quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Unbound

Quando no texto anterior referi, entrelinhas, o mito de Prometeu Agrilhoado, tragédia grega escrita por Ésquilo, fazendo um pequeno exercício contranarrativo através da inversão dos beneficiários do roubo do fogo por Prometeu à omnipotência divina, não pude deixar de me recordar de mais um dos inúmeros trechos alegóricos genialmente concebidos por David Simon, na sua estrondosa série The Wire (A Escuta). Trata-se do sétimo episódio da última temporada (a quinta), intitulado “Took”, que foi escrito por Simon em co-autoria com o excelente romancista e argumentista nova-iorquino Richard Price – infelizmente, quase desconhecido em Portugal, com apenas um romance publicado, Terra da Liberdade (ed. Bertrand, 2000; Freedomland, 1998), adaptado pelo próprio autor para o cinema num filme de 2006 realizado pelo sofrível Joe Roth.
Nesse episódio, “Clay Davis” (magistralmente interpretado pelo actor Isiah Whitlock Jr.), o corrupto senador estadual, famoso pela sua hilariante e ressonante interjeição, com a voz esganiçada de indignação, “shiiiiiiit”, é finalmente convocado para comparecer em tribunal perante o Grande Júri, depois da obtenção de escutas concludentes que comprometem a polícia, autarcas e demais políticos, construtores e especuladores imobiliários, advogados, magistrados e traficantes de droga.
Finalmente, a espada da justiça actuará. O espectador sente-se alentado e em suspenso, embora esteja consciente de que a arte imita a vida – dura, iníqua e cruel – e que Simon, apesar de ter nascido em Washington, conhece como ninguém a mundividência da violenta Baltimore – terra de Poe e de “Hannibal Lecter” de Thomas Harris –, porquanto foi jornalista do Baltimore Sun por mais de uma década.
Os personagens de The Wire baseiam-se em algumas figuras públicas reais da mais importante cidade do Estado de Maryland. Não é novidade. Para quem acompanhou a memorável série desde o seu primeiro instante não pode (ou não deveria) esperar por um desfecho à laia de ode ao triunfo da justiça, basta para isso estar a par dos acontecimentos recentes político-judiciais que ocorrem na cidade de Baltimore, onde sobre a actual presidente da câmara – a jovem afro-americana Sheila Dixon – impendem acusações de corrupção e de outros crimes de colarinho branco – talvez seja a “Nerese Campbell” de Simon, quando “Carcetti” deixa o município e, finalmente, conquista o apetecido gabinete de Anápolis…
A cena que descrevo a seguir, dura pouco mais de meio minuto. Como referi, Clay Davis é finalmente chamado a comparecer como acusado em tribunal, obviamente patrocinado por um engenhoso advogado que conhece bem os meandros do sistema judicial e as pequenas grandes técnicas de manipulação da opinião pública através dos média:

 
«[Nas escadas exteriores do Tribunal de Baltimore, Clayton Davis, o senador estadual do Maryland, acusado pelo procurador de crimes de corrupção, empunhando (com um fim em vista) um livro, acede em falar aos jornalistas que o cercam antes de entrar para a sessão de julgamento.]
JORNALISTA: O que é que anda a ler, Senador?
SEN. “CLAY” DAVIS: Isto aqui? Promethes Bound*. Uma peça de teatro antiga, uma das mais antigas de que dispomos. É sobre um homem simples que foi medonhamente castigado pelos poderosos, pelo terrível crime de tentar trazer a luz às pessoas comuns. Nas palavras de Ascyllius**, “Nenhuma boa acção ficará impune.” Nem vos consigo transmitir o conforto que tenho encontrado nestas parcas páginas.» [Descrição e tradução: AMC, 2009]
Notas: *refere-se à tragédia grega, de autoria de Ésquilo, Prometheus BoundPrometeu Agrilhoado –, embora Davis, na sua ignorância, pronuncie o nome do personagem daquela forma truncanda, como Pro-me-thes [grafia e pronúncia correctas: Pro-me-the-us; sílaba tónica: antepenúltima].
**refere-se comicamente a Ésquilo como Ascyllius [A-silly-us], sendo a sua forma correcta Aeschylus [Aes-chy-lus, foneticamente (aproximando ao português) és-cã-lâzz, tónica na antepenúltima sílaba].
Uma sensação de déjà-vu. Inversão e subversão. Objecto e significado. Justiça desagrilhoada à sua semântica. Crime sem punição. Impunidade.