sábado, 31 de janeiro de 2009

Os meus leitores votaram

Durante mais de duas semanas figurou neste blogue, a título recreativo e para-cinematográfico, um inquérito que procurava conhecer a preferência dos poucos, mas fiéis, utilizadores que me visitam sobre aquele que, entre os últimos 20 vencedores do Óscar para “Melhor Filme”, consideravam como o melhor.
A listagem foi facilmente organizada, e incluiu os filmes vencedores entre 1989 e 2008 (produzidos entre 1988 e 2007, apresentados entre a 61.ª e a 80.ª sessões de entrega dos Óscares), que, como terão reparado, iam desde o musical, por exemplo, o mauzinho filme Chicago de Rob Marshall, com argumento de Bill Condon – género que, confesso, anda bem longe das minhas preferências – ao mais sombrio dos thrillers, onde podemos sem qualquer dúvida incluir filmes como O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1991) de Jonathan Demme, com argumento de Ted Tally – filme que foi um dos raros na história dos Óscares a arrecadar as cinco estatuetas das principais categorias –, ou Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men, 2007) com realização e argumento a cargo dos manos Joel e Ethan Coen, passando pelos géneros fantástico, biográfico, western, histórico, épico, e pelas películas de forte pendor melodramático, do mais xaroposo e lamechas ao mais cru e bem gerido em termos emocionais.
De todas a categorias atrás mencionadas, não há uma onde talvez possamos encaixar o filme vencedor deste pequeno inquérito, como veremos.
Votaram 82 pessoas (sem hipótese de repetição, a não ser por meios mais ou menos ilícitos e sofisticados de supressão de cookies ou de votar em vários computadores com diferentes acessos à internet).
Com 18 votos (21% do total de votantes) venceu:

Beleza Americana (American Beauty, 1999), filme realizado pelo britânico (de ascendência lusa) Sam Mendes, com o argumento original de Alan Ball (o criador da consagrada série televisiva Sete Palmos de Terra). O filme arrecadou 5 Óscares na sua 72.ª cerimónia de entrega (encontrava-se nomeado para 8). Para além da estatueta para “Melhor Filme”, venceu nas categorias para melhores “Realizador”, “Actor” (soberba interpretação de Kevin Spacey), “Argumento Original” e “Fotrografia”, perdendo, de forma inexplicável, o Óscar de “Melhor Banda Sonora Original”, composta por Thomas Newman, para a do filme O Violino Vermelho (Le violon rouge) criada por John Corigliano, realizado pelo canadiano francófono François Girard (e se bem estão recordados, realizador do meloso e pegajoso Seda em 2007, baseado num romance do autor italiano Alessandro Barrico).

Eis, então, os primeiros três classificados (4 filmes), que dividiram entre si cerca de 63% dos votos, um pouco abaixo dos dois terços:

  • Beleza Americana (American Beauty, 1999), de Sam Mendes – 18 votos (21%);
  • Imperdoável (Unforgiven, 1992), de Clint Eastwood – 15 votos (18%);
  • A Lista de Schindler (Schindler’s List, 1993), de Steven Spielberg, e O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1991), de Jonathan Demme – ambos com 10 votos cada (12% + 12%).

Outras notas:

  • Em branco ficaram 4 dos 20 filmes: Chicago (2002) de Rob Marshall, O Desafio do Guerreiro (Braveheart, 1995) de Mel Gibson, Gladiador (Gladiator, 2000) de Ridley Scott, e Miss Daisy (Driving Miss Daisy, 1989) de Bruce Beresford;
  • Durante as últimas duas décadas houve dois filmes que conseguiram igualar o recordista do número de estatuetas arrecadas, 11 no total, Ben-Hur (1959) de William Wyler: Titanic (1997) de James Cameron e O Senhor dos Anéis: O Regresso do Rei (The Lord of the Rings: The Return of the King, 2003) de Peter Jackson, receberam 1 voto e 4 votos, respectivamente;
  • Finalmente, e refiro-o com alguma pena minha, apesar de toda a campanha promocional e do lóbi das Caldas do meu querido amigo Henrique Fialho, Imperdoável de Clint Eastwood andou quase sempre atrás do filme vencedor.

Até ao dia 22, haverá mais qualquer coisa inútil na coluna do lado direito deste blogue. Jogos florais sobre cinema e para votar, obviamente.

Por enquanto, deixo-vos ficar uma das cenas mais marcantes do excelente filme vencedor:


«It’s the weirdest thing. I feel like I've been in a coma for about twenty years. And I'm just now waking up. Spectacular!» [“Lester Burnham”, Kevin Spacey]

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Essa difícil arte, a de editar

