sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Aquilo que eu temia

Há mais de um ano quando a neófita e desde logo louvável Sextante Editora entrou na denominada velocidade de cruzeiro editorial – após um arranque atribulado, em que se viu forçada a mudar de nome para evitar possíveis confusões com outras editoras no mercado, e escolheu este que corresponde a uma editora brasileira –, publicaram-se, numa base sistemática, obras originais de autores nacionais, que acabaram mais tarde por ser objecto de atribuição de importantes prémios literários, e optou-se por uma escolha criteriosa de obras, na sua maioria inéditas em Portugal, de autores estrangeiros consagrados. Enquadram-se neste último caso nomes como Cheever, Echenoz, A.S. Byatt, Pasternak, Truman Capote, Le Clézio e o meu mui estimado autor norte-americano Don DeLillo.
Em Novembro de 2007, a Sextante publicava O Homem em Queda (Falling Man), o último romance do ilustre escritor nova-iorquino – pessoa responsável pela epígrafe deste blogue – publicado originalmente em Maio desse mesmo ano nos Estados Unidos, com uma tradução exemplar de Paulo Faria (aliás, em harmonia plena com o seu padrão de trabalho).
Em suma, o meu júbilo pelo anúncio, embora não tenha tido paralelo após leitura pela qualidade do romance de DeLillo  – em boa verdade revelou-se uma pequena decepção –, deveu-se mais à oportunidade temporal da sua publicação – meio ano após a publicação original, o que é raro no meio editorial nacional –, como também pela escolha do mencionado tradutor, Paulo Faria, um dos poucos nomes cuja inscrição nas primeiras páginas de um livro me deixam a firme certeza de não ter de ingerir um (ou vários) Xanax por uma tradução exasperante.
A talho de foice, dada a minha comprovada listomania – que alguém, não me lembro de quem (deve constar de um dos textos deste blogue, cuja bela preguiça não me permitiu encontrá-lo), condenou os colegas listómanos ao padecimento da síndrome de Asperger – apresentarei, num dia destes, uma pequena (dada a escassez de matéria-prima) relação  dos melhores tradutores nacionais.
Na badana da contracapa do dito romance, houve um conjunto de caracteres que se destacou pelo brilho ofuscante da asseveração que aí era produzida, pelo menos para um delilliano (um verdadeiro trava-línguas):
«Obras de Don DeLillo / A publicar / Ruído branco / Underworld»
Assim que li aquela badana, perguntei-me por que motivo se duplicaria a publicação de uma obra [Ruído Branco] que ainda estava perfeitamente acessível no mercado livreiro, na sua versão de 1991 da Presença? Seria pela sua constatada tradução mais que sofrível, encomendando para o efeito a sua retradução a um notável tradutor da nossa praça?
A segunda resposta afigurava-se-me positiva. De facto, a tradução de White Noise (1985) de Rui Wahnon, tal como ocorreu com a de Libra (1988), é de exasperar um santo bibliófilo, moderadamente apreciador das obras de DeLillo. E o mercado literário e os seus consumidores só têm a ganhar com traduções posteriores que procurem corrigir as traduções existentes e com isso captar, de forma mais eficaz, a verdadeira essência, o espírito que o autor emprestou à obra.
Ruído Branco é, na realidade, um romance arrebatador, profundamente envolvente, admirável na gestão das expectativas do leitor, no recobro do seu fôlego, em suma, é uma obra genial engendrada por um colosso literário. Das oito* entre as catorze obras de ficção escritas por Don DeLillo – deixando de parte os contos e as peças de teatro – que tive a feliz oportunidade de ler, aquela é, sem sombra de dúvida e na minha pessoalíssima opinião, a melhor obra do autor de Nova Iorque, com a qual, este, até aos dias que correm, venceu o seu único National Book Award (o de 1985).
É oficial. Acabei de receber a informação enviada pela própria editora:
«Novidade de Outubro: Ruído branco, de Don DeLillo.»

Aconteceu o que temia depois de ler aquela badana, cuja informação transcrevi. Underworld, considerada a magnum opus de DeLillo, iria ficar para segundo plano. E esta predição baseou-se, essencialmente, em dois factores:
  1. As mais de oitocentas páginas da versão original da obra; logo, potencialmente menos vendável, dispendiosa em termos de edição, e a exigir uma tradução original sem rede ou sem muletas de edições anteriores;
  2. A tradução já existente da Editorial Presença, cuja edição deverá estar prestes a esgotar, aliada – e torna-se imperioso realçar este aspecto – à notoriedade de uma obra consideravelmente menos volumosa – a 1.ª edição de 1991 da referida editora não passou das 325 páginas (irão ser 400 na versão da Sextante).

Mas o choque foi ainda maior, quando no dito auto de notícia pude ler «Tradução do inglês / por Rui Wahnon». Ai, não!
Resta saber se rectificada pelo próprio que, é justo dizer-se, partilhou responsabilidades com o trabalho de revisão de um talvez adormecido Fernando Cunha Rebelo, ou dissecada por um revisor literário mais atento e conhecedor das falhas da tradução de 91. Se assim não for, pese embora a mudança de editora, trata-se de uma mera reimpressão em casa nova, que não acrescenta nada de positivo à obra traduzida, apenas perpetua o erro; ao invés da recomendável reedição de uma obra-prima da literatura americana traduzida com zelo e mestria que não faça desmerecer esse epíteto em português e que lhe foi merecidamente aposto pela versão original em língua inglesa.
Quanto a Underwold (1997)**, só me resta esperar, de preferência deitado em colchão ortopédico não vá o diabo tecê-las.

_____________________________
*Nota, obras lidas de DeLillo: Cão em Fuga (1978), Os Nomes (1982), Ruído Branco (1985), Libra (1988), Mao II (1991), O Corpo Enquanto Arte (2001), Cosmópolis (2003) e O Homem em Queda (2007).
**Nota, honras e prémios literários concedidos à obra Underworld: finalista vencido do National Book Award 1997 (perdeu para O Regresso do Soldado – Cold Mountain de Charles Frazier), do Pulitzer Prize for Fiction de 1998 (perdeu para o memorável Pastoral Americana de Philip Roth) e do concurso pontual, realizado em 2006, pelo The New York Times – Best Work of American Fiction of the Last 25 Years (perdeu para Beloved de Toni Morrison, autora galardoada com o Prémio Nobel da Literatura em 1993); venceu o American Book Award em 1988, o Jerusalem Prize (1999), o William Dean Howells Medal (2000) e o Riccardo Bacchelli International Award (2000).

