo Kellermen (Deriva, 2005); Mandrake – A Bíblia e a bengala, de Rubem Fonseca (Campo das Letras, 2006), sempre recomendado por O Sniper; Contos Sublimes, de Hermann Hesse (Difel, 2006).
Os restantes dezassete ou não faço tenções de os ler ou ficarão para os anos vindouros, que isto da literatura exige o estabelecimento de critérios e de prioridades, sob pena de embotar a minha, já de si, frágil visão e de não fazer outra coisa na vida, ou seja, trabalhar... para os poder comprar e não só.

No que diz respeito à lista, para ser sincero, não encontro um forte nexo de causalidade entre os elementos que a compõem. À excepção da grande representatividade dos livros de contos – que porventura se enquadrarão bem nesta época estival, dado o desprendimento intelectual característico das férias que não se coaduna com narrativas extensas, densas e de cuidada digestão –, a listagem é uma verdadeira babilónia desligada – porque até em determinadas babilónias poder-se-á encontrar uma ordem moldada por um fio condutor laboriosamente tecido pelo nosso intrincado cérebro.
O livro de Siri Hustvedt, mulher de Paul Auster – desse título jamais se livrará, a não ser que apense um “ex” – é um romance de excepção, não tenho qualquer tipo de pejo em afirmá-lo. Foi publicado nos Estados Unidos em Março de 2003 e em Portugal em Outubro de 2005 – ver aqui a minha análise de leigo em Março deste ano.
Os Contos Clerkenwell, de Peter Ackroyd, baseiam-se nos famosos Contos da Cantuária, escritos por Geoffrey Chaucer no século XIV, que tal como o original de Chaucer utiliza um manancial de personagens – um conto por personagem –, com uma trama de base que os une. É um livro interessante, porém duvido que se torne numa leitura prazenteira ou que faça as delícias dos letrados veraneantes.
No que diz respeito a Medeia de Eurípedes, nada melhor que aqui reproduzir as palavras de Eduardo Pitta: «A lista do Expresso é eloquente a vários títulos. Tão eloquente que até recomenda a Medeia de Eurípides».
Depois, tal como o Eduardo Pitta refere, há omissões imperdoáveis relativamente a livros editados em Portugal entre Julho de 2005 e Julho de 2006 (alargo o leque), muitos deles já aqui referidos.
Para uma lista de livros que não exibe um critério forte e consistente na sua selecção, não se compreende que certos títulos não hajam sido incluídos, vencedores de prémios literários em diversos países – que, pelo menos, se seguisse um critério de excelência aliado à notoriedade.
Refiro aqui 23 livros que li (onde já incluo o de Siri Hustvedt), apenas na categoria de ficção, editados no último ano (de Julho/05 a Julho/06) e que considero de leitura imprescindível, quer seja no Verão à sombra da bananeira, ou no Inverno devorando-os ao borralho, porque na literatura só há um critério que, na realidade, me interessa, a qualidade. Por ordem alfabética do título, temos:

  1. A Acidental, de Ali Smith, (Bico de Pena)
  2. A Conspiração contra a América, de Philip Roth, (Dom Quixote)
  3. A pele fria, de Albert Sánchez Piñol, (Teorema)
  4. A Sinfonia Pastoral, de André Gide, (Ambar)
  5. Ao meu filho, de Marilynne Robinson, (Difel)
  6. As loucuras de Brooklyn, de Paul Auster, (Asa)
  7. Brasil, de John Updike (Civilização)
  8. Convite para uma decapitação, de Vladimir Nabokov (Assírio & Alvim)
  9. Dias Exemplares, de Michael Cunningham (Gradiva)
  10. Época de migração para norte, de Al-Tayyeb Salih, (Cavalo de Ferro)
  11. Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami, (Casa das Letras)
  12. Mulher em branco, de Rodrigo Guedes de Carvalho, (Dom Quixote)
  13. Nunca Me Deixes, de Kazuo Ishiguro (Gradiva)
  14. O mar de Madrid, de João de Melo, (Dom Quixote)
  15. O Mar, de John Banville (Asa)
  16. O remorso de Baltazar Serapião, de valter hugo mãe, (QuidNovi)
  17. Órix e Crex: O Último Homem, de Margaret Atwood, (Asa)
  18. Paris nunca se acaba, de Enrique Vila-Matas, (Teorema)
  19. Quando Nietzsche Chorou, de Irvin D. Yalom, (Saída de Emergência)
  20. Sábado, de Ian McEwan (Gradiva)
  21. Shalimar, o Palhaço, de Salman Rushdie, (Dom Quixote)
  22. Todos os dias, de Jorge Reis-Sá, (Dom Quixote)
Nota: ler, a propósito das leituras de Verão dos portugueses, este texto do João Gonçalves no Portugal dos Pequeninos.

sexta-feira, 28 de julho de 2006

Irão: Fundamentalismo...

…Cristão!

O romance de Dan Brown, O Código Da Vinci, foi proibido e banido no Irão depois dos protestos dos clérigos Cristãos no país.
A Notícia é da
BBC e foi publicada no jornal norte-americano The New York Times: «‘Da Vinci Code’ Banned in Iran».

Curioso, Mahmoud Ahmadinejad, à laia de Saddam, é a Mãe de todos os fundamentalismos, é magnânimo na proibição.

Nota: o emprego da palavra “Mãe” foi propositado.

Mais blogues

A partir de hoje este blogue incluirá na coluna da direita mais sete ligações a outros blogues que entretanto fui descobrindo. Ei-los:

  • O Acossado, de Francisco Valente e Luís Barroso;
  • As Aranhas, de Luís Miguel Oliveira (manifestando, porém, em tom impudicamente confessional, o meu medo mais tenebroso e inexplicável, que em termos técnicos se designa por aracnofobia);
  • Coisas, de Rui Miguel Brás;
  • Ideias Soltas, de Carlos Araújo Alves;
  • Q.Crescente, se mais faltasse, bastar-me-ia a ideia de Damásio como louvável citação “Emociono-me, logo existo”;
  • Terra Habitada, de Eduardo Basto (do projecto do autor Agrafo Ponto Net).

Boas divagações!

quinta-feira, 27 de julho de 2006

O pasquim digital

A Câmara Municipal do Porto, há uns anos governada pelo inefável Rio, resolveu reabilitar – não, não se trata das famosas SRU – esse símbolo memorável da comunicação, típica de uma paróquia ou de uma aldeola da Idade Média, o Pasquim.
Este, porém, já não aparece manuscrito ou impresso em papel, zelosamente esquecido num tronco de árvore ou nas caixas de correio, é publicado na página oficial da Câmara, à laia de Trombeta Asabranquense, em formato digital.
Os textos informativos falam por si e são a própria imagem do Presidente e da sua governação.
Assim, imbuído de um nobre sentimento de partilha, deixo aqui ficar alguns exemplos para que toda esta imensa comunidade – a blogosfera – possa apreciar esses momentos jornalísticos de brilhantismo e de excelência… de tom eminentemente panfletário:
Notícias de (1)
27 de Julho, (2) 24 de Julho e de (3) 5 de Julho de 2006.

O meu parágrafo preferido:

«Em tom um pouquinho cáustico, o cronista [Vasco Pulido Valente] acha que o Presidente da CMP acha que “há uma horrível conspiração contra ele em Portugal”, critica muita coisa, designadamente as referências do site às notícias que sobre a CMP saem nos jornais, e classifica os textos aqui publicados de “prosa servil do salazarismo, a pender para o ordinário”.»

Nota: Augusto M. Seabra foi condenado em primeira instância a pagar 4 mil euros por haver categorizado o inefável Rio de “energúmeno”. Vasco Pulido Valente para lá caminha; com o que já disse é coisa a atirar para os 2.225,41 euros. Francisco Assis apelidou-o de “um homem (…) com uma visão distorcida, mesquinha, primária, sectária e até rancorosa”. E eu pergunto: a que preços andaria a multa se lhe houvessem chamado de papalvo, irascível, provinciano ou bronco?