Escrevo este texto na suave transição de quinta 29 para sexta-feira 30 de Janeiro. Ele morreu a 27, na terça-feira da última semana de Janeiro de 2009. O tempo passa e os nossos sentidos insensibilizam-se perante a distância da ocorrência. Não era nosso, ou não nos pertencia – como gosto de referir quando partilho afectos –, a notícia dissemina-se na espuma dos dias, verde, bolorenta, ou amarela, enxofrada, por uma atmosfera carregada dos miasmas químicos produzidos pela nossa destrutiva existência. Estranha espécie. Matamo-nos uns aos outros no silêncio do nosso consumismo e a morte transforma-se numa ténue reminiscência daquilo que nos espera. Porventura é esse mesmo o nosso mecanismo de defesa: desligar os alarmes perante a inevitabilidade do saque que destroçará o nosso corpo. A alma…
Updike tinha 76 anos. A 18 de Março duplicaria o algarismo mágico. Publicou, entre romances, ensaios, antologias poéticas e colectâneas de críticas, mais de cinquenta obras. Nasceu em 1932 numa pequena comunidade rural do Estado da Pensilvânia, e agarrou-se à vida, esgadanhando-se para manter a cabeça à tona no lamaçal do negócio das letras – lá por ser arte, palavras soltas, preto no branco, que se formam pelo toque do génio e que se transformam em quimeras aos olhos dos seus leitores, não deixa de ser um negócio como outro qualquer: mercado, volume, margens, lucro.
Morreu a publicar. O seu último romance foi editado no último trimestre de 2008, quando as metástases da doença decerto o impediriam de articular verbalmente as palavras que sempre gostou de proferir. No seu canto isolado no Massachusetts. Nova Iorque, pressentira havia anos, destruí-lo-ia e devoraria a sua notável obra. Espectral como um vitral iridescente de uma igreja medieval, os seus escritos conquistaram a pulso tudo o que havia para vencer, Pulitzer, National Book Award, PEN/Faulkner, American… excepto o Nobel. Escrita regional que não participa no grande diálogo da literatura, poderia referir o sueco indiscreto. Uma imagem borgiana, uma biblioteca em que se produz um diálogo tal – algazarra, vozearia – que destrói a verdadeira essência de um livro, o diálogo interior entre autor e leitor através das letras impressas, mil vezes ampliado em colunas de agudos, médios e graves de imaginosas viaturas de tuning, dispostas em filas organizadas nos corredores da biblioteca high-tech.
Vários obituários, elegias e notas comoventes de uma perda imensa para a Literatura, produzidos por colegas escritores, críticos literários, editores, gente anónima.
Em Portugal, com a excepção de dois ou três jornais, os de referência – a literatura não mata a fome e o tempo é de crise, aliás, por essa perspectiva, infiro que andamos todos saciados, como um bom país de iletrados –, como dizia, poucos se referiram à morte de um dos maiores vultos da literatura mundial.
A sua edição em no nosso país, apenas conheceu alguma fase de prosperidade desde há dois ou três anos, medida pelo número de títulos publicados. Uma editora, aqui da minha terra, a Civilização publicou e completará (espera-se) a tetralogia do Coelho – acreditando que prossiga com a 5.ª parte, ou com a meia parte após o 4.º romance, a novela póstuma de Harry Angstrom, Rabbit Remembered (2001) agora publicada separadamente da antologia de contos Licks of Love (2000) – assim como publicou o feérico Brasil (Brazil, 1994) uma extrapolação de Tristão e Isolda, Procurai a Minha Face (Seek My Face, 2002) e O Terrorista (The Terrorist, 2006). No mercado podemos ainda encontrar S. (1988; ed. port. Livros do Brasil), O Centauro (The Centaur, 1963; ed. port. Europa-América) e o fascinante, fracturante e monumental Casais Trocados (Couples, 1968; reimpressão/ed. port. Modo de Ler/Inova).
Quando soube da notícia, procurei em vão na sua editora portuguesa textos, algumas palavras, uma frase apenas que descrevesse a honra de o haver editado e talvez uma manifestação de interesse, firme e inequívoca, pela continuidade na publicação das suas obras inéditas neste país de filisteus. Nada de nada. Nem uma linha. Nem uma nota de pé de página. Apenas a estrepitosa publicidade ao primeiro romance de Richard Yates (1926-1992), publicado com 47 anos de atraso, tudo porque o filme estreou hoje em Portugal, que ressuscita o casalinho do horripilante Titanic (1997) de James Cameron.
Pois claro, o mercado não se compadece com episódios de morte. Com lamechices e a amaricada (antimariálvica) exteriorização de sentimentos de perda. Porém, para mim, talvez um palerma de um idealista, isto não é editar. Qualquer semelhança com essa nobre arte é pura coincidência. Estariam melhor em Mirandela, assim que o frio se anuncia, a atiçar o fogo para a produção dos famosos enchidos em forma de “U”. Páginas queimadas que nos matam a fome.
Falta-me a palavra certa.

«Com uma ominosa frequência, não consigo pensar na palavra certa. Eu sei que existe a palavra; não consigo vislumbrar a forma exacta que ela ocupa no quebra-cabeças da língua inglesa. Mas a própria palavra, com a sua precisa expressividade e o seu matiz único de significação, aguarda no limiar nebuloso da consciência.»
John Updike, “The Writer in Winter”, AARP The Magazine, November/December, 2008.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Rose/Denby/Scott