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Pena


«A pena é uma emoção tão horrível e tão inútil – temos de reprimi-la e guardá-la para nós mesmos. Quando tentamos exprimi-la, só pioramos as coisas.»
Paul Auster, Invisível, p. 97.
[Alfragide: Asa, 1.ª edição, Outubro de 2009, 236 pp; tradução de José Vieira de Lima; obra original: Invisible, 2009.]

Aproxima-se o dia que cobriu de dor aqueles que mais quero, e quis a sorte que se colasse à data em que os católicos no seu masoquismo perene correm em bando, de cabeça baixa, pela alvenaria dos trilhos cortados entre campas, para recordar aqueles que, por maiores que sejam a recordações de felicidade e de profundo afecto, deixaram a dor de uma perda irreparável e os terríveis “ses” que se entalam na garganta e sufocam um grito, porventura, se exteriorizado, pouco abonatório da urbanidade das nossas vidas civilizadas.
Amanhã será o dia de tréguas. A suspensão de uma provável recidiva da discussão teológica familiar entre o que acredita que o fim é um valor absoluto, de saudade e dor – o já descrente que deixou, em definitivo, de acreditar –, e aquele cuja fé se reforçou porque não acredita num Deus cruel e injusto, num Decisor impiedoso que arrebatou para si alguém na flor da idade, que só o fez para acomodar a sua alma desamparada numa vida melhor.
Amanhã, serão sete os anos de ausência que ainda não consigo conceber como caridosa.
Não é pena, nem tão-pouco uma súplica por piedade. É uma revolta pela incompreensão de tão bárbaro destino para os que cá ficaram.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A pilha Murakami

Curiosas as metamorfoses diárias da minha biblioteca pessoal.
Não compro somente livros de um conjunto restrito de autores que me inebriam perante a minha sede de leitura – apesar de o “restrito” ser bastante amplo, há que dar novos mundos à minha biblioteca –, embora haja alguns que figuram na utópica listagem da “obra completa”; existem outros, porém, que, por variadíssimas razões, deixei de comprar e de ler, mesmo até à socapa numa livraria ou biblioteca pública sem despender o vil metal; há outros, ainda, recomendados por tudo e por nada, por todos e por ninguém – basta neste caso um vislumbre da capa, a leitura de uma sedutora frase de abertura –, que têm o poder de influenciar a minha alta propensão para o gasto livreiro.
A biblioteca vai mudando à causa, bibliófila e oneomaníaca, de comprar consideravelmente mais livros que o tempo disponível para os ler. Agiganta-se no espaço. Não é ela eterna e infinita?
No princípio, com Murakami, era o verbo no particípio “livro comprado, livro lido”; um passado que à sétima obra do autor publicada em Portugal mudou de forma silenciosa (Dança, Dança, Dança; ed. port. Casa das Letras): já não o li e sucedeu-se um empilhar de lombadas alvas com letras arrevesadas de vermelho e negro que desprestigia a carteira – que é um mimo de a ver farta –, e entulha a biblioteca, que se pretende qualitativamente irrepreensível, como objecto de ostentação puramente onanista – não tem de ser pública, nem figurar em local em que cada visitante solte um suspiro de admiração estonteado pela grandeza da coisa. É, por definição e teimosia, um prazer privado, não partilhável e jamais fungível como um subproduto do ócio.
Agora, anuncia-se uma autobiografia. Corridas de fundo e literatura. Esforço físico e musculação mental. Suor transformado em caracteres ideográficos, com jacto marcado para o mercado norte-americano que se encarrega de espalhar a epidemia dos universos oníricos murakamianos pelo mundo ocidental – realismo mágico da pubescência fechada em poços e quartos escuros, esperando por cataclismos de proporções bíblicas como recurso final a um Deus ex machina singular e absurdamente xintoísta.
Murakami corre. O nosso engenheiro-filósofo contemporâneo corre para aclarar as ideias que irão ser transubstanciadas em estratégias sobre o xadrez do casaco da Ministra do Trabalho, de apelido André. Cedo o passo, alivia-se o orçamento. A biblioteca continuará a transformar-se, seguindo por outros caminhos não trilhados pelas solas pneumáticas do andarilho jactancioso – a maiêutica em movimento (geração Magalhães). Talvez, num futuro próximo, os nossos trilhos se cruzem num ponto longínquo ideal que por agora não vislumbro.
Haja fé e saúde. A pilha, por enquanto, manterá a medida do seu peso. Nem mais um grama! (e mais um ponto de exclamação, admirem-se.)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Finalmente!

Quase doze anos após a publicação original do Volume I, e dez do Volume II, chega a Portugal a tradução de uma das mais irrepreensíveis biografias políticas de sempre, que por enquanto é considerada como o relato mais objectivo e inclemente, perante o colaboracionismo cego de um povo, das ascensão e queda de um dos maiores monstros de toda a História: Hitler – Uma Biografia (Publicações Dom Quixote).



Pela pena do par do reino Sir Ian Kershaw (n. 1943), eis a génese maléfica da húbris (1889-1936) e a sublimação da némesis (1936-1945) condensadas num só volume de 968 páginas.
Seguramente, um dos livros do ano, senão mesmo o acontecimento literário do ano em Portugal.

Nota I: (à atenção do Francisco e do Senhor Palomar) a excitação bibliómana jamais prescindiria de tão nobre sinal de pontuação no título, erecto ou aprumado como um fuso, inextricável da gramática portuguesa, como reflexo de um povo de excessos tanto no auto-elogio, como nas manifestações sobre o incontornável fado e de uma inusitadamente baixa auto-estima.

Nota II: resta, agora, a tradução para a nossa língua das obras magistrais sobre o outro lado da contenda, equivalente na monstruosidade: os livros de Robert Conquest (n. 1917) sobre Estaline, os gulags, o Terror Vermelho e as purgas.

domingo, 25 de outubro de 2009

A morte de um poeta

A 25 de Dezembro de 1956, Robert Walser foi encontrado morto nos campos que circundavam o sanatório de Herisau, na Suíça. Em 1929, retirou-se voluntariamente do mundo e da literatura como reacção à diagnosticada esquizofrenia e às sequelas que daí adviriam ostentadas num mundo sem compaixão, ou tempo a perder com indulgências, no seu afã de tentar, por caminhos ínvios e erróneos, ser feliz.
Quarenta e nove anos antes, Walser escrevia assim sobre o seu poeta “Sebastian”, o jovem idealista que se afastara de mundo rumo à natureza para compor poemas e de quem o mundo se compadecia, não só pela sua faceta burlesca, mas também pela sua evidenciada melancolia, como uma espécie de “indemnização para a negligência” deste perante tão jovem alma errante ao “propor-lhe tarefas que pudessem satisfazer a sua vontade de acção.” (pp. 53-54).
Palavras proféticas, de um dos mais consagrados “escritores do não”, como diria Vila-Matas (seguir o marcador “Robert Walser” neste blogue):