Pynchon a 992

Thomas PynchonNão há fome que não dê em fartura, nem mal que nunca acabe!
Thomas Pynchon, 69 anos, considerado pela crítica como um dos melhores escritores norte-americanos da actualidade, anunciou através da Internet a publicação de mais um romance que se começará a vender em 5 de Dezembro próximo – via
este texto no blogue da Casa Fernando Pessoa, Mundo Pessoa. Pynchon já não publicava um livro desde 1997, ano em que foi publicado o seu romance «Mason & Dixon».
O
romance chamar-se-á «Against the Day» cuja trama decorre entre a Exposição Universal de Chicago de 1893 e o período posterior à I Guerra Mundial. Na sua versão original em língua inglesa o romance contará com 992 páginas – será Pynchon em busca do tempo perdido?
Na realidade não se trata de uma novidade. O esquivo escritor norte-americano – que não faz aparições públicas, não se deixa fotografar e tão-pouco concede entrevistas – é caracterizado pelas suas longas obras de ficção, carregadas de personagens – muitas vezes ultrapassando a centena. Vejam-se os exemplos de quatro das suas seis* obras até hoje publicadas, nas suas edições norte-americanas: V. (1963), 560 páginas; Gravity's Rainbow (1973), 768 páginas – considerada a obra-prima do autor, venceu o National Book Award de 1974 e esteve próxima de vencer o Pulitzer Prize for Fiction de 1974, havendo sido unanimemente escolhida pelo júri, porém vetada pelo Conselho de Administração dos prémios Pulitzer, considerando-a como uma obra indecifrável, obscena e excessivamente adornada** – em 1974 o prémio Pulitzer não foi atribuído à categoria de Ficção; Vineland (1990), 385 páginas; Mason & Dixon (1997), 772 páginas.

De Thomas Pynchon apenas li o romance surreal “V.” – um dos dois publicados em Portugal. Para ser sincero, nunca consegui classificar o livro quer em termos de satisfação na sua leitura, quer em termos estéticos e literários. Lembro-me, isso sim, aquando da sua leitura, de passar por momentos de autêntica e imparável gargalhada e por outros em que tive de reler duas ou três vezes a mesma página para tentar perceber o que, supostamente, não fora ali colocado para que se entenda de uma forma canónica da narrativa.

Para os que não o leram, deixo aqui um excerto de uma das partes mais desconcertantes do livro. Pynchon descreve profusamente uma empresa prestadora de serviços nova-iorquina, cuja principal actividade é o extermínio dos crocodilos que deambulam pela intrincada rede de esgotos da Grande Maçã. Estamos no momento em que Profane e os seus colegas de trabalho perseguem um dócil caimão no subsolo de Fairing’s Parrish (Paróquia de Fairing), cujo nome se deve a um padre católico que, profetizando que as ratazanas passariam, num futuro próximo, a dominar a cidade e o país, decidiu antecipar-se e empenhou-se na conversão dos roedores à Igreja Católica. A certa altura (pág. 121) Pynchon diz que o Padre «foi dar bênção eterna e praticar alguns exorcismos sobre as águas que fluíam pelos esgotos entre Lexington e East River, e entre a 86th e a 70th Streets. Foi esta a zona que se converteu em Fairing’s Parrish. Essas bênçãos garantiram um considerável abastecimento de água benta; também eliminaram o problema dos baptismos individuais quando tivesse por fim convertido todas as ratazanas da paróquia.»***

Referência bibliográfica completa
Thomas Pynchon, V., Editorial Notícias, 1.ª edição, Fevereiro de 2000, 477 pp. [Tradução de Salvato Telles de Menezes] (V., 1963)


Notas:
*As restantes obras são: The Crying of Lot 49 (1966) de 183 páginas – foi publicada em Portugal em 1987 pela editora Fragmentos, contém 135 páginas; Slow Learner (1984) de 193 páginas, trata-se de uma colectânea de seis contos publicados entre 1959 e 1964 pelo autor em várias revistas.

**Ver, a propósito desta obra de Thomas Pynchon,
a página que lhe é dedicada na versão em língua inglesa da Wikipedia, onde se descrevem mais episódios curiosos ocorridos com Gravity's Rainbow, por exemplo a famosa cena de Trainspotting, de Danny Boyle, onde Ewan McGregor mergulha na sanita. Outro exemplo curioso é a tentativa infrutífera de Laurie Anderson em obter a autorização do escritor para compor uma ópera baseada na obra, que de facto veio a obter de Pynchon mas com uma condição – bem falaciosa –, a ópera só poderia ser composta por um único instrumento, o banjo – para bom entendedor...

***De seguida descreve-se ainda mais o processo – “é de supor que teve êxito” (pág. 122), conclusão a que se chegou após a leitura de uma nota redigida pelo padre Fairing em 23 de Novembro de 1934. Esta fabulosa nota, de um surrealismo e de uma hilaridade sublimes, está transcrita no blogue filial deste, de nome
Data.

quarta-feira, 26 de julho de 2006

O negrume do ocaso e a jubilosa esperança

Morte em Veneza (carregar na imagem para ampliar)

Fotograma do filme Morte em Veneza (1971) de Luchino Visconti [fotograma retirado da esplendorosa e esmagadora sequência final, na qual Visconti recorre a Gustav Mahler e a toda a sua mestria materializada no clímax do Adagietto da sua 5.ª Sinfonia]

«
A praia estava inóspita. Sobre a planura extensa de água que separava a praia dos primeiros bancos de areia, corriam aguaceiros que enrugavam a superfície. O Outono, uma sensação de fim da estação, abatera-se já sobre a estância, antes tão viva e colorida, agora quase abandonada, e já ninguém limpava sequer a areia. Junto ao mar estava uma máquina fotográfica, aparentemente sem dono, sobre um tripé, e o pano negro que dela pendia esvoaçava no vento frio.
(…)
Separado da terra firme por uma estria grande de água, (…) caminhava, uma aparição desligada, em extremo isolamento (…) Parou de novo. E de repente, por uma recordação talvez, por um impulso, voltou a cabeça, uma mão apoiada na anca, num movimento gracioso do torso, e olhou sobre o ombro para a margem. Sentado na margem, Aschenbach observava-o (…) parecia-lhe que o psicagogo pálido e amável lhe sorria, lhe acenava; como se, libertando a mão da anca, apontasse para longe, flutuasse à sua frente na imensidão promissora.»
Thomas Mann, A Morte em Veneza, Relógio D’Água, Junho de 2004, pp. 111-114.

terça-feira, 25 de julho de 2006

Desde logo o Manifesto, política e uma higiene escrupulosa

Depois da melancólica contemplação, o humor.

Três ligações a três blogues que espalham humor através de três suportes diferentes: texto, vídeo e fotografia.