Na passada sexta-feira, o inigualável e imbatível Charlie Rose dedicou 40 minutos do seu programa a uma antevisão sobre os possíveis vencedores e vencidos (filmes e actores) que sairão do Kodak Theatre no próximo dia 22, a propósito da 81.ª cerimónia de entrega dos Óscares da Academia.
Para o efeito, Rose convidou dois dos mais prestigiados críticos de cinema norte-americanos: David Denby da revista The New Yorker e A.O. Scott do jornal The New York Times. Críticos com gostos dissemelhantes e de gerações diferentes, que escrevem em dois dos mais importantes órgãos de informação do país, também distintos entre si. Todavia, uma dissensão de fundo cavava, à partida, um fosso entre as opiniões dos dois críticos, e Rose sabia-o: O Estanho Caso de Benjamin Button. Denby considera-o um dos piores filmes do ano – obviamente em termos retóricos, mera estratégia opinativa, argumento falacioso pelo exagero – deixando no ar, a certa altura a pergunta ridícula, «Como podemos ter pensamentos profundos sobre o que é essencial e artificialmente concebido?» Esta questão retórica servindo-se de um impudico sofisma, tentou responder à afirmação categórica de Charlie Rose «eu adorei este filme», completando e justificando o seu deleite fílmico com a angústia que o filme lhe transmitiu pela impossibilidade de amar, causada, na sua essência, por um heteróclito processo de envelhecimento (ao contrário), porém utilizável e plausível nos domínios da ficção.
O que Denby não percebeu ou não quis perceber, munido das suas farpas apriorísticas, e Rose entendeu e não se pôde exceder na sua limitativa qualidade de entrevistador perante um perito da 7.ª arte, é que a beleza do próprio filme reside na confabulação do processo de rejuvenescimento que, à partida e de imediato, soaria ao ouvido de qualquer homem como um ideia maravilhosa mas que choca com o preestabelecido na natureza, o ciclo inexorável nascimento-envelhecimento-morte. Trata-se da refutação, pura e simples, da hipótese inicial formulada por Scott Fitzgerald com base nas palavras de Mark Twain (que por aqui já foram por diversas vezes citadas). Em suma, não é por se padecer de todos os males geriátricos no início de vida e morrer inocente nos braços maternos, sem qualquer conhecimento daquilo que resultou de uma experiência de vida, que os seres humanos deixarão algum dia de sofrer as cruéis vicissitudes da existência no momento. O sofrimento não desaparece, e, pelo desencontro dos processos de transitoriedade existencial
, dificulta ainda mais, numa visão romântica, a concretização da aspiração mais sublime de um ser humano: o amor. Denby diz que rejuvenescer não faz parte da nossa experiência, diz tratar-se de uma «distorção peculiar da nossa existência» e que dramaticamente nunca existiu na vida real, assim a obra é «absorvida pela sua própria mecânica», para de seguida acabar por confessar que admira o filme em termos técnicos – convenhamos que, para pior filme do ano, não é nada mau...
A.O. Scott, um defensor do filme de Fincher, confessa que a cada crítica de Denby, dá por si a admirar cada vez mais o filme, não por uma questão de teimosia infantil, mas por aquilo que os detractores tentam pôr a nu, que é, nem mais, nem menos, onde se situa o código genético da obra, onde reside toda a beleza do filme.

Depois temos um momento potencialmente embaraçoso ao minuto 29:45, quando Rose pede aos seus convidados para dissertarem sobre outro dos filmes nomeados, The Reader do realizador britânico Stephen Daldry – o criador de As Horas (The Hours, 2002), baseado no romance homónimo de Michael Cunningham, vencedor do Óscar para “Melhor Actriz” pela soberba interpretação de Nicole Kidman na pele de Virginia Woolf. Voltando ao debate, são quase três minutos e meio de zurzidela no filme protagonizado por Kate Winslet, com um hilariante remoque à, segundo eles, péssima interpretação de Ralph Fiennes.

Por fim, sem focar outros aspectos do curioso debate e para resumir, ambos os críticos são unânimes ao considerar que seria feita justiça em atribuir, pelo menos, os Óscares para “Melhor Filme” e “Melhor Actor” (Sean Penn) a Milk de Gus Van Sant.

Para acabar de forma apoteótica, Charlie Rose, um veterano e um ícone da PBS e dos meios de comunicação americanos, termina o debate dizendo «que foi a melhor conversa sobre filmes que alguma vez ocorreu naquela mesa.»

Eis o vídeo:


quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Updike – II

John Updike em 1955

Perfeição desperdiçada

E outra coisa lamentável sobre a morte
é o cessamento da tua marca de magia,
que te levou uma vida inteira a desenvolver e promover –
os motejos, os gracejos, o remoque
adequados a uns poucos, aqueles seres amados próximos
da orla do palco, as suas faces suaves empalideceram
nas luzes da ribalta, o seu riso próximo das lágrimas,
o seu quente respirar compassado com o bater do teu coração,
as suas respostas e a tua performance irmanadas.
As piadas ao telefone. As memórias empilhadas
em ficheiros de rápido acesso. Todo o acto.
Quem o voltará a fazer? É isso: ninguém;
imitadores e descendentes não são a mesma coisa.

John Updike, “Perfection Wasted” (24/Jan/1990) [versão: AMC, 2009].

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Em choque

Soube apenas agora, enquanto escrevia um texto para publicar neste blogue.
Não tenho palavras para descrever a emoção que me assolou ao saber da morte de um dos melhores escritores do mundo na 2.ª metade do século XX, ainda em plena actividade nestes primeiros oito anos do século XXI, despediu-se com a sequela de uma das suas obras mais famosas The Widows of Eastwick (2008) – epílogo de As Bruxas de Eastwick (The Witches of Eastwick, 1984). Para quem costuma ler os meus textos não é nenhuma novidade, Updike era um dos meus mais estimados autores.
A tetralogia do Coelho, Brasil,… (é só carregar no tag)
Silêncio… Uma concavidade que lhe foi muito cara. Regressa, Coelho.

«Encontra esta curva côncava e desliza por ela, dorme. Ele. Ela. O.K.?»


John Updike

(Reading, Penn., 18 de Março de 1932 – Beverly Farms, Mass., 27 de Janeiro de 2009).

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

César 2009

Na passada sexta-feira foram anunciadas as nomeações para 34.ª edição dos Césares da Academia das Artes e Técnicas Cinematográficas de França, cuja cerimónia de entrega se realizará no próximo dia 27 de Fevereiro, em Paris, no Théâtre du Châtelet (cinco dias após a cerimónia de entrega dos Óscares da Academia de Hollywood), pelas 21 horas locais (20 horas – hora de Lisboa).