«Tão nobre a sepultura que ele escolheu para si mesmo. Jaz debaixo de magníficos pinheiros verdes cobertos de neve. Não vou avisar ninguém. A natureza vela pelos seus mortos, as estrelas cantam em voz baixa em torno da sua cabeça e os pássaros nocturnos grasnam, e é esta a música ideal para quem já não ouve nem sente. […] Que repouso grandioso este, jazer aqui imóvel debaixo dos ramos de pinheiros, na neve. É o melhor que podias ter feito. As pessoas tendem sempre a magoar excêntricos como tu e a rir-se do sofrimento. Transmite as minhas saudações aos mortos amáveis e silenciosos que estão debaixo da terra e não ardas por muito tempo nas chamas eternas da inexistência.»
Robert Walser, Os Irmãos Tanner, pp. 86-87.
[Lisboa: Relógio D’Água, Setembro de 2009, 233 pp; tradução de Isabel Castro Silva; obra original: Geschwister Tanner, 1907.]

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Sai um Pinholino, mas com mais Lino, por favor

Talvez tenha passado despercebido, até pela incomensuravelmente alta propensão marginal para a asnidade do (tomara) pretérito Ministro das Obras Públicas, de seu nome Mário Lino.
Lino foi um inspirador para os filólogos no enriquecimento da língua, graças às suas desembestadas profissões de fé que o próprio, de imediato, tentava colocar em prática no seu estilo picaresco, à verbosidade e à assincronia profunda entre pensamentos, palavras – que oprimiam os primeiros até ao grau mínimo –, e acções – felizmente, travadas a tempo, pelo próprio quando chamado à razão mínima, ou por interferência de outros contando-lhe uma anedota derrogatória. Com ele ganhou o português, não o cidadão, desiludam-se, mas a língua falada por centenas de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo ao introduzir-se o nome “linismo” e todos a morfologia conexa.
Aliás, a acção concertada entre o referido ministro e o seu companheiro de Governo com a pasta da Economia criou o famoso mutante, de proporções quase bíblicas – acredita-se mesmo que o esqueleto de Mary Shelley finalmente se pulverizou na tumba, tantas foram a contorções orbiculares de inveja pela pequenez espiritual do seu Frankenstein –, mais conhecido por Pinholino, cujos efeitos em forma de mito sobre a população são, por ora, desconhecidos: Irá ser um monstro bonacheirão, a quem se alude para uma boa piada social? Ou um terrível e assustador mostrengo que assombrará as mentes mais vulneráveis, especialmente as de crianças de tenra idade, a razão de ser das noites negras e tempestuosas a cada passo rasgadas por um clarão fantasmagórico, seguido de um trovão arrasador?
Não sabemos. O tempo encarregar-se-á de o demonstrar.
“Come a sopa toda senão eu chamo o Pinholino.” “Não entres tão depressa nessa noite escura (versão de omnipresença megalómana ou de ALA) que o Pinholino vai-te papar.” “Fumar pinholiniza.” “30 condutores detidos numa operação stop realizada sexta-feira passada na A-28, conduziam sob vestígios do efeito de pinholinol.” E por aí fora.
Mas o que me trouxe a estas linhas – não férreas, porque dessas o Lino encarregou-se, com um afinco inusitado, de as desalinhar de vez, neste pobre pais centralista – foi o esmiuçamento de sexta-feira passada sobre – e porque não, como fazem os Gato a si mesmos, epitetar o ministro, ainda que, a adjectivar, jamé com variações vocabulares de engrandecimento, senão com um qualificativo que revele uma certa irreflexão comportamental – o truão acidental Lino. A dada altura, RAP confronta-o com os mimos que António Costa deu de regalo ao desafortunado ministro, quando aquele passou a gerir os destinos do município lisboeta. Numa alegoria, talvez pinholínica, de “panos e nódoas”, Lino diz:
«Aliás, foi um grande político contemporâneo português, o engenheiro José Sócrates que… e parafraseando uma frase dele, que está para nascer o Ministro das Obras Públicas que tenha feito mais pelo concelho de Lisboa do que eu – quem diz por Lisboa, posso dizer o mesmo pelo Porto e pelos muitos outros no país…»
Claro, claro, eu bem sei o que fizeste pelo resto do país, vivendo eu na sub-região à volta do umbigo alfacinha.
Vai daí e desfia, sem qualquer tipo de pudor, o rosário das benesses centralistas:
«(…)acabámos a CRIL, o eixo Norte/Sul, o túnel do Rossio, o túnel do Mmm… [aqui ia-se apropriando de obra alheia] do Terreiro do Paço, o Cais das Colunas, o Metro entre o Chiado e Santa Apolónia, passámos para a gestão da Câmara Municipal as áreas das zonas portuárias que não tinha utilização portuária… enfim, milhentas coisas que foram feitas.»
Quantos milhões dos nossos impostos, de A Região e da sub-região? Dá vontade de procurar os custos com derrapagens abissais perante o orçamentado, fazer a soma e mostrar em letra gorda ao país todo. E ainda falta somar o que aí vem: a 3.ª travessia sobre o Tejo; o TGV Lisboa/Madrid para meia dúzia de felizardos que se podem dar ao luxo de perder um dia de viagem para a Capital espanhola e pagar um quantia avultada de bilhete, enquanto se vão multiplicando as companhias de aviação low-cost; o aeroporto de Alcochete; e não sei quantas mais linhas de metro.
E termina (como começou) com um auto-elogio, embora o primeiro tenha pretendido ser uma ironia:
«Fui um grande… e, enfim, esmerei-me e… e dei tudo o que pude para contribuir para a sua vitória – foi muito boa – acho que Lisboa tem hoje um grande Presidente da Câmara, e estou convicto que ele vai ser… vai fazer um excelente mandato durante os próximos quatro anos.»

Pobre Elisa. Pobre Apolinário. E todos os outros candidatos a autarca do partido da rosa.