Vazio


De há uns dias para cá olho para o meu blogue como um objecto inalcançável, impassível de ser actualizado porque – acreditem, sem pretensiosismo de alguma espécie – sinto um vazio literário, como se todo o manancial de temas que pudesse abordar e que pulula por esse mundo fora se tivesse exaurido numa fracção infinitesimal de tempo.
Tentei procurar as causas para este torturante vazio, porém cedo percebi que essa busca era uma tarefa cansativa, inútil e até narcísica roçando os limites do comprazimento em causa própria, tão vicioso e sobranceiro.
Depois, assolou-se-me um sentimento de exibicionismo de um exercício de autoflagelação pública: vêem este pobre desgraçado com as suas atribulações quotidianas, um tipo, à laia de Nobre, triste, soturno, deprimido e que até consegue manter a sua veia de poeta sofredor transmutada em receptáculo expiatório dos pecados do século: Foda-se, este gajo, o André, é mesmo bonzinho, de uma generosidade quase sem mácula!
Bem, mas como se encontram as causas do vazio se desconhecemos por completo, e porventura com maior acuidade, a existência de um estado de criatividade plena? Num mundo onde, felizmente e graças a nós, não há valores absolutos que possam definir a heterogeneidade da espécie e da natureza humanas, a que se deve esse embotamento?
E se então temos consciência dessa diversidade e da chegada progressiva de uma situação de paralisia, quais são as razões subjacentes ao estado de conflito permanente?
Poder? A ufana glória de mandar? O prazer sádico da subjugação do próximo e semelhante?
Sinceramente, não sei responder.
Assumisse o Homem, sem falsos pudores ou receios, o doce encantamento pela beleza do mundo que experimenta mas que refuta quotidianamente.
Não é à toa que o Adagietto da 5.ª Sinfonia de Mahler irá residir na grafonola deste blogue até ao início da próxima semana.
A obra-prima de Thomas Mann, deu origem à obra-prima de Luchino Visconti, onde a simples contemplação da beleza e o conflito interior, incessante e devastador, que reprime a sua exteriorização, metaforizam a condução da humanidade ao ressentimento, à inveja, ao crime e por fim à morte colectiva da própria beleza.


Do romance deixo ficar estas palavras de Mann – onde parte delas mereceu a honra de transcrição para a contracapa na sua edição portuguesa mais recente da Relógio D’Água – de um diálogo de Sócrates com Fedro, em Fedro de Platão, descrito pelo protagonista Aschenbach:

«E entre palavras delicadas e graças espirituosas, Sócrates ensinava a Fedro o desejo e a virtude. Falou-lhe do temor ardente que acomete o homem sensível quando os seus olhos vislumbram uma semelhança do belo eterno: falou-lhe da avidez do homem ímpio e vil, incapaz de pensar o belo ao ver a sua imagem, incapaz de veneração; falou do medo sagrado que invade o homem nobre quando contempla uma face divina , um corpo perfeito – como então estremece e sai fora de si, mal ousando olhar, e como venera aquele que é belo, sim como se ofereceria em sacrifício a este ídolo, se não receasse parecer ridículo aos olhos dos homens. Pois o belo apenas, Fedro, é amável e visível a um tempo; é a única forma de espírito, ouve bem!, que os nossos sentidos podem apreender, que os nossos sentidos podem suportar. Pois que seria de nós se o divino, a razão e a virtude e a verdade, se mostrassem em si aos nossos sentidos? (…) O belo é assim o caminho do homem sensível para o espírito – só o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro…»
Thomas Mann, A Morte em Veneza, Relógio D’Água, Junho de 2004, pp. 71-72. [Tradução de Isabel Castro Silva] (Der Tod in Venedig, 1912)

Filme
Título: Morte em Veneza; Título original: Morte a Venezia; Ano: 1971
Realização: Luchino Visconti; Argumento: Luchino Visconti e Nicola Badalucco
Elenco principal: Dirk Bogarde (Aschenbach), Silvana Mangano, Mark Burns e Bjorn Andresen (Tadjio).

domingo, 23 de julho de 2006

Pseudoconto – II

Já se encontra disponível, no meu blogue Data, o segundo capítulo da versão actualizada para os dias de hoje do conto de O. Henry «A teoria e o cão» – o pseudoconto chama-se «A teoria e o carro».

O último capítulo será publicado quando houver tempo para o redigir.

Amizade incondicional

«A pobreza é o monóculo pelo qual podemos ver os nossos amigos.»
Peter Ackroyd, Os Contos de Clerkenwell, Teorema, Junho de 2006, pág. 256. [Tradução de Paula Reis] (The Clerkenwell Tales, 2003).

Nada de mais verdadeiro. No infortúnio – ou na pobreza – aqueles que insistem em não nos abandonar constituem-se, na realidade, como o bem mais essencial e precioso para a nossa custosa sobrevivência em comunidade: a amizade incondicional.
A esses – poucos, muito poucos mesmo – dedicar-lhes-ei toda a minha vida, quando ela própria consolidar o rumo do sucesso preceituado pelo inevitável ponto de inflexão.

Uma filosofia do limite

Pela segunda e última vez falarei aqui neste blogue do conflito entre Israel e os extremistas libaneses do Hezbollah, mais do que acolitados por regimes teocráticos, ditatoriais e facínoras da Síria e do Irão, que transformaram o País dos CedrosCedrus libani, árvore oriunda da região, outrora predominante, e que figura na bandeira do Líbano – num teatro de terror.
Não domino o número suficiente de variáveis e desconheço, em larga medida, os parâmetros que a elas se aplicam e que me permitiriam explicar o grau de culpabilidade dos intervenientes.
Confesso, porém, que me revejo nas palavras sagazes e contundentes da Secretária de Estado norte-americana Condoleezza RiceCondi para os amigos –, o verdadeiro esteio da actual Administração norte-americana.
O João Paulo Sousa, no seu blogue
Da Literatura, escreve e bem sobre uma dúvida existencial que se me assalta neste tipo de conflitos: o olho por olho, ou até, o olho e o dente por olho. JPS refere-se ao célebre texto de Albert Camus, no qual o eminente existencialista francês questiona o desequilíbrio de forças que os avanços científicos no domínio militar – referindo-se em concreto ao nuclear – proporciona e que se aqueles não forem usados com inteligência a própria humanidade caminhará a passos largos para a aniquilação total.

Na manhã de 6 de Agosto de 1945, um bombardeiro B-29, baptizado de Enola Gay, largava a bomba atómica sobre a cidade japonesa de Hiroxima. A ordem de Harry S. Truman levou Camus, nessa mesma tarde, a redigir o editorial do jornal clandestino Combat, publicado no dia 8 de Agosto.
Desse editorial extraí uma pequena parte que me parece importante para a ilustração do perigo imanente aos avanços científicos e tecnológicos na área militar utilizados de forma insensata ou discricionária:

«Nous nous résumerons en une phrase: La civilisation mécanique vient de parvenir à son dernier degré de sauvagerie. Il va falloir choisir, dans un avenir plus ou moins proche, entre le suicide collectif ou l'utilisation intelligente des conquêtes scientifiques.»
Albert Camus, Editorial do jornal Combat de 8 de Agosto de 1945.

Nota: a versão completa do texto está disponível no blogue subsidiário deste, Data.

sexta-feira, 21 de julho de 2006

Inveja!

Ver a excelente crónica intimista do Pedro Vieira no Irmaolucia sobre o concerto que os meus deuses bostonianos deram ontem em Lisboa.

E, como sou mesmo invejoso, deixo aqui o alinhamento respigado à constatação empírica do Pedro postada na crónica:

  1. Bone Machine (Surfer Rosa)
  2. Crackity Jones (Doolittle)
  3. Broken Face (Surfer Rosa)
  4. Levitate Me (Come On Pilgrim)
  5. Cactus (Surfer Rosa)
  6. Is She Weird (Bossanova)
  7. Gouge Away (Doolittle)
  8. Caribou (Come On Pilgrim)
  9. River Euphrates (Surfer Rosa)
  10. Nº 13 Baby (Doolittle)
  11. Subbacultcha (Trompe le Monde)
  12. Planet Of Sound (Trompe le Monde)
  13. U-Mass (Trompe le Monde)
  14. Debaser (Doolittle)
  15. Monkey Gone To Heaven (Doolittle)
  16. Gigantic (Surfer Rosa)
  17. Where Is My Mind? (Surfer Rosa)
  18. Vamos (Come On Pilgrim)
  19. Wave Of Mutilation (Doolittle)
  20. Hey (Doolittle)
  21. Tame (Doolittle)
  22. Mr Grieves (Doolittle)
  23. Ed Is Dead (Come On Pilgrim)
  24. Nimrod’s Son (Come On Pilgrim)
  25. La La Love You (Doolittle)
  26. Dead (Doolittle)
  27. Here Comes Your Man (Doolittle).