Da lista de nomeações sobressaem quatro filmes:

  • Mesrine, de Jean-François Richet, com 10 nomeações (um díptico, ou filme em duas partes – L’Instinct de mort e L’Ennemi public n°1 – baseado na histórica verídica do famoso assaltante e assassino francês Jacques Mesrine (1936-1979), segundo dizem magistralmente interpretado por Vincent Cassel, também nomeado para o César de Melhor Actor);
  • Segue-se um trio com 9 nomeações cada: Un conte de Noël, de Arnaud Desplechin; Séraphine, de Martin Provost; e Le Premier Jour du reste de ta vie, de Rémi Bezançon.

De notar que entre os sete filmes nomeados na categoria “Melhor Filme Estrangeiro” – filmes não produzidos em França, independentemente da língua em que é falado – figuram três filmes produzidos nos Estados Unidos (com James Gray a ver um filme seu nomeado pelo segundo ano consecutivo) e dois na Bélgica, completando a lista um filme israelita e outro italiano:

  • Eldorado, de Bouli Lanners – Bélgica;
  • Gomorra, de Matteo Garrone – Itália;
  • Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson – Estados Unidos (There Will Be Blood);
  • O Lado Selvagem, de Sean Penn – Estados Unidos (Into the Wild);
  • O Silêncio de Lorna, de Jean-Pierre e Luc Dardenne – Bélgica (Le silence de Lorna);
  • Two Lovers, de James Gray – Estados Unidos;
  • A Valsa com Bashir, de Ari Folman – Israel (Vals Im Bashir).

Outras notas:

  • O aclamado filme de Laurent Cantet, A Turma (Entre les murs), vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 2008 e nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2009, recebeu 5 nomeações, entre elas as de “Melhor Filme”, “Melhor Realizador” e “Melhor Argumento Adaptado”;
  • A octogenária realizadora franco-belga Agnès Varda (n. 1928), foi nomeada na categoria “Melhor Filme Documentário”, com Les plages d’Agnès. A criadora de Sem Eira Nem Beira (Sans toit ni loi, 1985) e uma das veteranas da Nouvelle Vague francesa, realizou um documentário autobiográfico, sobre os lugares da sua infância e os seus primeiros passos na realização, designadamente com o seu aclamado e premiado primeiro filme de 1955 La pointe courte;
  • O escritor francês Philippe Claudel (n. 1962) viu o seu primeiro filme Il y a longtemps que je t’aime ser nomeado para 6 categorias, entre as quais as de melhores “Filme” e “Primeiro Filme”, assim como a nomeação, quase por obrigação, procedente da sua ocupação principal, de “Melhor Argumento Original”, embora, em prol da verdade, escrever um guião seja, estilística e tecnicamente, diferente de escrever um livro.

domingo, 25 de janeiro de 2009

A Cozinha Literária de Bolaño

«A minha cozinha literária é, frequentemente, uma peça vazia onde nem sequer há janelas. Gostaria, claro, que houvesse algo, uma lâmpada, alguns livros, um leve aroma de valentia, mas a verdade é que não existe nada.
Às vezes, no entanto, quando sou vítima de irrefreáveis ataques de optimismo (que acabam, por outro lado, em alergias medonhas) a minha cozinha literária transforma-se num castelo medieval (com cozinha) ou num local em Nova Iorque (com cozinha e vistas privilegiadas), ou numa baiuca no sopé da cordilheira (sem cozinha, mas com uma fogueira). Mergulhado neste transe geralmente faço o que toda a gente faz: perco o equilíbrio e penso que sou imortal. Não quero dizer imortal literariamente falando, porque nisso só pode pensar um imbecil e eu não chego a tanto, senão literalmente imortal, como os cães e as crianças e os bons cidadãos que ainda não estiveram doentes. Por sorte, ou por desgraça, todo o ataque de optimismo tem um princípio e um fim. Se não tivesse fim, o ataque de optimismo converter-se-ia em vocação política. Ou em mensagem religiosa. E daí até sepultar livros (prefiro não dizer “queimá-los” porque estaria a exagerar) vai apenas um passo. O mais certo, pelo menos no meu caso, é que os ataques de optimismo acabem, e com eles a cozinha literária, desvanece-se no ar a cozinha literária, e apenas fico eu, convalescente, e um ligeiríssimo aroma de panelas sujas, pratos mal limpos, molhos apodrecidos.
A Cozinha literária, digo por vezes, é uma questão de gosto, ou seja, é um campo onde a memória e a ética (ou a moral, se me é permitido usar esta palavra) jogam um jogo cujas regras desconheço. O talento e a excelência contemplam, absortos, o jogo, mas não participam. A audácia e o valor participam, mas só em momentos pontuais, o que equivale a dizer que não participam em excesso. O sofrimento participa, a dor participa, a morte participa, mas com a condição de que só jogam a rir-se. Digamos, como um pormenor indispensável de cortesia.
Muito mais importante que a cozinha literária é a biblioteca literária (passe a redundância). Uma biblioteca é muito mais cómoda que uma cozinha. Uma biblioteca assemelha-se a uma igreja, enquanto uma cozinha de dia para dia se assemelha mais a uma morgue. Ler, disse Gil de Biedma, é mais natural que escrever. Eu acrescentaria, apesar da redundância, que também é muito mais saudável, digam o que disserem os oftalmologistas. De facto, a literatura é uma imensa luta de redundância em redundância, até à redundância final.
Se tivesse de escolher uma cozinha literária para aí me instalar durante uma semana, escolheria a de uma escritora, com a ressalva de que essa escritora não fosse chilena. Viveria com muito gosto na cozinha de Silvina Ocampo, ou na de Alejandra Pizarnik, na da romancista e poeta mexicana Carmen Boullosa, na de Simone de Beauvoir. Entre outros motivos, porque são cozinhas que estão mais limpas.
Em algumas noites sonho com a minha cozinha literária. É enorme, como três estádios de futebol, com tectos abobadados e mesas intermináveis onde se amontoavam todos os seres vivos da terra, os extintos e aqueles que muito em breve irão extinguir-se, iluminada de forma heterodoxa, nalgumas zonas com focos antiaéreos e noutras com archotes, e claro não faltariam zonas escuras onde somente se vislumbram sombras arquejantes ou ameaçadoras, e grandes ecrãs em que se observam, do canto do olho, filmes mudos ou exposições de fotografia, e no sonho, ou no pesadelo, passeio-me pela minha cozinha literária e por vezes acendo um fogão e preparo um ovo estrelado, incluindo por vezes uma torrada. E depois acordo com uma enorme sensação de cansaço.
Não sei o que se deve fazer numa cozinha literária, mas sei, todavia, o que não se deve fazer. Não se deve plagiar. O plagiador merece que o enforquem em praça pública. Quem disse isto foi Swift, e Swift, como todos sabemos, tinha mais razão que um santo.
Assim, que este ponto fique claro: não se deve plagiar, a não ser que desejes que te enforquem em praça pública. Ainda que aos plagiadores, hoje em dia, não os enforquem. Ao contrário, recebem bolsas, prémios, cargos públicos, e, na melhor das situações, convertem-se em bestsellers e líderes de opinião. Que termo mais estranho e feio: líder de opinião. Suponho que significa o mesmo que pastor de um rebanho, ou guia espiritual dos escravos, o poeta nacional, o pai da pátria, ou mãe da pátria, ou tio político da pátria.
Na minha cozinha literária ideal vive um guerreiro, a quem algumas vozes (vozes sem corpo nem sombra) chamam escritor. Esse guerreiro está sempre a lutar. Sabe que no fim, faça o que fizer, será derrotado. No entanto, recorre à cozinha literária, que é de cimento, e enfrenta o seu opositor sem dar nem pedir tréguas.»
Roberto Bolaño, “Un narrador en la intimidad”, in Revista ñ (Clarín), 25/03/2001.