Nota: entre aspas francesas figura a transcrição textual (melhor, de ouvido) de parte da entrevista dada por Mário Lino a Ricardo Araújo Pereira no passado dia 16, no programa Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios, da SIC. Por qualquer erro sintáctico ou gramatical, o Ministério das Obras Públicas pede perdão, compensando com a construção de uma rotunda em sítio a combinar.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Vera Lynn

«Does anybody here remember Vera Lynn?
Remember how she said that
We would meet again
Some sunny day?
Vera! Vera!
What has become of you?
Does anybody else here
Feel the way I do?»
Pink Floyd, “Vera”, do álbum The Wall (1979)
Estes são os inesquecíveis oito versos de Roger Waters incluídos num dos inúmeros momentos altos do álbum The Wall (1979) dos Pink Floyd e do filme epónimo de Alan Parker, que precede o famosíssimo grito antiguerra “Bring the Boys Back Home” (don’t leave the children on their own, no, no) numa retumbante e antinómica marcha marcial. Waters perdeu o pai na II Guerra Mundial, tal como Pink – interpretado por Bob Geldof – o protagonista do filme de Parker de 1982.
O terceiro verso menciona a famosa canção de 1939 “We'll Meet Again” imortalizada por Vera Lynn. Estávamos no dealbar da II Grande Guerra, e a canção de Lynn serviu, durante seis anos de horror e morticínio, como um hino de campanha para as forças armadas britânicas além-mar.

Eis Vera Lynn (hoje, com 92 anos) com “We'll Meet Again”, de regresso aos tops musicais pela efeméride que marcou os 70 anos da invasão da Polónia por Hitler (1 de Setembro de 1939):




PS – recordação pinkfloydiana – com apenas 11 anos já dispunha toda a sua discografia em vinil – induzida por este excelente texto do Pedro Correia no Delito de Opinião.

sábado, 17 de outubro de 2009

João Tordo, com todo o mérito

É oficial, João Tordo é o vencedor do Prémio Literário José Saramago (de periodicidade bienal) de 2009 (que, segundo o blogue da revista Ler, passará a anual a partir deste ano, com a atribuição seguinte a ocorrer já em 2010) pelo seu magnífico romance As Três Vidas, publicado em 2008 pela editora matosinhense QuidNovi – a talho de foice, refira-se que é a segunda vez (e consecutiva) que o prémio galardoa uma obra publicada por esta editora.
Fiquei duplamente satisfeito com a notícia. No que respeita ao primeiro motivo poder-me-ão apontar alguma vacuidade (como se me importasse), pela vaidade, porquanto assenta no orgulho da confirmação de um dos meus livros preferidos editados em 2008, que mereceu neste mesmo espaço a minha apreciação, em jeito de recensão: fôlego, dizia eu.
Em segundo lugar, e apesar de não conhecer pessoalmente o João Tordo, esta realidade alternativa a que convencionámos chamar de blogosfera, teve o condão de me fazer aproximar do João através da palavra impressa em hipertexto. Embora, muitos desses encontros se hajam declarado em encarniçados recontros clubísticos. O João tem o terrível defeito de amar o vermelho das papoilas saltitantes – para saúde dele, espero que expurgadas do leite modorrento que lhes corre pelos veios, meio metafórico pelo uso deliberado da mentira sobre o povo, segundo os íntegros e translúcidos dirigentes soviéticos de 1917 até 1989 –, por aqui, como é sabido, a chama do dragão continua a manter intacto um horizonte de esperança sob a óptica do vencedor.

Parabéns, João.

Para os mais preguiçosos na activação da ligação supracitada, aqui fica um excerto do que escrevi, há quase um ano, a propósito da leitura de As Três Vidas, um panegírico envolvendo Borges e Kafka (João em boa companhia):
«As Três Vidas, o último romance de João Tordo, tem, de certa forma, matizes kafkianos na estrita medida do qualificativo definido por Borges, implicando, para isso, que da leitura da obra se tivesse verificado o uso (mais ou menos consciente) das seguintes premissas: a subordinação e o infinito – que Borges afirmava serem obsessões do jovem Kafka, e que, de certa forma, influenciarão, definitivamente, a sua extensa obra, plena de circularidades e perpetuidades.»
Lista dos vencedores do Prémio Literário José Saramago desde a sua fundação:
2007 – valter hugo mãeO remorso de Baltasar Serapião (QuidNovi)
2005 – Gonçalo M. TavaresJerusalém (Caminho)
2003 – Adriana LisboaSinfonia em Branco (Temas e Debates)
2001 – José Luís PeixotoNenhum Olhar (Temas e Debates)
1999 – Paulo José MirandaNatureza Morta (Cotovia)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Erosão Conjugal

«Ocorre a Harry que a sua mulher é um canal [de televisão] que não se pode mudar. A mesma testa um pouco alta de mais, a mesma fresta lisa e tola entre os lábios, dia após dia, a todas as horas, na mesma emissora.»
John Updike, Coelho em Paz, p. 180
[Porto: Civilização, Setembro de 2009, 539 pp; tradução de Carmo Romão; obra original: Rabbit at Rest, 1990]

Reinventar, é a chave. Há aqueles que compram um ecrã de cristais líquidos para testar o brilho que se perdeu por anos de monotonia. Alguns, aproveitando as liberdades que, apesar de tudo, outros vão conquistando por nós, apostam no contraste e agarram no plasma que se cristalizou na juventude dentro do armário, e partem à descoberta. Outros ainda, talvez mais sórdidos e não menos comodistas, cedem ao fastio e abrem os cordões à bolsa para uma subscrição extra de acrobacias em tecnicolor. Há ainda quem lhe custe abandonar o arrepio da descarga eléctrica do tubo catódico, munido para isso de uma auto-indulgência não pressentida, escreva em blogues, exercitando o músculo da sua caudalosidade desde há muito definhado, encapsulado. Faz um zapping. Tens de mudar de vida! [Rilke]