A Suíça do Médio Oriente

Georges SchéhadéEra este o antigo epíteto para um paraíso cosmopolita chamado Líbano, o país dos cedros.

Por enquanto, abster-me-ei de mais comentários. Deixo-vos apenas com duas citações muito breves:
«Yo creía conocer a mi país. He vivido en él toda la vida. Y, ahora, de pronto, ya no lo conozco más: gentes que vivían juntas, y se mezclaban y lo compartían todo, de la noche a la mañana han pasado a odiarse y a infligirse las crueldades más bestiales, convertidas en enemigos irreconciliables.»
Palavras proferidas, em meados dos anos 70 do século passado, pelo poeta e dramaturgo libanês Georges Schéhadé ao escritor peruano Mario Vargas Llosa, retiradas do
artigo assinado por este último para o jornal argentino La Nación [Via este texto do João Gonçalves postado no Portugal dos Pequeninos].

«O secretário-geral das Nações Unidas, se os tivesse no sítio, propunha a suspensão imediata do Líbano do seio da organização. Já se sabia que governo libanês era uma ficção, embora toda a gente assobiasse para o lado. Agora não há desculpas.»
War Notes (n.º 4) por Eduardo Pitta no seu blogue
Da Literatura.

Electrocussão tecnológica

Foi há cerca de 1 mês que paguei, online, o Imposto Municipal sobre Veículos de 2006, todavia a minha caixa de correio suspira diariamente pelo tão esperado selo que, um dia destes, há-de chegar.

Sai aforismo (inventado para a ocasião):
«Mais vale esbarrar numa besta (666) por inteiro, do que em meia (Simplex 333) forjada por um embusteiro».

Tenho dito.

Oito e meio

Frederico FelliniHoje (ontem) na 2: foi para o ar a 4.ª parte do fantástico documentário de 1999 de autoria de Martin Scorsese «A Minha Viagem a Itália», cujo título se inspirou no filme dilacerante – porque é uma cópia perfeita da realidade, da insidiosa modorra conjugal que o tempo, indelevelmente, vai construindo – de Roberto Rosselini «Viagem a Itália», com a notável parelha George Sanders e Ingrid Bergman.
O documentário, como Scorsese explica no fim, é o seu testemunho de como os grandes filmes dos mestres do cinema italiano o inspiraram na sua carreira cinematográfica. Fala de Fellini, Visconti, Rosselini, Antonioni e De Sica. Todavia, não fala das suas carreiras sob um, mais do que esperado, ponto de vista abrangente – vide, como exemplo flagrante do que acabei de referir, o facto de nem sequer mencionar «O Leopardo» de Visconti. Scorsese fala de filmes, de movimentos, diálogos e silêncios, enquadramentos cinematográficos, expressões, sem preocupações científicas ou académicas; trata-se apenas de um testemunho do prazer retirado do visionamento das obras, do lado lúdico da sétima arte que não se aprende nos livros, aprende-se vendo-os na grande tela.
O documentário de 250 minutos termina com o magistral filme de Frederico Fellini «8 ½» que, a par de «Obsessão» o primeiro filme de Luchino Visconti, Scorsese confessa tratar-se de um dos melhores filmes da história do cinema. Como ele diz é o filme sobre a arte do filme, que capta a angústia criadora do realizador na sua plenitude.
De 8 ½ há, para mim, vários momentos inesquecíveis, um dos quais é a sequência surreal do acto de amestramento das mulheres que rodeiam Guido (Marcello Mastroianni).

Depois, há as frases que ficam:
«La felicità sarebbe poter dire la verità senza far piangere nessuno» (pensamento de Guido)
(A felicidade é o poder de dizer a verdade sem magoar ninguém) [Tradução livre, mantive a dupla negação por fidelidade à frase original]

Guido dirige-se ao Cardeal, a quem pede um conselho.
Guido: «Eminenza, io non sono felice».
Cardeal: «Perché dovrebbe essere felice? Il suo compito non è questo. Chi le ha detto che si viene al mondo per essere felici? Dice Origene nelle sue omelie: “Extra ecclesiam nulla salus” – fuori della chiesa non c’è salvezza»
(Guido: Eminência, eu não sou feliz.
Cardeal: Por que razão deverias ser feliz? A tua tarefa não é esta. Quem é que disse que se vem ao mundo para se ser feliz? Orígenes disse na sua homilia: “…” – fora da Igreja não há salvação».) [Tradução livre]


Finalmente, há a curiosidade sobre o porquê do título «8 ½»:
Reforçando a componente autobiográfica da obra, este filme é a oitava longa-metragem de Felinni – por curiosidade a sétima foi La Dolce Vita de 1960 – que, ademais, havia realizado dois segmentos, curtas-metragens, antes de 1963 para os filmes L’amore in città (1953) e Boccaccio '70 (1962), que Fellini considerou em conjunto como ½ filme.

quinta-feira, 20 de julho de 2006

Idolatria

Pixies
Tinha apenas catorze anos quando três senhores e uma senhora de Boston resolveram juntar-se e formar uma banda que foi baptizada de PIXIES.
Não vou dizer muito mais, apenas referirei que Black Francis, Kim Deal, Joey Santiago e David Lovering estarão logo à noite em Lisboa.
No dia 14 de Junho de 1991, tinha eu acabado de completar os meus dezanove anos, o grupo de Boston deslocou-se ao Coliseu da minha cidade. Era uma triste e penosa sexta-feira à noite… No sábado seguinte de manhã estava marcada a 2.ª frequência de História do meu 1.º ano de licenciatura. O exame correu bem, o meu ano lectivo terminou em beleza, mas o sal das lágrimas da não presença subsistiu durante anos, a minha cara era o palimpsesto da minha desilusão – o grupo desfez-se em 1992.
Agora, com trinta e quatro anos – acreditem! –, sinto-me velho para assistir a concertos rock – prefiro os mais formais.
Um dia destes convido-os para uma actuação privada em minha casa.

Boa sessão
Pedro!
Bom concerto a todos os pixómanos, eu cá estarei pela invicta a invejar-vos!

Agora, para algo completamente surpreendente, aqui fica um presente para todos os meus leitores… para ouvir uma por cada álbum de originais:

Os lobbies

Estou cansado e nauseado com o país da impunidade!
O país que premeia aqueles que se filiam em clubes, associações, agremiações, fundações, obras, sindicatos, seitas, ordens, câmaras… em detrimento do mérito e do esforço empreendido pelos seus cidadãos no desempenho das suas tarefas.
País que deixa que se recompense a cunha, o compadrio ou a fraude à lei descarada e até espertalhona – que giro!
No país dos cidadãos de primeira, que se aposentam aos cinquenta e cinco anos com reformas completas e douradas, que coabitam, enxovalhando, os pobres desgraçados, cidadãos de segunda, que com sessenta e cinco anos e quarenta ou mais de trabalho terminam a vida activa esfalfados, curvados pelo peso da vida, para quem a morte já não é um conceito difuso, longínquo e encarado com uma displicência temerária, como ousavam fazer nos loucos tempos de juventude.
Pobre país o nosso! Merda de país o nosso!
Um país cujo sistema político se baseia numa democracia parlamentar, mas o Chefe do Governo prefere negociar com os aguerridos grupos de interesses – associações patronais e sindicatos – que escassamente representam a população, a discutir com os representantes eleitos, por sufrágio universal, pelos cidadãos nacionais.

