Curiosas as metamorfoses diárias da minha biblioteca pessoal.
Não compro somente livros de um conjunto restrito de autores que me inebriam perante a minha sede de leitura – apesar de o “restrito” ser bastante amplo, há que dar novos mundos à minha biblioteca –, embora haja alguns que figuram na utópica listagem da “obra completa”; existem outros, porém, que, por variadíssimas razões, deixei de comprar e de ler, mesmo até à socapa numa livraria ou biblioteca pública sem despender o vil metal; há outros, ainda, recomendados por tudo e por nada, por todos e por ninguém – basta neste caso um vislumbre da capa, a leitura de uma sedutora frase de abertura –, que têm o poder de influenciar a minha alta propensão para o gasto livreiro.
A biblioteca vai mudando à causa, bibliófila e oneomaníaca, de comprar consideravelmente mais livros que o tempo disponível para os ler. Agiganta-se no espaço. Não é ela eterna e infinita?
No princípio, com Murakami, era o verbo no particípio “livro comprado, livro lido”; um passado que à sétima obra do autor publicada em Portugal mudou de forma silenciosa (Dança, Dança, Dança; ed. port. Casa das Letras): já não o li e sucedeu-se um empilhar de lombadas alvas com letras arrevesadas de vermelho e negro que desprestigia a carteira – que é um mimo de a ver farta –, e entulha a biblioteca, que se pretende qualitativamente irrepreensível, como objecto de ostentação puramente onanista – não tem de ser pública, nem figurar em local em que cada visitante solte um suspiro de admiração estonteado pela grandeza da coisa. É, por definição e teimosia, um prazer privado, não partilhável e jamais fungível como um subproduto do ócio.
Agora, anuncia-se uma autobiografia. Corridas de fundo e literatura. Esforço físico e musculação mental. Suor transformado em caracteres ideográficos, com jacto marcado para o mercado norte-americano que se encarrega de espalhar a epidemia dos universos oníricos murakamianos pelo mundo ocidental – realismo mágico da pubescência fechada em poços e quartos escuros, esperando por cataclismos de proporções bíblicas como recurso final a um Deus ex machina singular e absurdamente xintoísta.
Murakami corre. O nosso engenheiro-filósofo contemporâneo corre para aclarar as ideias que irão ser transubstanciadas em estratégias sobre o xadrez do casaco da Ministra do Trabalho, de apelido André. Cedo o passo, alivia-se o orçamento. A biblioteca continuará a transformar-se, seguindo por outros caminhos não trilhados pelas solas pneumáticas do andarilho jactancioso – a maiêutica em movimento (geração Magalhães). Talvez, num futuro próximo, os nossos trilhos se cruzem num ponto longínquo ideal que por agora não vislumbro.
Haja fé e saúde. A pilha, por enquanto, manterá a medida do seu peso. Nem mais um grama! (e mais um ponto de exclamação, admirem-se.)