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Unbound

Quando no texto anterior referi, entrelinhas, o mito de Prometeu Agrilhoado, tragédia grega escrita por Ésquilo, fazendo um pequeno exercício contranarrativo através da inversão dos beneficiários do roubo do fogo por Prometeu à omnipotência divina, não pude deixar de me recordar de mais um dos inúmeros trechos alegóricos genialmente concebidos por David Simon, na sua estrondosa série The Wire (A Escuta). Trata-se do sétimo episódio da última temporada (a quinta), intitulado “Took”, que foi escrito por Simon em co-autoria com o excelente romancista e argumentista nova-iorquino Richard Price – infelizmente, quase desconhecido em Portugal, com apenas um romance publicado, Terra da Liberdade (ed. Bertrand, 2000; Freedomland, 1998), adaptado pelo próprio autor para o cinema num filme de 2006 realizado pelo sofrível Joe Roth.
Nesse episódio, “Clay Davis” (magistralmente interpretado pelo actor Isiah Whitlock Jr.), o corrupto senador estadual, famoso pela sua hilariante e ressonante interjeição, com a voz esganiçada de indignação, “shiiiiiiit”, é finalmente convocado para comparecer em tribunal perante o Grande Júri, depois da obtenção de escutas concludentes que comprometem a polícia, autarcas e demais políticos, construtores e especuladores imobiliários, advogados, magistrados e traficantes de droga.
Finalmente, a espada da justiça actuará. O espectador sente-se alentado e em suspenso, embora esteja consciente de que a arte imita a vida – dura, iníqua e cruel – e que Simon, apesar de ter nascido em Washington, conhece como ninguém a mundividência da violenta Baltimore – terra de Poe e de “Hannibal Lecter” de Thomas Harris –, porquanto foi jornalista do Baltimore Sun por mais de uma década.
Os personagens de The Wire baseiam-se em algumas figuras públicas reais da mais importante cidade do Estado de Maryland. Não é novidade. Para quem acompanhou a memorável série desde o seu primeiro instante não pode (ou não deveria) esperar por um desfecho à laia de ode ao triunfo da justiça, basta para isso estar a par dos acontecimentos recentes político-judiciais que ocorrem na cidade de Baltimore, onde sobre a actual presidente da câmara – a jovem afro-americana Sheila Dixon – impendem acusações de corrupção e de outros crimes de colarinho branco – talvez seja a “Nerese Campbell” de Simon, quando “Carcetti” deixa o município e, finalmente, conquista o apetecido gabinete de Anápolis…
A cena que descrevo a seguir, dura pouco mais de meio minuto. Como referi, Clay Davis é finalmente chamado a comparecer como acusado em tribunal, obviamente patrocinado por um engenhoso advogado que conhece bem os meandros do sistema judicial e as pequenas grandes técnicas de manipulação da opinião pública através dos média:

 
«[Nas escadas exteriores do Tribunal de Baltimore, Clayton Davis, o senador estadual do Maryland, acusado pelo procurador de crimes de corrupção, empunhando (com um fim em vista) um livro, acede em falar aos jornalistas que o cercam antes de entrar para a sessão de julgamento.]
JORNALISTA: O que é que anda a ler, Senador?
SEN. “CLAY” DAVIS: Isto aqui? Promethes Bound*. Uma peça de teatro antiga, uma das mais antigas de que dispomos. É sobre um homem simples que foi medonhamente castigado pelos poderosos, pelo terrível crime de tentar trazer a luz às pessoas comuns. Nas palavras de Ascyllius**, “Nenhuma boa acção ficará impune.” Nem vos consigo transmitir o conforto que tenho encontrado nestas parcas páginas.» [Descrição e tradução: AMC, 2009]
Notas: *refere-se à tragédia grega, de autoria de Ésquilo, Prometheus BoundPrometeu Agrilhoado –, embora Davis, na sua ignorância, pronuncie o nome do personagem daquela forma truncanda, como Pro-me-thes [grafia e pronúncia correctas: Pro-me-the-us; sílaba tónica: antepenúltima].
**refere-se comicamente a Ésquilo como Ascyllius [A-silly-us], sendo a sua forma correcta Aeschylus [Aes-chy-lus, foneticamente (aproximando ao português) és-cã-lâzz, tónica na antepenúltima sílaba].
Uma sensação de déjà-vu. Inversão e subversão. Objecto e significado. Justiça desagrilhoada à sua semântica. Crime sem punição. Impunidade.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A obra-prima inédita perante o editor: propensão para a asnidade

Qual de nós não leu, ou pelo menos ouviu contar, pequenas histórias sobre a recusa de publicação de numerosas obras literárias que, hoje em dia, após a superação da resistência editorial, algumas vezes obscura, porém na sua maioria por pura asnidade, se transformaram em objecto de referência (e de reverência) por uma comunidade de eruditos, fazedores de cânones?
E mais curiosas se tornam essas histórias quando as vítimas são hoje autores consagrados, vistos, também pelo público, como parte integrante e fundamental, por direito próprio, da História da literatura, pela ruptura que primordialmente na arte se manifesta através da criatividade e da inovação: um novo estilo, uma nova técnica narrativa, por exemplo.

Eis algumas sentenças de alguns prestimosos editores, ao longo dos tempos*:
  • Marcel Proust (1.º relatório de leitura de Em Busca do Tempo Perdido): «Sou talvez um pouco limitado, mas não consigo compreender a necessidade de consagrar trinta páginas para narrar como alguém se volta e torna a voltar na cama sem conseguir dormir.»
  • Herman Melville (Moby Dick): «É pouco provável que uma tal obra possa interessar a um público jovem.»
  • Gustave Flaubert (Madame Bovary): «Caro Senhor, o seu romance submerge sob um mar de detalhes bem desenhados, mas inteiramente supérfluos.»
  • Emily Dickinson (e a sua obra poética inicial): «As suas rimas estão todas erradas.»
  • Colette (Claudine à l’École): «Receio não vender mais que dez exemplares.»
  • George Orwell (A Quinta dos Animais): «É impossível vender uma história de animais nos Estados Unidos.»
  • Anne Frank (e o seu famoso Diário): «Esta rapariguinha não parece fazer menor ideia de que o seu livro não pode ser senão um objecto de curiosidade.»
*Citações recordadas por Umberto Eco, parte integrante do magnífico livro dialógico, recentemente publicado em Portugal: Umberto Eco & Jean-Claude Carrière, A Obsessão do Fogo, pp. 187-188 [Lisboa: Difel, Julho de 2009, 305 pp; tadução de Joana Chaves; título original: N’espérez pas vous débarrasser des livres, 2009]