  • Como se pode rejeitar um projecto de lei que ainda não foi apresentado ou sequer discutido na Assembleia da República?
  • Quem me representou na discussão sobre as linhas estratégicas para a reforma da Segurança Social?

quarta-feira, 19 de julho de 2006

Uma praia lúgubre

Através do Mundo Pessoa – blogue da Casa Fernando Pessoa – fiquei a conhecer as sugestões de leitura para a praia da jornalista e romancista inglesa Joanna Briscoe, colocadas no periódico The Independent.
Um dos livros sugeridos foi o romance «Aquilo Que Eu Amava» de Siri Hustvedt.
Ora, se tal como eu, houver alguém que abomine a praia – a não ser para dar uns mergulhos no mar, secar e vir embora – nada melhor que ler o romance da Siri para transformar o típico ambiente de descontracção e de leveza mental num local sombrio e angustiante pelo enredo da obra.
Porém, o mais curioso é a justificação da própria para a escolha deste livro: «Este romance, sobre o amor e a perda, é sombrio, trágico e viciante. Por outro lado, é admiravelmente bom nas intricações da teia de relacionamentos.» [Tradução livre]

Concordo na íntegra com as palavras de Joanna, mas será o livro mais indicado para engordurar com protector solar mesclado com areia?

Em jeito de recordação, aqui ficam as minhas considerações sobre o romance de Siri Hustvedt postadas
aqui em Março passado:

«(…)
a sua narrativa não assenta nessa sucessão de acasos, mas na dolorosa percepção da fragilidade da nossa vivência, de um quotidiano preso por arames, como num demorado jogo de xadrez onde, após cada passo dado, dificilmente conhecemos a decisão que advirá da outra parte que interage nessa dialéctica.
É uma história em 3 actos dramática porque verosímil, comovente e arrebatadora porque traduz fielmente os nossos desassossegos, mais ou menos conscientes, perante a necessária adaptação do eu à vida em sociedade.
O livro, apesar de extenso, lê-se de uma só penada, onde chegam a coexistir o nó na garganta e a sentida hilaridade. O início do 2.º acto – chamemos-lhe assim – vergou-me perante o peso das lágrimas que rebentaram qualquer resistência de estúpido macho latino: homem não chora!
»

Três anos de prisão com pena suspensa de quatro…

…pelos crimes de extorsão, sequestro e posse ilegal de armas. [Ver notícia aqui].

Comentário único: a prisão passaria a efectiva se àqueles crimes menores – pequenas tropelias perpetradas por um inimputável ex-adolescente – se juntassem a prática do crime de aborto – felizmente são homens! – e a condução de veículos sob o efeito de uma taxa de alcoolemia superior a 1,2 g/l de sangue.

E assim continuam as nossas desventuras no país da impunidade!

Portnoy revisitado

Alexander Portnoy e o seu complexo no Auto-Retrato de Sérgio Lavos.

Dr. Spielvogel, psicanalista e autor de "O Pénis Perplexo", ouve as confissões de um judeu, nascido em 1938 em Newark, NJ, de nome Portnoy, padronizando um complexo ao qual atribuiu o nome do seu paciente:
«Perturbação na qual profundos impulsos éticos e altruístas entram em perpétuo conflito com desejos sexuais descomedidos, muitas vezes de natureza perversa».

Este livro é, para além de muitas coisas, uma sátira e/ou um advertência ao conflito moral entre as práticas do judaísmo ortodoxo e o modo de vida dos gentios norte-americanos.

Para que se perceba, leia-se o excerto transcrito pelo
Sérgio.

terça-feira, 18 de julho de 2006

Os segredos do Mestre

Paul Auster, casado com a romancista Siri Hustvedt, descreve a sua relação com Olympia… a sua máquina de escrever, e com o pintor Sam Messer – que ilustra o livro –, vértice fundamental deste triângulo amoroso.
Esta é a história desse casamento que dura há vinte e cinco anos, na qual se descreve os diferentes estágios por que passam os sentimentos de Auster perante a sua companheira de tantos ensaios, críticas, poemas e romances.
O livro foi publicado pela primeira vez em 2002 nos Estados Unidos. A
Asa – à qual presto a minha verdadeira homenagem pelo esforço austeriano – publica agora «A história da minha máquina de escrever».

Assim, meus caros editores alados, é só mais um esforço para a reedição de In the Country of Last Things e Mr. Vertigo na língua de Camões – os dois únicos romances de Auster sem publicação disponível em português, após se haverem esgotado a idas edições dos anos 90 da
Editorial Presença.

Depois do Bolo-rei…

…nada como um bem trincado pãozinho com manteiga – dispensando-me de aqui postar as nauseantes onomatopeias – por mais um descendente de D. Afonso Henriques, o exumado… perdão, o conquistador!
«See, the irony is what they really need to do is to get Syria to get Hezbollah to stop doing this shit and it’s over».

segunda-feira, 17 de julho de 2006

Olhos de cão azul

Gabriel García MárquezArrepio-me. Chamem-me piegas, romântico ou elogiador do kitsch. Há pequenas frases carregadas de engenho, transportadas pela mão de um Mestre, da mente ao papel.
Gabriel tinha apenas vinte e dois anos quando escreveu isto:

«Vi-a dirigir-se para o toucador. Via-a aparecer na lua redonda do espelho, olhando-me agora ao fim de uma ida e volta de luz matemática. Vi-a continuar a olhar para mim com os seus grandes olhos de cinza incendiada, olhando-me enquanto abria a caixinha com embutidos de madrepérola rosada. Vi-a empoar o nariz. Quando acabou fechou a caixinha, voltou a levantar-se, e aproximou-se de novo do castiçal dizendo: «Receio sempre que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas», e estendeu sobre a chama a mesma mão longa e trémula que estivera a aquecer antes de se sentar ao espelho. E disse: «Não sentes frio?» E eu disse-lhe: «Às vezes». E ela disse-me: «Deves estar a senti-lo agora.» E então percebi porque é que não pudera estar só na cadeira. Era o frio que me dava a certeza da minha solidão.»
Gabriel García Márquez, “Olhos de cão azul” [conto], Olhos de cão azul, Quetzal, 7.ª edição, Maio de 2001, pág. 82. [Tradução de Maria da Piedade Ferreira].

Agora na língua de Cervantes para os mais puristas:

«La vi caminar hacia el tocador. La vi aparecer en la luna circular del espejo mirándome ahora al final de una ida y vuelta de luz matemática. La vi seguir mirándome con sus grandes ojos de ceniza encendida: mirándome mientras abría la cajita enchapada de nácar rosado. La vi empolvarse la nariz. Cuando acabó de hacerlo, cerró la cajita y volvió a ponerse en pie y caminó de nuevo hacia el velador, diciendo: «Temo que alguien sueñe con esta habitación y me revuelva mis cosas»; y tendió sobre la llama la misma mano larga y trémula que había estado calentado antes de sentarse al espejo. Y dijo: «No sientes el frío». Y yo le dije: «A veces». Y ella me dijo: «Debes sentirlo ahora». Y entonces comprendí por qué no había podido estar solo en el asiento. Era el frío lo que me daba la certeza de mi soledad.»
Gabriel García Márquez, Ojos de perro azul, 1950.

Pseudoconto – I

Tal como havia prometido aqui, já está disponível, no meu blogue filial deste, o primeiro capítulo da versão actualizada para os dias de hoje do conto de O. Henry «A teoria e o cão».
O pseudoconto chama-se «A teoria e o carro».