sábado, 24 de janeiro de 2009

A Casa do Esquecimento

O romance do Fernando Dinis, A Casa do Esquecimento, vencedor do Prémio Literário Fnac/Teorema de 2008, já está à venda.

Eis a sinopse fornecida pela editora:

«Um homem – Artur Poeira, nome já em si premonitório – é esquecido pelo próprio destino. Os “esquecidos”, são, mais tarde ou mais cedo, conduzidos à Casa do Esquecimento pelo seu Destino personificado. O que acontecerá quando um “esquecido” tem oportunidade de se tornar, ele próprio, o Destino de muitas outras pessoas? É essa incógnita, que este romance absolutamente invulgar, nos desvenda, numa narrativa cheia de suspense, a que não são estranhas as influências de Kafka e Murakami.»

Uma vez mais, os meus parabéns ao Fernando.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Óscares 2009 – nomeações

Há poucos mais de duas horas, foram anunciadas, no Samuel Goldwyn Theater em Beverly Hills, Califórnia, as nomeações para cada categoria dos filmes candidatos à 81.ª edição dos Óscares, atribuídos pela Academia das Artes e das Ciências Cinematográficas de Hollywood. A cerimónia de entrega realizar-se-á no domingo, dia 22 de Fevereiro, às 17 horas locais (dia 23, à 1 da madrugada, hora de Lisboa).
Segue-se uma lista, de elaboração própria, com os 10 filmes que obtiveram três ou mais nomeações, seguida da lista dos nomeados para “Melhor Filme Estrangeiro” e “Melhor Filme de Animação”:

[Em destaque (a bold) as nomeações pertencentes ao denominado Top 5, ou seja, aquelas que se inserem nas cinco categorias artísticas consideradas como as mais importantes na atribuição do galardão: melhores filme, realização, argumento (original e adaptado), actor principal e actriz principal. Ao lado do número de nomeações para cada filme, figurará o número de nomeações para o Top 5, seguida da notação “+”.]

O Estranho Caso de Benjamin Button / The Curious Case of Benjamin Button (13 nomeações, 4+)
Actor – Brad Pitt
Actriz Secundária – Taraji P. Henson
Argumento Adaptado – Eric Roth
Banda Sonora Original – Alexandre Desplat
Caracterização
Direcção Artística
Efeitos Especiais
Efeitos Sonoros
Filme
Fotografia
Guarda-Roupa
Montagem
Realização – David Fincher

Quem Quer Ser Bilionário? / Slumdog Millionaire (10 nomeações, 3+)
Argumento Adaptado – Simon Beaufoy
Banda Sonora Original – A. R. Rahman
Canção Original (2 canções nomeadas)
Efeitos Sonoros
Filme
Fotografia
Montagem
Realização – Danny Boyle
Som

O Cavaleiro da Trevas / The Dark Knight (8 nomeações, 0+)
Actor Secundário – Heath Ledger
Caracterização
Direcção Artística
Efeitos Especiais
Efeitos Sonoros
Fotografia
Montagem
Som

Milk (8 nomeações, 4+)
Actor – Sean Penn
Actor Secundário – Josh Brolin
Argumento Original – Dustin Lance Black
Banda Sonora Original – Danny Elfman
Filme
Guarda-Roupa
Montagem
Realização – Gus Van Sant

Wall-E (6 nomeações, 2+)
Argumento Original – Andrew Stanton e Jim Reardon
Banda Sonora Original – Thomas Newman
Canção Original
Efeitos Sonoros
Filme de Animação
Som