Se rejeitar uma primeira obra de alguém que se desconhece, cuja desafortunada vida nem sequer lhe possibilitou um encontro casual numa tasca da moda para comer umas moelas regadas com o tinto carrascão da casa, pode ser considerado como azar manifesto ou fazendo parte das vicissitudes da vida, plena de encontros e desencontros; já não se entende a não recusa de publicação de obras miseráveis que enxameiam a estantes das nossas criteriosas livrarias, escritas pelos tais consagrados. Neste último caso, há aqueles seres de coração abarrotado de candura – santo escreve-se com as mesmas letras de tanso – que se referem ao fenómeno cientificamente comprovado da auto-regulação como meio de triagem – agora, esses crédulos até podem encontrar respaldo na teoria económica com a inusitada atribuição do Nobel da Economia a Elinor Ostrom e as suas lagostas vermelhas (por mera morfologia e não militância). Há autores que afirmam ter as suas secretárias repletas de obras impublicáveis. Outros há, contudo, que qualquer composição gráfica de caracteres saída da sua pena, comandada pela soberba de um cérebro onanista – cuidado com a divina e vil cegueira! –, empanturram as editoras com as suas baboseiras literárias. Eles estão aí, à vista de qualquer olho bibliómano mais atento. E as suas excreções literárias são esperadas com avidez pelos habituais críticos que assinam as suas recensões, possivelmente encharcados de psicotrópicos, adjectivando profusamente uma baboseira livresca, de preferência com sinónimos tonitruantes e truísmos a apelar à devolução imediata e sem piedade do dinheiro despendido na aquisição da denominada revista literária (ou suplemento de jornal). Desenganem-se aqueles que julgam que a tal modorra de sempre dizer bem nas revistas da especialidade de uma obra que não se leu, cujo nome do obreiro é por demais conhecido, resulta do efeito hipnótico de um princípio activo farmacológico como, por exemplo, do potente e eficaz zolpidem. A paralisia é bem mais grave, é acediosa pelo amiguismo e pela cúmplice troca de favores; amabilidades que se propagam em cadeia e que num ápice regressam de forma silente ao emissor, nesse momento já agrilhoado e com o fígado exposto às bicadas dos pássaros, em que o móbil, desta feita, se traduz pela chama roubada aos que verdadeiramente a mereciam, para que os privilegiados, que têm medo do escuro, pelo menos se aqueçam pela refracção da luz na campânula ionizada que os protege na torre de marfim. Flagelo. Martírio. É bem feito.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Invisível

É já no próximo dia 27 que a Asa publicará em estreia mundial, numa operação inédita em Portugal com uma obra do autor em causa, a tradução para a nossa língua do último romance de Paul Auster, Invisível (Invisible, no seu título original), com tradução garantida, e por mim aplaudida, porquanto é sinónimo de qualidade, por José Vieira de Lima.

Na abertura temos Auster e a alusão a uma das suas obras de eleição da sua juventude: a referência alegórica ao oitavo círculo do Inferno de Dante que se divide em dez fossos (Malebolge ou bolsas circulares), em concreto ao nono fosso, dedicado aos “semeadores de escândalo e de cisma”.
O primeiro parágrafo reza assim (tradução minha, que de hoje a quinze dias será distintamente derrogada pela do tradutor oficial):

«Apertei-lhe a mão pela primeira vez na Primavera de 1967. Eu era, então, estudante do segundo ano em Columbia, um rapaz ignorante com um tal apetite por livros e com a crença (ou ilusão) de que um dia seria suficientemente bom para me intitular como um poeta, e porque lia poesia, eu já conhecia o seu homónimo no Inferno de Dante, um homem morto vagueando pelos versos finais do vigésimo oitavo canto do Inferno. Bertrand de Born, o poeta da Provença do século XII, agarrando a sua cabeça decapitada pelos cabelos enquanto esta vai oscilando como uma lanterna – seguramente, uma das imagens mais grotescas naquele catálogo volumoso de alucinações e tormentos. Dante era um defensor acérrimo da obra de de Born, mas condenou-o à danação eterna por este ter aconselhado o príncipe Henrique a rebelar-se contra o seu pai, o rei Henrique II, e uma vez que de Born promoveu a divisão entre pai e filho, tornando-os inimigos, o engenhoso castigo de Dante foi o de dividir de Born dele mesmo. Daí o corpo decapitado lastimando-se no submundo, perguntando ao viajante florentino se algum sofrimento poderia ser mais terrível que este.»
Paul Auster, Invisible, pp. 3-4.
[a partir da edição, New York: Henry Holt, 1st edition, 2009, 320 pp; tradução: AMC, 2009]
Mas, para que não se perca a cabeça, eis Virgílio e Dante no seu encontro com martirizado, ao decepamento, Bertrand (ao lado, figura a famosa ilustração de Gustave Doré):

«Mas eu fiquei a olhar a fila e vou
contar o visto, e em pavor perdura,
sem ter mais prova, o descrevê-lo só;
senão que a consciência me assegura,
pois boa companhia nos proteja
sob a couraça de sentir-se pura.
Decerto vi, e creio inda que veja
um busto sem cabeça a andar assim
como da triste creche o resto adeja;
a fronte da guedelha pende ao fim
duma das mãos à guisa de lanterna
e olhando para nós diz: «Ai de mim!»
De si ia fazendo a si lucerna,
e eram dois num e um era nos dois:
como ser pode, o sabe quem governa.
Ao pé da ponte erguendo-se depois,
alto levanta o braço com a testa,
pondo as palavras perto de nós, pois
que foram: “Ora vê pena molesta,
tu que respiras e vais vendo os mortos:
vê se alguma é tão grande como esta.
E por que leves novas dos meus tortos
feitos, sabe que sou Bertrand de Born,
que ao rei jovem prestou os maus confortos.
Eu fiz que filho e pai revel se torne:
Aquitófel não faz mais, que Absalão
e o pai David com más punções adorne.
Pois separei pessoas que eram tão
juntas, oh dor!, o cérebro deslaço
de seu princípio que é neste troncão.
Assim se observa em mim o contrapasso.”»
Dante Alighieri, A Divina Comédia: Inferno, Canto XXVIII, vv. 112-142, pp. 257-259
[Venda Nova: Bertrand, 5.ª edição, Dezembro de 2000, 894 pp; tradução de Vasco Graça Moura; obra original: (Divina) Commedia, 1304-1321.]


Nota: Aproveitando a maré dantesca, há uma nota final inquietante num texto de Casanova brandindo o seu canhão literário (por vezes perde-se, na selva alegórica, um “n” ânglico para as coisas fazerem sentido) sempre pronto a disparar fazendo mira ao mais firme divergente – sem que, necessariamente, houvesse ocorrido um cisma... fundamento para corpo mutilado – com as suas alegações peremptórias em assuntos livrescos (porventura um imagem poética que ganha força pela hipérbole):


Pois parece que, de bom aviso, é necessário trazer de novo Dante à colação e o segundo vale (o da tal selva), descrito, por azar, no canto XIII, do sétimo círculo do Inferno, onde os corpos caídos são transformados em árvores espinhosas sem fruto, cravados em terra firme, desnudados perante a fúria rapace das harpias:

«Surge uma ervinha e planta brava resta:
e as Harpias lhe pastam toda a folha,
fazem-lhe dor e à dor dão uma fresta.
Iremos, como os mais, pela recolha
dos despojos, mas não para vesti-los;
que não é justo ter o que se tolha.
Na triste selva vamos destruí-los
e hão-de ficar-nos corpos pendurados,
co as más sombras, nas sarças a cobri-los.»
Dante Alighieri, op. cit., Canto XIII, vv. 100-108, p. 133.