Quando houver tempo e disposição escreverei os seguintes.

domingo, 16 de julho de 2006

Vida extinta

Não, não é a morte na sua acepção física de fim da linha. É a vida de milhares, assente na dolorosa existência, que se deteriora pela crença de que o milagre se irá revelar num futuro muito próximo durante esta curta passagem: «Devia chegar hoje de certeza».
«A única coisa que chega de certeza é a morte, Coronel.»
Esta última frase é proferida pelo administrador dos correios da aldeia, de quem a voz dá o título à novela «Ninguém escreve ao Coronel» de Gabriel García Márquez – agora publicada pela Dom Quixote.
García Márquez, numa entrevista dada a um jornalista cubano, chegou a considerá-la como a sua melhor obra de sempre.
Esta é a história de um coronel que, depois de haver sido desmobilizado do exército da revolução colombiana, esperando em vão por uma malfadada reforma prometida pelo governo no célebre Tratado de Neerlândia, se vai arrastando para a miséria pela firme convicção de que a reforma algum dia chegará e pelo despojamento a que se submete para garantir a subsistência de um galo de combate, deixado pelo filho, que competirá num futuro próximo, trazendo-lhe consideráveis proventos em caso de vitória.
Esta é, sem dúvida, uma excelente representação do nosso tão incrustado sebastianismo. A tal perseverança na espera pelo milagre e a angustiante desistência da luta pela sobrevivência na esperança de que algo irá acontecer que nos fará mudar de vida, já extinta, morta sem darmos por isso.
O Coronel, decerto, teria uma costela portuguesa. Ou García Márquez já se teria inteirado da triste realidade portuguesa, quando em 1957, apelando a toda a sua mestria narrativa, escreveu esta novela em Paris (apenas publicada em 1961, cujas razões estão descritas na fabulosa autobiografia «Viver para contá-la»).

Tão português este fado!
De que sobreviveremos se o esperado não se concretizar?
– Merda!

Referência completa (há, pelo menos, uma anterior em português da Quetzal)
Gabriel García Marquez, Ninguém Escreve ao Coronel, Dom Quixote, 1.ª edição, Junho de 2006, 106 pp. [Tradução de José Colaço Barreiros]. (El coronel no tiene quien le escriba, 1961).

sábado, 15 de julho de 2006

Teorias e os vários cães

O. HenryPor diversas vezes insurgi-me neste blogue contra a supostamente inevitável política dos rótulos, como se o comportamento humano seguisse uma linearidade mensurável ou, declarando a sua incontestável impossibilidade, se pudesse representar por uma nuvem de pontos reveladores de uma tendência sujeitável a um processo regressivo, com resultados estatisticamente significativos e uma curta margem de erro.
Não me refiro ao acto de questionar outrem sobre determinada cor, crença ou tendência. Refiro-me, isso sim, à perigosa presunção, transformada pela febre rotuladora, sobre o carácter de alguém que nem sequer conhecemos ou que nem sequer demos a devida oportunidade para conhecer. Rotulamos, abjuramos, enlevamos… engavetamos os demais pela palavra professada, pelo gesto meramente circunstancial, pelo sentimento libertado quando as amarras atadas pelo nosso polícia interior não são suficientemente sólidas para o deter.
São os perigosos silogismos que não obstamos a adoptar como máximas valorativas de um ser humano que connosco partilha um mesmo espaço.
Se demonstro as minhas preocupações sociais, sou de esquerda. Se professo a livre circulação de capitais e a intervenção mínima do Estado na economia, sou de direita. Se me manifesto contra a lei que penaliza a interrupção voluntária da gravidez até às doze semanas, sou de esquerda. Se considero inconcebível a adopção de crianças por casais homossexuais, sou de direita.
E poderia continuar, rumando pelo mesmo trilho rotulador, procedendo apenas a uma mera substituição dos atributos: ateu, católico, muçulmano, etc.; hetero, homo ou bissexual;...

A esses rotuladores recomendo a leitura de um conto de um tal William Sidney Porter – que se dava a conhecer por Oliver Henry, ou preferencialmente por O. Henry –, chamado “A teoria e o cão”.

Nota: no Data aparecerá em breve uma adaptação pífia para os dias de hoje do conto de O. Henry supramencionado. Será um pseudoconto redigido por este escriba que mantém estes blogues.

sexta-feira, 14 de julho de 2006

Chinaski [actualizado]

O poeta indigente que denuncia, de forma desabrida, a indigência mental da sociedade americana que lhe foi contemporânea.
Henry Chinaski não é um pseudónimo de Charles Bukowski, é o seu alter-ego, é o receptor no papel das suas atribulações autobiográficas: alcoólico, boémio e fodilhão inveterado.
Em 1964, Sartre recusou o Nobel da Literatura alegando a institucionalização dos seus escritos como principal motivo, as grilhetas intelectuais jamais o deixariam produzir em liberdade. Todavia, há quem interprete o acto de recusa como uma eminente exacerbação da sua soberba, do seu ego inflado. Sartre era um revolucionário pelas palavras e actos, um agitador social com estranhas amizades. Um dia afirmou que Bukowski era o maior poeta americano, porém Bukowski recusou-se a um rendez-vous com o inefável pensador francês – ver
aqui a informação.
Este é o lado encantador de Bukowski, o eterno irreverente e destruidor de convenções e de ufanos intelectualismos.

Um exemplo:
Em A sul de nenhum norte, Chinaski desafia Hemingway para um combate (pp. 107-108):
«
Levantei-me e subi lentamente a coxia. Ergui o braço e toquei ao de leve no flanco de Hemingway.
– Sr. Hemingway…?
– Sou, o que é?
– Gostava de trocar uns socos consigo.
– Tens alguma experiência de boxe?
– Não.
– Vai ver se aprendes alguma coisa primeiro.
– Eu estou aqui para o correr aos pontapés.
»

Chinaski derrota o velho Ernie por KO e enquanto este último se mantém insconsciente é convidado por um crítico do The New York Times para publicar os seus contos. Ernie – carinhoso petit nom com que Chinaski se dirige a Ernest Hemingway – parece querer despertar da modorra (pág. 111):
«
Vesti-me e, nessa altura, Ernie recuperou os sentidos.
– Que raio se passou? – perguntou ele.
– Sr. Hemingway, encontrou um homem bastante bom pela frente – disse um tipo.
Acabei de vestir-me
[Chinaski] e dirigi-me à mesa onde ele [Ernie]
estava deitado.
– Você é bom, Pai Hemingway. Não se pode vencer sempre – disse eu, apertando-lhe a mão. Não estoure com os miolos.
»

Esta passagem do conto “Classe” é simplesmente deliciosa.

Nota: no blogue Data deixarei, ainda hoje, mais um curto e genial diálogo entre Chinaski e Hemingway, referente ao conto “Não tenho pescoço e sou mau com’às cobras”* – também inserido em A sul de nenhum norte –, quando estes se encontram num bar de uma ilha turística e o primeiro diz ao segundo (pág. 243): «pensei que tinhas estoirado a cabeça com uma espingarda!»

Referência completa
Charles Bukowski, A Sul de nenhum Norte: Histórias da Vida Subterrânea, Relógio D’Água, 1.ª edição, Outubro de 1997, 323 pp. [Tradução de Manuel Resende] (South of no North, 1973).

[actualização] - Já disponível.

quinta-feira, 13 de julho de 2006

Quarenta graus à sombra

É em dias como este que recordo – e consigo viver! – Vítor Espadinha, o Joe Dassin português – ou será este le Petit-épée francês?
Hoje o Porto parecia Banguecoque com um pouco menos de humidade.
Neste preciso momento é a cidade mais quente do país com 31ºC. E, note-se, a temperatura é retirada à beira-mar na estação meteorológica do aeroporto em Pedras Rubras.

Margaret, isto é o verdadeiro fritamiolos!

Prémios Literários e Roth

Philip RothNo Data estão disponíveis as listas dos livros de ficção, escritos em língua inglesa ou francesa, premiados nos anos de 2005 e 2006.
Confesso que um dos prémios que mais alegria me trouxe foi o PEN/Nabokov Award deste ano.
Com efeito, a Vladimir Nabokov Foundation em conjunto com o PEN American Center galardoaram o percurso e a obra literárias de Philip Roth, como já
aqui referi.
O breve discurso de agradecimento, de tom humorístico, escrito por Roth refere Henry James e Joseph Conrad, e suscitou as mais fortes gargalhadas na noite de 22 de Maio deste ano no Walter Reade Theater, situado no Lincoln Center em Nova Iorque.