Dúvida / Doubt (5 nomeações, 2+)
Actor Secundário – Philip Seymour Hoffman
Actriz – Meryl Streep
Actriz Secundária – Amy Adams
Actriz Secundária – Viola Davis
Argumento Adaptado – John Patrick Shanley

Frost/Nixon (5 nomeações, 4+)
Actor – Frank Langella
Argumento Adaptado – Peter Morgan
Filme
Montagem
Realização – Ron Howard

The Reader (5 nomeações, 4+)
Actriz – Kate Winslet
Argumento Adaptado – David Hare
Filme

Fotografia
Realização – Stephen Daldry

A Troca / Changeling (3 nomeações, 1+)
Actriz – Angelina Jolie
Direcção Artística
Fotografia

Revolutionary Road (3 nomeações, 0+)
Actor Secundário – Michael Shannon
Direcção Artística
Guarda-Roupa

Melhor Filme de Animação

  • Bolt, de Byron Howard e Chris Williams
  • O Panda do Kung Fu (Kung Fu Panda), de Mark Osborne e John Stevenson
  • Wall-E, de Andrew Stanton

Melhor Filme Estrangeiro

  • O Complexo Baader Meinhof, de Uli Edel – Alemanha (Der Baader Meinhof Komplex / The Baader Meinhof Complex);
  • Okuribito, de Yojiro Takita – Japão (Departures);
  • Revanche, de Gotz Spielmann – Áustria;
  • A Turma, de Laurent Cantet – França (Entre les murs / The Class);
  • A Valsa com Bashir, de Ari Folman – Israel (Vals Im Bashir / Waltz with Bashir).

Notas:

  • Tal como nos Globos de Ouro e nos BAFTA, o filme O Wrestler (The Wrestler), realizado por Darren Aronofsky, obteve as mesmas duas nomeações em categorias de interpretação: Mickey Rourke na categoria de “Melhor Actor” e Marisa Tomei na categoria de “Melhor Actriz Secundária”;
  • O filme A Duquesa (The Duchess) do jovem realizador britânico Saul Dibb – recorde-se que realizou para a BBC a excelente minissérie A Linha da Beleza (The Line of Beauty) baseado no aclamado romance homónimo, vencedor do Booker Prize de 2004, de Alan Hollinghurst, com adaptação a cargo do eminente argumentista Andrew Davies – obteve duas nomeações: melhores “Direcção Artística” e “Guarda-Roupa”;
  • De notar o eclipse total dos irmãos Coen das nomeações, que este ano apresentavam o medíocre Destruir Depois de Ler (Burn After Reading), e isto depois de terem sido os grandes vencedores da edição dos Óscares do ano passado (a 80.ª) com o filme Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men) com 4 estatuetas arrecadadas: Melhores “Filme”, “Realização”, “Argumento Adaptado” (de um romance de Cormac McCarthy) e “Actor Secundário” (Javier Bardem);
  • Nenhum dos filmes a concurso conseguiu ser nomeado para todas as categorias do Top 5, no entanto, houve quatro filmes (O Estanho Caso de Benjamin Button, Milk, Frost/Nixon e The Reader) que conseguiram obter quatro nomeações nesse conjunto de cinco, o que, desde logo, indicia uma noite em branco para muitos deles.
  • Para informações mais detalhadas consultar, em português, a notícia do Público, e, em inglês, o próprio sítio da Academia.

Até lá “vejam sempre bons filmes” e participem na sondagem que figurará na coluna do lado direito deste blogue até ao final do mês, sobre o filme que elegeriam como o melhor entre os vinte últimos vencedores da categoria “Melhor Filme” dos Óscares da Academia.

(Para o ano espero juntar ao rol o filme de Fincher…)

Murmansk

(Agora, perdido na noite sem sono, depois de uma mais do que prematura cedência aos braços de Morfeu, um espantoso cansaço que se manifestou logo após o jantar, invento coisas para que o sono não se perca em definitivo nas brumas da aurora que não tarda em chegar.
A casa em silêncio, lembrei-me de Button, que perdura instalado em definitivo na minha memória, como um organismo vivo, mutável, como uma entidade estranha alojada na minha mente pronta a receber as emanações feéricas da sua arte.
Insónia. Assalta-me a mesma sensação de conforto por saber que as três mulheres que partilham a minha vida, a minha casa, dormem protegidas, apenas vulneráveis às investidas dos sonhos.)

Murmansk, 1941. Palácio de Inverno, hotel. Benjamin Button (Brad Pitt) conhece Elizabeth Abbott (Tilda Swinton), inglesa casada com um espião disfarçado de chefe da delegação de comércio britânica em Murmansk, União Soviética. Um dos momentos mais belos do filme de David Fincher (com a excelente direcção de fotografia a cargo de um tal de Claudio Miranda, será luso-descendente ou brasileiro?):


Brad Pitt e Tilda Swinton em O Estranho Caso de Benjamin Button

«[Na cozinha do hotel, a meio da noite]
Elizabeth: E de onde é?
Benjamin: Nova Orleães, Luisiana.
Elizabeth: Não sabia que existia outra.

E falou-me de todos os lugares onde tinha estado, o que tinha visto. E falávamos até ao amanhecer. Depois voltávamos para os nossos quartos, para as nossas vidas separadas. E todas as noites, encontrávamo-nos de novo naquele salão. Um hotel durante a noite pode ser um lugar mágico. Um rato a correr e a parar. Um radiador a sibilar. Uma cortina a esvoaçar. Há qualquer coisa de tranquilo, até de confortável, em saber que as pessoas que amamos estão a dormir nas suas camas, onde nada as pode magoar.
Ambos perdíamos o rasto da noite, até ao romper do dia.

