quinta-feira, 6 de julho de 2006

A banalização do sexo

Numa visão extrema e meramente académica, o pretenso acto de se retirar ao desejo a sua componente sexual, transformando o sexo numa função meramente reprodutiva para a sobrevivência da espécie, seria um completo contra-senso atendendo aos próprios ciclos biológicos do acasalamento, da fecundação e da concepção, e à diferença substantiva que nos distingue dos demais seres vivos que connosco partilham o espaço terrestre, para além de esvaziar a razão de ser do que convencionámos chamar desejo, que é causa e simultaneamente efeito de um todo intrincado de simples sentimentos de nós próprios, do qual se obtém, nos seus maiores vigor e intensidade – o paroxismo do desejo –, o amor (ou a paixão) indissociável do sofrimento.
Margaret Atwood, no seu romance distópico e profundamente inquietante «Órix e Crex. O Último Homem» (Oryx and Crake, 2003), dá-nos uma visão terrífica de um possível futuro com predominância para a racionalidade – instinto de sobrevivência – do sexo maquinal, desprovido de amor e completamente despojado de desejo, de forma a evitar o sofrimento:

«O sexo deixou de ser um ritual misterioso, observado com ambivalência ou com uma repugnância categórica, praticado no escuro e inspirador de suicídios e assassínios. Agora é mais uma demonstração atlética, uma brincadeira livre de preconceitos.
(…)
Na antiga ordem natural das coisas, a competição sexual era implacável e cruel: para cada par de felizes amantes havia um espectador desanimado, o que fora excluído. O amor constituía em si mesmo uma cúpula transparente: podíamos ver o casal lá dentro, mas nós não podíamos entrar.
Essa era a versão mais atenuada: o homem sozinho à janela, a beber para esquecer ao som de acordes lúgubres de um tango. Mas as coisas podiam exacerbar-se e levar à violência. As emoções extremas podem ser letais.
Se eu não posso ter-te, mais ninguém terá, e por aí fora. A morte poderia acontecer.
(…)
Quanto desespero inútil tem sido causado por uma série de desencontros biológicos, por um mau alinhamento de hormonas e feromonas, de que resulta que aquele que amas tão apaixonadamente não queira ou não consiga amar-te! Como espécie, somos patéticos nesse aspecto: imperfeitamente monógamos. Se ao menos conseguíssemos encontrar um parceiro para toda a vida, como os gibões, ou então optar por uma promiscuidade total e isenta de culpa, seria o fim deste tormento sexual. Tenho um plano ainda melhor: torná-lo cíclico, e também inevitável, como nos outros mamíferos. Assim, nunca desejarias alguém que não pudesses ter.»
Margaret Atwood, Órix e Crex. O Último Homem, Asa, Abril de 2006, pp. 179-180. [Tradução de Ana Maria Chaves e Ana Mafalda Costa] (Oryx and Crake, 2003).

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