Para ouvir o discurso, carregar aqui.

No imo pelas palavras

Lord ByronExcelentes textos de natureza eminentemente ensaística do Sérgio Lavos e da Susana Viegas, no blogue Auto-Retrato*, que discorrem sobre o estado de conflito interno ou de desassossego da alma somatizado nas obras literárias de ficção ou na essência do pensamento filosófico dos autores.
Lembro-me sempre da analogia freudiana da panela de pressão e do doloroso processo de constrição dos nossos impulsos mais frementes, cuja denegação implica o seu recalcamento, sendo depois compensados pelas manifestações artísticas, como válvulas de escape, que contêm o código genético do nosso imo, ou se se preferir, da nossa natureza irrevogavelmente humana.
Todavia, é conveniente reforçar que esses impulsos não são apenas fruto de um processo de aprendizagem que nos é inculcado de forma directa e indutora por aqueles que têm responsabilidades nos nossos crescimento e formação como seres humanos, a própria experiência de vida, dos conhecimentos de uma forma declaradamente empírica tem o seu papel nessa modelação – chamemos-lhe assim.
Embora eu progrida para um grau superlativo de cepticismo das minhas certezas, tenho que convir que a trágica morte do meu irmão, cuja dor do luto me acompanhará para todo o sempre, transformou-me num leitor compulsivo, num perscrutador do mundo e num relativizador das denominadas coisas sérias da vida.

Cito Byron:

My slumbers – if I slumber – are not sleep,
But a continuance of enduring thought,
Which then I can resist not: in my heart
There is a vigil, and these eyes but close
To look within; and yet I live, and bear
The aspect and the form of breathing men.
But grief should be the instructor of the wise;
Sorrow is knowledge: they who know the most
Must mourn the deepest o'er the fatal truth,
The Tree of Knowledge is not that of Life.


Da peça de teatro de
Lord Byron, Manfred, 1816, Acto I, Cena I: 3-12.

*Nota: apesar de eu não ter voto na matéria, porque sou um mero leitor – assíduo, é certo! –, prefiro a grafia Auto-Retrato. À portuguesa e de forma puritana seria, na realidade, Auto-retrato. Todavia, na língua inglesa as palavras que compõem os títulos vêm sempre grafadas com letra maiúscula, exceptuando-se os verbos, preposições e advérbios, mesmo que a palavra seja uma locução, como é o caso. Mas o melhor será perguntar ao nosso especialista na matéria Luís Carmelo (ligação para ser explorada pelo Technorati).

quarta-feira, 12 de julho de 2006

Lux Interior e Poison Ivy

The Cramps - Psychedelic JungleQuem nega e refuta a blogosfera ainda não percebeu, nem sequer experimentou, os benefícios que a inescapável interactividade proporciona para o nosso bem-estar.
O Pedro Vieira, do
irmaolucia, tem o condão de me oferecer alguns desses momentos, e hoje fê-lo ao recordar este fabuloso Psychedelic Jungle dos eternos The Cramps, inventores e símbolo máximo do movimento dos anos 80 denominado por Psychobilly, como derivação do Rockabilly.

Bem-hajas, Pedro!

Nota: para os saudosistas aqui fica a ligação para o portentoso “Goo Goo Muck" – segunda faixa do álbum.

Lembrete

Este texto de um dos meus bloguistas de referência, o Pedro Correia, no seu blogue Corta-Fitas não irá merecer da minha parte qualquer comentário*, uma vez que correria o sério risco de transformar este blogue no “Donos da Bola em HTML” – onde, na versão televisiva, já pontificou o polivalente e inefável Santana Lopes.
O título diz tudo, fica aqui a nota para a posteridade ou para os momentos Kodak.

Entretanto, deixo aqui uma singela ligação para um passatempo de Verão: “
Encontre e assinale os políticos ou ex-políticos na presente lista”.

Por conseguinte, o exercício de autocontrolo também não me permite falar do tema “Ministros vs. Clubite”.

*Era para o fazer no local apropriado (caixa de comentários do referido texto), mas depois de haver apurado o nível e a qualidade dos 32 comentários anteriores (número de comentários existentes na altura em que o li), recusei-me a tal exercício de réplica. Depois… Depois veio o argumento “Donos da Bola”.

terça-feira, 11 de julho de 2006

Why can't you see?

…Arnold Layne, Arnold Layne.

Morreu o psicadélico Syd Barrett, fundador, vocalista e guitarrista dos gigantes Pink Floyd: Nick Mason, Roger Waters e Richard Wright e mais tarde David Gilmour.

Barrett retirou-se da banda ainda nos anos 60, devido a problemas psíquicos – sofria de agorafobia – e da forte dependência das drogas. Morreu há dois dias por complicações relacionadas com a diabetes.

Benefício da angústia [Actualizado]


As desgraças e desvarios já vêm de longe.
Decorria a quadra natalícia do ano da Graça de 1703, Portugal assina com o seu mais velho aliado, a Inglaterra, o ruinoso Tratado de Methuen.
As barreiras à importação dos tecidos ingleses são levantadas por contrapartida da venda em terras de Sua Majestade do nosso precioso néctar produzido por terras sulcadas pelo rio Douro.
Com efeitos irreversíveis, uma região de solos xistosos e rescendida pelo intenso odor da esteva – feromona da lavoura vinhateira exsudada pelos corpos martirizados pela orografia agreste – transforma a sua paisagem em deleitosos socalcos formados por curvas luxuriantes que lhe conferem o matiz e marca indestrutível de uma das regiões mais belas do mundo – aqui há trabalho, sangue, suor e lágrimas. Aqui há Douro.
Somos os primeiros. Somos sempre o caralho dos primeiros no maior pão com chouriço do mundo, na maior bandeira humana, no número de comensais numa feijoada de orgiasta numa ponte, queremos, agora, exumar o corpo do detentor do reinado mais longo da Europa… detemos a região demarcada de vinhos mais antiga do mundo, quis Sebastião José em meados do século XVIII.
Mais tarde veio o benefício para milhares de lavradores durienses. Não, não se trata de um lucro, de uma vantagem, mas da quantidade máxima de mosto que cada produtor pode entregar para a produção de Vinho do Porto, comercializado por escassas três dezenas de casas exportadoras, que pagam o preço à pipa.
Veio a CEE depois a UE, e com elas a modernização e a reconversão de vinhas, processo obrigatório para a futura atribuição de subvenções.
Empresas de construção com os seus bulldozers e escavadoras esventraram o xisto: patamares ou vinha ao alto, tem que passar o tractor pelo meio… Onde antes havia três, agora há apenas um bardo – fileira de vinhedo, sustentado por lousa e arame.
Modernizar para um futuro melhor! A surriba assemelhar-se-á a uma brincadeira de crianças. Menos mão-de-obra necessária para a lavoura, que escasseia pelo salto para terras de França, da Alemanha, da Suíça e da Bélgica.
Onde se produzia cem, produz-se agora cinquenta. Normas da CEE, regras do Ministério, regulamentos do Instituto… a Casa do Douro definha, só se lhe ouve o pesado estertor do definhamento. Os lavradores gritam! As bocas mexem-se em movimentos maxilares bruscos e contínuos, mas não há som, não há palavras que se façam ouvir. Os excedentes, as vinhas abandonadas ao americano que cresce selvagem. Agora, o cheiro da esteva prenuncia a morte, o odor do Douro quase cadáver em decomposição que atrai os abutres. Lavradores convertam-se em hoteleiros… e o vinho? E a marca Portugal?
O Porto é sul-africano, australiano, neozelandês. E cá vai-se apertando com os desgraçados que vieram da sardinha com broa de milho nas duas refeições diárias, filhos com a instrução primária, outrora de cueiros amanhados a papel de jornal, sem luxos para pano; com as mãos gretadas pelo cabo do sacho, costas torcidas pelo peso dos cestos, cara queimada pelo calor que encana pela vale do Douro, vindo do inferno que grita: miséria, fome, abandono... pulhas!
C. foi rico – o mais rico da zona – diziam. Tinha cinquenta trabalhadores que o tratavam por tu, partilhando as refeições de carne com massa e feijão à sombra das oliveiras que outrora delimitavam os vinhedos. Há quinze anos que o preço da pipa vem caindo, ganhando hoje quase metade a preços correntes.
Havia excedentes, o falacioso benefício não chega para o sustento. Aventurou-se no vinho Douro D.O.C, criou uma marca, não vende. O que vende é absorvido pelos intermediários e agiotado pelos restaurantes com margens de 100, 200, 300%. Ou hipermercados com margens esmagadas e pagamento obrigatório à cabeça pelo produtor, para este poder expôr o produto de anos de labuta junto às garrafas de plástico de Coca-Cola – mistela pouco mais barata.
Não há roga, nem mãos para trabalhar. Fugiram todos pela míngua.
C. foi muito rico… Comprou uma arma e remira-a noite e dia. Beija os filhos, abraça a mulher. Sobe os socalcos. Uma suave brisa adula as parreiras e lambe-lhe as lágrimas salgadas que lhe turvam a vista.