Elizabeth: Creio que talvez lhe possa ter dado uma ideia errada.
Benjamin: O que disse?
Elizabeth: Bom, não é normal mulheres casadas ficarem sentadas durante a noite em hotéis a conversar com estranhos.
Benjamin: Eu não faço mínima ideia do que faz ou não faz uma mulher casada.
[Elizabeth levanta-se e abandona a cozinha]
Benjamin: Boa Noite!»

Extraído do guião escrito por Eric Roth, baseado na versão original de 2002 de Robin Swicord e do conto O Estranho Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button, 1922) do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald. [tradução: AMC]

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Exibição da sapiência paterna (tragédia)

Passariam uns dez minutos das nove da manhã. Escuro, o céu forrado de cúmulos-nimbos, um frio de rachar cortado apenas pelo aquecimento do carro e pelas palavras quentes que saíam da boca de I. a caminho de mais uma jornada de luta – que saudades desses tempos revolucionários de palmo e meio – no seu colégio… de freiras.
Inquieta, interrogava-me sobre as forma e cor inauditas daquelas nuvens. Eu, com um ouvido na TSF, Obama e a tomada de posse, e outro no espanto verbalizado por uma pirralha de cinco anos perante a magnitude da paisagem atmosférica, ia dando as minhas doutas respostas, um deus-pai da meteorologia e de qualquer assunto, a confiança cega que mais tarde se transforma numa dolorosa descoberta: ele afinal não sabia tudo; tem defeitos; bazófias; podendo até, em fases extremas, redundar num parricídio de contornos pasolinianos.
Chega a pergunta inevitável:
– Papá, achas que vai haver trovoada?
Esboço um sorriso sardónico como meio indispensável para a produção
do necessário efeito ansiolítico, e imperiosamente determino que isso seria um disparate, dada a inexistência da massa de ar quente… salvo pelo gongo, a buzina do carro de trás apressa-me a encontrar um lugar, o portão do colégio está próximo. Estaciono em segunda fila. Se fosse Aristófanes dir-te-ia o que farias com a tua buzina ligada à cabeça… Aspecto exterior: impassível.
Agasalho-a, aperto-a nos meus braços e diz-me na sua candura: – depois logo contas-me, papá.
Separámo-nos. Desligo a luzes de emergência e entro de novo no carro. O candidato à imprecação aristofânica desapareceu. Cem, duzentos metros. Ainda mal se emudecera na minha face o doce e terno beijo lambuzado da despedida e abate-se sobre o meu carro uma chuva de granizo, segundos antes anunciada por um forte trovão.
Brindo à minha erudição climatérica: bravo, papá, acertaste.
De quem é a culpa?, pergunto-me. A resposta óbvia não tarda…
Se a tua mãe num domingo deste querido mês de Agosto me tem dado ouvidos e não te tem levado à praia onde uma Senhora da Nazaré (ou similar) levada em ombros a banhos de água salgada por uma multidão garrida ao som de salvas de morteiros a cada mistério rezado, talvez hoje, querida I., não tivesses medo dos trovões…

Ah, meu marialva, comigo a culpa é sempre da mulher. As voltas que a vida… perdão, o texto dá.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Ainda (e sempre) sobre Benjamin Button


Se tiver oportunidade vê-lo-ei de novo ainda esta semana. Tal foi a marca de inquietação que, com uma persistência espantosa, não me larga o espírito.
Como desconstruir a hipótese existencial, em forma de prece divina, ambicionada por Mark Twain? O tal homem cujo destino ficou associado aos caprichos da circularidade de um cometa.
F. Scott Fitzgerald inspirou-se na biografia de Mark Twain, escrita e publicada em 1912 por Albert Bigelow Paine, onde leu uma curiosa citação:
«Seu eu houvesse ajudado o Todo-Poderoso quando Ele criou o homem, tê-Lo-ia persuadido a começar pelo outro extremo, pondo os seres humanos a nascer na velhice. Quão melhor seria nascer velho, com toda a amargura e a cegueira da idade dispostas no início! Ninguém se importaria se ansiássemos por uma juventude rejubilante. Pense na feliz perspectiva de rejuvenescer em vez de envelhecer! Pense na satisfação em esperar pelos dezoito anos em vez dos oitenta! Sim, o Todo-Poderoso nisso fez um mau trabalho. Quem me dera que Ele houvesse pedido o meu auxílio.» [tradução: AMC]
Na colectânea de contos de Scott Fitzgerald, Tales of the Jazz Age de 1922, Scott, na apresentação dos contos compilados refere o que se segue para “The Curious Case of Benjamin Button”:
«Esta história inspirou-se numa observação de Mark Twain, que propalava que era uma pena que a melhor parte da vida surgisse no seu início e a pior no seu fim. Ao efectuar a experiência em apenas um homem num mundo perfeitamente normal, dificilmente proporcionei à sua reflexão um julgamento justo.» [tradução: AMC]
Talvez tenham sido estas palavras introdutórias do criador que levaram Robin Swicord e Eric Roth (a primeira perseguia obsessivamente a concretização deste projecto em filme, e já dispunha de um guião escrito) à ampliação e trasladação histórica desta magistral alegoria sobre a morte como fim sombrio, angustiante, perceptível, inelutável e omnipresente em toda uma vida, quer haja ou não uma inversão do seu início. O sofrimento permanece, aproveitai os momentos.
Fincher alerta-nos para a beleza do preceito que, todavia, choca com princípios morais, na estrita medida em que se gera uma séria iniquidade, uma desarmonia existencial, jamais conjugável com, e potencialmente geradora de, uma felicidade perene e absoluta. Benjamin Button é uma parábola sobre essa dissonância insanável. Não é uma história de amor ou sobre o seu desencontro, é um hino ao não desperdício daquilo que a vida no traz no momento, saber vivê-lo, agarrá-lo com unhas e dentes, porque a única certeza, rejuvenescendo ou envelhecendo, é a transitoriedade para o vazio, que ultrapassa a dúvida paralisadora sobre a transcendência do fim.