Finalmente, o que diz o Papa – segundo a frase criptográfica de Dan Brown (“a knight a pope interred”):

«Some to conceit alone their taste confine,
And glittering thoughts struck out at every line;
Pleased with a work where nothing’s just or fit;
One glaring chaos and wild heap of wit. […]»
Alexander Pope, An Essay on Criticism (pub. 1711), vv. 289-292, p.15
[Charleston, SC: Forgotten Books, 2008, 37 pp.]

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Finalmente em descanso

Termina em Portugal a “tetralogia do Coelho” com a publicação do seu último livro. John Updike (1932-2009, morreu a 27 de Janeiro) –, o “colosso” como há pouco tempo o definiu Philip Roth referindo-se ao espanto que sempre lhe provocou Updike não haver recebido o Prémio Nobel –, publicou em 1990 o último livro da tetralogia, sob o título original de Rabbit at Rest. Com ele venceu o Pulitzer em 1991 e o National Book Critics Circle Award em 1990. Em 2001, publica uma novela, “Rabbit Remembered”, inserida na sua colectânea de contos Licks of Love, uma pequena sequela que narra, sem a presença do personagem epónimo Harry “Rabbit” Angstrom, as vidas de alguns personagens que integraram a tetralogia e cujos destinos foram, de certa modo, forjados pelo personagem agora desaparecido, vogando como um espectro de destruição. Pede-se a sua publicação.

Frase de abertura:
«De pé no meio do bronzeado e exaltado gentio pós-natalício do Aeroporto Regional do Sudoeste da Florida, Coelho Angstrom tem a repentina e curiosa sensação de que aquilo com que se foi encontrar, o que flutua no invisível prestes a aterrar, não é o seu filho, Nelson, a nora, Pru, e os dois filhos destes, mas sim uma coisa mais agoirenta e intimamente sua: a sua própria morte, com a silhueta imprecisa de um avião.»
John Updike, Coelho em Paz, p. 9
[Porto: Civilização, Setembro de 2009, 539 pp; tradução de Carmo Romão; obra original: Rabbit at Rest, 1990]

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Prémio Nobel da Paz 2009 (act. – “desvarios asininos”)

Este prémio fica-lhe tão bem...



Barack Hussein Obama
(Honolulu, Havai, 4 de Agosto de 1961)

Nota: ver esta minha curta, mas significativa, manifestação de vontade a 3 de Novembro de 2008. Para mais informações, consultar a página oficial do Prémio Nobel da Paz deste ano ou a notícia aqui publicada em português (com vídeo).


(...)
O! thus be it ever, when freemen shall stand
Between their loved home and the war's desolation!
Blest with victory and peace, may the heav'n rescued land
Praise the Power that hath made and preserved us a nation.
Then conquer we must, when our cause it is just,
And this be our motto: 'In God is our trust.'
And the star-spangled banner in triumph shall wave
O'er the land of the free and the home of the brave

[actualização] Numa coisa Sócrates tem razão, e foi por diversas vezes referida nos debates quinzenais na Assembleia da República, o sectarismo primário (passe o pleonasmo) dos agentes políticos da esquerda portuguesa mina, à partida, ou inviabiliza, por cautela, qualquer tipo de transferência (por integração ou por cessão) de parte da responsabilidade governativa para os partidos que representam, na tentativa de prossecução de uma política global equilibrada e coerente na condução dos destinos do país.
Se mais palavras faltassem – e suponho que a sua intensidade no parágrafo anterior não peca por escassez –, complementá-las-ia com as declarações hoje proferidas pelo secretário-geral dos PCP e do coordenador do Bloco de Esquerda – e neste último caso sempre achei curiosa esta denominação eufemística para o chefe supremo, por quem vitupera aqueles que designam os seus “trabalhadores” como “colaboradores” – a propósito da atribuição do Prémio Nobel da Paz ao presidente Barack Obama. E o que se me afigura de mais grave em ambas as declarações, não se prende com a useira demagogia de pendor esquerdista (também a há a rodos na direita), nem tão-pouco com uma repentina soberba pela derrogação do vituperado “politicamente correcto”, mas com a ostensiva pobreza de espírito revelada até à náusea, bem demonstrativa da pequenez de políticos que, ao arrepio do que acontece em qualquer país dito civilizado, obtiveram em conjunto 1.005.056 de votos (cerca de 17,7% sobre o total de votantes) e 31 mandatos na A.R. nas eleições legislativas de 27 de Setembro último. Jerónimo – que vê uma espécie de democracia em países como a Coreia do Norte, Cuba ou até a Venezuela – e Louçã – o nacionalizador verde eufémia – alinharam as suas vozes com gente bem reputada no panorama político internacional: Hugo Chávez, Zabihullah Mujahid (porta-voz dos talibãs afegãos), ou os moderados dirigentes do Hamas.
De todo o mundo surgiram vozes de exultação. Para além das manifestações de regozijo dos tradicionais aliados ocidentais ou ocidentalizados (tanto de esquerda, como de direita), houve, para citar alguns exemplos, demonstrações de clara satisfação de Nelson Mandela, Mikhail Gorbachov, Muhammad Yunus ou de Wangari Maathai (activista política queniana).

Já bem perguntava o outro, o pai inspirador destes desvarios asininos: Que Fazer?

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Nobel da Literatura 2009


Herta Müller
(Niţchidorf, Roménia em 17 de Agosto de 1953 – actualmente, cidadã alemã)
«…quem, com a consistência da sua poesia e a franqueza da sua prosa, retrata o panorama dos desapossados.» palavras das Academia Sueca [tradução: AMC]
Müller foi uma das mais activas vozes na literatura mundial que combateu feroz e frontalmente o regime despótico e torcionário do líder comunista da Roménia (entre 1967 e 1989) Nicolae Ceausescu e a sua impiedosa guarda pretoriana, a Securitate. Fugiu para Alemanha Federal em 1987. Actualmente, vive em Berlim.

Por enquanto, a autora alemã dispõe de 2 obras publicadas em Portugal (por ordem cronológica): O homem é um grande faisão sobre a terra (Cotovia, 1993; obra original: Der Mensch ist ein grosser Fasan auf der Welt, 1986); e A terra das ameixas verdes (Difel, 1999; obra original: Herztier, 1994).

Nota: para mais informações consultar a página oficial do Prémio Nobel da Literatura e, entre outros, este artigo do jornal Público.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Dia 8 – Nobel da Literatura 2009 (act.)