Nota: ler esta notícia publicada hoje no Jornal de Notícias.

[Actualizado] ver aqui a notícia na íntegra e com mais desenvolvimentos no Público, pelo jornalista Mário Barros.

segunda-feira, 10 de julho de 2006

Novo sítio

A partir de agora este blogue disporá de um sítio auxiliar para algumas actualizações e secções respeitantes às artes literárias.

O novo blogue – e saliento que é apenas subsidiário deste – chama-se “
Data”.

Razões para ler…

…Updike, John Updike!

Se razões faltassem para o ler, estou como o Francisco JV sobre a
cerveja, hoje há 99 apologias updikianas + 1, sendo que este acréscimo unitário provém de uma – chamemos-lhe antes assim – insuperável irritação de estimação:

Ontem no sofrível
Eixo do Mal, Clara Ferreira Alves exprobrou John Updike pelo seu último romance «The Terrorist» – que já aqui dei a devida conta da sua publicação –, referindo-se à característica tão americana da não compreensão do fenómeno do terrorismo.

Updike decerto tremeu!

Nota 1: CFA baseou-se na recensão de Robert Stone, que ainda não tive pachorra para ler. No entanto, por aquilo que já pude ler de outros críticos literários, creio que, uma vez mais, Kakutani é a mais incisiva, chegando a chamar-lhe “maladroit novel”.

Nota 2: com a remodelação da aparência deste blogue, retirei a secção dedicada ao Ritmo Editorial Português. Todavia, este afastamento é apenas transitório, uma vez que irei criar uma página alternativa e subsidiária deste blogue para nela incluir material do pesado. Nessa ocasião introduzirei no contador este último de Updike.

domingo, 9 de julho de 2006

Impunidade

Charles BukowskiApesar de carregar somente 34 anos de fardo neste lombo tipicamente luso-varonil – sei lá como isso se define! –, já consegui entender que a torturante pescadinha de rabo na boca nacional passa sempre pelos domínios da justiça e da educação.
Dizem-me – e até sou gajo para acreditar, porque até vejo – que me engano ao eleger a justiça – de que a denegação não é a injustiça, mas antes a dócil impunidade – como o pilar de base que sustenta e norteia esta sociedade lusitana, cuja idiossincrasia social traduz-se bem pelo recurso ao vocábulo mediocridade – como, aliás, não me canso de referir.
Ora, este argumento baseia-se no seguinte pressuposto: se as políticas estruturais privilegiassem a educação, no sentido amplo do termo, como campo primordial de intervenção e de actuação duradoura – englobando todos os actores com responsabilidades na matéria, da família ao Estado –, a justiça por si só funcionaria.
Eu respondo sempre com a história do ovo de Colombo, das pescadinhas, da justiça como incentivo à educação na medida em que, a primeira enquanto redutora de desequilíbrios, permitiria que o sistema de desenvolvimento da sociedade em questão se encontrasse devidamente afinado, servindo de base à promoção e ao aperfeiçoamento da segunda.

Ponto de ordem: Discussões metafísicas à parte – que rapidamente poderiam resvalar para o fecundo campo da patafísica –, imagine-se que uma frase do lúbrico e coloquial Charles Bukowski pode desenredar, com num passe de mágica, esta aparente perplexidade:

O narrador queixa-se que determinada pessoa que empregara a si e a outro sujeito tinha-os «…fodido bem fodidos, de todas as maneiras possíveis e imagináveis.» Mas que não podiam «berrar pela lei, porque quando um gajo não tem dinheiro a lei deixa de funcionar.»
Em A Sul de nenhum Norte: Histórias da Vida Subterrânea, de Charles Bukowski, Relógio D’Água, 1.ª edição, Outubro de 1997, pág. 75. [Tradução de Manuel Resende] (South of no North, 1973).

Ora, este pequeno e contundente naco de prosa foi escrito nos Estados Unidos no início da década de 70 do século passado…

sábado, 8 de julho de 2006

Temor e tremor

Não, não vou aqui dissertar, à laia de Kierkegaard, sobre as considerações da ética e da fé, ou sobre a resignação perante o divino quando não há razão humana que nos permita explicar a angústia que advém do desconhecimento ou do perene estádio de dúvida quando o Homem enfrenta o infinito.
Aqui, apenas irei deixar o meu testemunho sobre o romance distópico de Margaret Atwood «Órix e Crex – O Último Homem», que, de forma imediata, deixa em aberto algumas questões sobre os avanços da genética e da ciência médica perante a diluição ou simples transmutação dos padrões morais de uma sociedade, onde se busca o sagrado através do esforço racional de controlo absoluto das incógnitas que regulam a existência humana, e do modo que elas interagem com a natureza; e, por outro lado, de uma forma transversal a todo o romance – quase que funcionando como subtexto –, a criação de uma nova ordem, de uma nova cosmogonia e da progressiva perda da inocência à medida que os desafios da natureza se tornam mais complexos e aparentemente inextricáveis.
Atwood descreve esse mundo novo de uma forma brutal, até grotesca, cujas verosimilhança e possível concretização nos deixa perfeitamente à beira de um estado de desassossego perante a constatação dos últimos avanços da ciência e da desregulação imanente ao próprio processo tecnológico, porque, por um lado, anda sempre um passo à frente da consciencialização colectiva dos seus efeitos e, por outro, avança a custo das gigantescas corporações da genética e da indústria farmacêutica de fins predominantemente lucrativos, onde imperam a eficiência e eficácia organizacionais, o poder e a cupidez em detrimento do suposto e propalado bem comum.
Órix e Crex, é uma violenta efabulação sobre a necessidade de reinvenção do mundo, no qual se entrecruzam o sagrado e o profano, o medo pelo infinito ou pelo desconhecido, e onde até poderemos descortinar a presença de Deus através das figuras bíblicas de Abraão ou de Moisés.
Com este romance, a escritora canadiana Margaret Atwood foi, em 2003 e pela 5.ª vez (as outras: 1986, 1989, 1996 e 2000), finalista (shortlist) do
Booker Prize – no ano em que venceu, de forma incontestável o fabuloso romance de DBC Pierre «Vernon Little – O Bode Expiatório» –, prémio que venceu em 2000 com o romance «O Assassino Cego».
Órix e Crex é um romance extenso, para se ler devagar e sem ruído exterior.

Pobre Jimmy, o Homem das Neves!

Referência completa:
Margaret Atwood, Órix e Crex – O Último Homem, Asa, Abril de 2006, 394 pp. [Tradução de Ana Maria Chaves e Ana Mafalda Costa] (Oryx and Crake, 2003).