É já amanhã ao meio-dia (hora de Lisboa) que o emproado secretário permanente da Academia Sueca, Horace Engdahl (ao lado na imagem, com o seu habitual fácies efusivo, homem irradiador do mais aconchegante calor humano), anunciará, no seu inglês arrevesado, o vencedor do Prémio Nobel da Literatura de 2009.

Segundo a listagem deste ano da casa de apostas britânica Ladbrokes, o autor israelita Amos Oz lidera a lista dos prováveis laureados, lista que inclui nas dez primeiras posições quatro escritores que “não participam no diálogo da literatura mundial”, sinónimo de “norte-americanos” ou de “estado-unidenses”:

1.º) Amos Oz (Israel) - 3/1
2.º) Joyce Carol Oates, (EUA), e Philip Roth (EUA) - 5/1
4.º) Herta Müller (Alemanha) - 6/1
5.º) Thomas Pynchon (EUA) - 7/1
6.º) Haruki Murakami (Japão), e Mario Vargas Llosa (Peru) - 9/1
8.º) Claudio Magris (Itália), Don DeLillo (EUA) e Thomas Tranströmer (Suécia) - 12/1

De notar que António Lobo Antunes figura na lista deste ano, com uma probabilidade de 100/1 – fazendo companhia a nomes como Cormac McCarthy, David Malouf, McEwan, Banville, Littell, Julian Barnes, Tournier, Modiano e Auster. Se o homem ganha, ninguém o cala…
Pessoalmente, gostaria que daquela lista de dez nomes saísse DeLillo como vencedor, não me desagradando, no entanto, que o prémio fosse atribuído a Vargas Llosa (se mais faltasse, irritar García Márquez deixar-me-ia à beira da felicidade) ou então, a Roth ou a PynchonUpdike já era; Auster tem de consolidar a sua obra e apesar de não ser um bestseller, tem um conjunto de fãs incondicionais, e era o que faltava ceder a lobbies de putativos literatos pós-modernistas; Kundera também não deve participar no diálogo da literatura mundial (é um dissidente do comunismo…); com Rushdie há o medo dos árabes; Eco escreveu romances históricos, apesar de serem brilhantes, talvez ofusquem a sua notável obra ensaística; McEwan e Barnes sofrem do mal (acima identificado) de Auster, mas vencendo poderiam servir como uma vingança esquerdista (moderada) às posições assumidas por Martin Amis que, de uma vez por todas, desapareceu das listas de favoritos.

Prognósticos (face à tendência Grass, Pinter, Lessing, Fo, Gordimer, Saramago, Coetzee):
  • Ernesto Cardenal, John Berger (não incluído na lista), Tabucchi ou Handke (apesar de brilhante, esse grande democrata miloseviquiano);
  • Joyce Carol Oates, para fugir à questão política, dar o braço a torcer à melhor literatura do mundo (a norte-americana), embora dissimulado por um activismo feminista ou pela “condição das mulheres” (frase que integrará a curta descrição justificativa na atribuição do prémio).

A ver vamos.

[rectificação] *O supracitado Horace Engdahl (ocupante da 17.ª cadeira da Academia Sueca desde 1997) deixou, felizmente, de desempenhar o cargo de Secretário Permanente da Academia Sueca no final do mês de Maio deste ano. Engdahl foi substituído pelo historiador e ensaísta Peter Englund (ocupante da 10.ª cadeira da Academia Sueca desde 2002), o que pode dar um sinal de abertura à literatura norte-americana, que já não é galardoada com o Nobel desde 1993, quando o prémio foi atribuído a Toni Morrison. Assim, os prognósticos aqui postados foram efectuados na presunção de Engdahl ainda como Secretário Permanente, que, em abono da verdade, na questão primordial da atribuição do prémio apenas contribuía com 1/17 dos votos (a Academia Sueca é originariamente composta por 18 membros – 18 cadeiras – mas, neste momento, a cadeira n.º 1 está vaga), logo a política seguida até Junho de 2009 poder-se-á manter. [Tomei conhecimento da substituição de Engdahl por Englund no blogue Bibliotecário de Babel.]

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Booker Prize 2009 [última hora]

O vencedor do Man Booker Prize de 2009 é:



Ao fim de três horas de deliberação, o júri – este ano presidido pelo jornalista e ensaísta James Naughtie – atribuiu o mais prestigiado galardão a premiar um livro de ficção em prosa escrito originalmente em inglês no Reino Unido, Commonwealth e Irlanda a Hilary Mantel, escritora inglesa (n. 1952), pelo seu romance Wolf Hall.
Mantel já havia sido uma dos 17 semifinalistas do mesmo prémio em 2005 – um dos melhores anos de sempre do Booker, com 6 finalistas de peso – com o seu romance Beyond Black.
Apesar de já haver publicado mais de uma dúzia de obras literárias, Mantel nunca viu um livro seu publicado em Portugal*.

* A não publicação de qualquer livro desta escritora em Portugal dever-se-á, decerto, a um qualquer veto ostensivo e oculto de Cavaco Silva, talvez travestido num cismático Henrique VIII, auxiliado pelo seu Cromwell, Fernando Lima, a necessitar de interpretação mais do que urgente (isto é, paga a peso de ouro) por Bettencourt Resendes, o equidistante Pedro Adão e Silva, Clara "Loira" Ferreira "Marquise" Alves, Teresa de Sousa, o isentíssimo e preclaro Daniel Oliveira, o erudito Luís Pedro Nunes, o não-sectário Emídio Rangel, o inefável Ferreira Fernandes, os sublevados Carlos Abreu Amorim e Pedro Marques Lopes, e os opinadores do independentíssimo Diário de Notícias (com o, hino antropomorfizado à deontologia profissional, Marcelino "the off the record man" à cabeça). Vedando-se, como é óbvio, todo e qualquer comentário ou mínima opinião, nem que seja fundada em 3 vocábulos apenas, aos fundamentalistas e diabólicos – agentes do império do mal – Nuno Rogeiro, Francisco José Viegas, Maria João Avillez, João Pereira Coutinho, Pedro Lomba e sinistras (esqueçam o italiano) figuras afins, porque não conseguem (deliberadamente) captar os nefastíssimos miasmas de pobreza (boliqueimenses, são palavras sinónimas para o 1.º grupo) de um gasolineiro que singrou na vida e que se tornou, para além de um dos mais reputados professores catedráticos de Finanças Públicas – a par de figuras como Sousa Franco e Teixeira dos Santos –, com obra científica publicada e certificada, em Ministro das Finanças, Primeiro-Ministro (1985-1995) e em Presidente da República Portuguesa (2006-?) pelo voto democrático de milhões de portugueses.