Ainda sob a influência do espectro mágico do filme, que irei rever, revisitar e reexaminar, à procura dos famosos “ovos de Páscoa” – como gosta de chamar uma mente auto-iludida com a sua perspicácia – ou daquilo que aos meus olhos fugiu numa primeira exibição, não falarei, por enquanto, sobre os pormenores de realização, dos momentos memoráveis (o mais delicioso com Tilda Swinton no Hotel na cidade polar de Murmansk, no extremo noroeste da Rússia), a banda sonora, a fotografia e as interpretações (a soberba interpretação de Brad Pitt, que ao que tudo indica irá passar em branco).

Deixo apenas uma recomendação para a leitura deste excelente texto do Henrique e um excerto de um poema de Larkin (talvez a despropósito), que não me atrevo a traduzir:

I work all day, and get half drunk at night.
Waking at four to soundless dark, I stare.
In time the curtain edges will grow light.
Till then I see what's really always there:
Unresting death, a whole day nearer now,
Making all thought impossible but how
And where and when I shall myself die.
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.
Philip Larkin (1922-1985), 1.ª estrofe de “Aubade” (1977)

domingo, 18 de janeiro de 2009

João Lopes dixit

Ainda no campo das curiosidades, uma semana antes da estreia do filme, encontrei João Lopes na Almedina do Arrábida Shopping, supostamente no dia em que, segundo me informaram, o crítico viu o filme em sessão privada numa das salas do multiplex do UCI.

Chiste bolañiano

Os americanos descobriram-no há muito pouco tempo. Talvez através de Susan Sontag (1933-2004) com o sem ajuda de miss I., a sua amiga do peito. E pelos jornais, revistas da especialidade, pelas comunidades de leitores, críticos, autores sancionadores da qualidade profissional de seus pares e hermeneutas da palavra alheia – estes últimos, normalmente, em busca de mensagens subliminares e encriptadas de teor político, reconhecendo no autor as capacidades divinatórias de guia de luz contra o despotismo de índole capitalista – só se lê, ouve, ou vê – o gesticular afectado dos iniciados ou eleitos pelo esplendor da intelectualidade literária – falar de Roberto Bolaño (1953-2003). Traduzem-se as suas obras. Esmiúça-se ao mínimo detalhe a sua personalidade, vida familiar, teia de relacionamentos, entrevistas em publicações mais ou menos obscuras.
No ano passado, saiu Bolaño selvagem (Bolanõ selvaje, livro e DVD sob a chancela da Editorial Candaya, editado pelo boliviano Edmundo Paz Soldán e pelo peruano Gustavo Faverón Patriau, inclui textos de Enrique Vila-Matas, Rodrigo Fresán, Jorge Volpi, entre outros. Chega-se a hiperbolizar afirmando que com a morte de Bolaño morreu a literatura latino-americana (e eu, sozinho em casa a escrever este texto, pergunto-me por Fuentes e Vargas Llosa, até por García Márquez ou Piglia).

Prosseguindo. A vida e o brilhantismo de Bolaño reflectem-se na sua obra. Decerto que há muito para dizer sobre a curta vida deste ilustríssimo escritor chileno, mas primeiro leiam-no e deliciem-se com a sua ironia, por vezes subtil outras vezes carregada, sarcástica, pontuado de um espirituoso humor negro.

Eis uma passagem de Nocturno Chileno (que demorei uma infinidade de tempo a encontrar, dada a minha mania de não profanar os meus livros com inscrições, sublinhados e anotações à margem), do Padre Ibacache recenseador literário (cujo ao ortónimo Sebastián era adicionada a estranha combinação de apelidos basco-francesa Urrutia Lacroix).
Pobre padre. Jovem, perdido na Europa numa demanda insana engendrada por dois numerários da Opus Dei, Oido e Odeim – ódio e medo (miedo), respectivamente, de trás para a frente –, sobre a preservação das fachadas das igrejas europeias frente aos bárbaros ataques de bandos de pombas (o símbolo do Espírito Santo) e a sua copiosa defecação. Solução wescottiana: criação de falcões. No momento de desespero absoluto, em que Sebastián pensa no regresso ao Chile, um bom padre alemão conta-lhe uma anedota:

«Está o Papa com um teólogo alemão, a falar tranquilamente numa das salas do Vaticano. De repente, aparecem dois teólogos franceses, muito excitados e nervosos, e dizem ao Santo Padre que acabam de chegar de Israel e que trazem duas notícias, uma muito boa e outra considerada má. O Papa suplica-lhes que falem de uma vez por todas, que não o mantenham na expectativa. Os franceses, atropelando-se, dizem que a boa notícia é que encontraram o Santo Sepulcro. O Santo Sepulcro?, diz o Papa. O Santo Sepulcro. Sem a mais pequena dúvida. O Papa chora de emoção. Qual é a má notícia?, pergunta, secando as lágrimas. Dentro do Santo Sepulcro encontrámos o cadáver de Jesus Cristo. O Papa desmaia. Os franceses tentam dar-lhe ar. O teólogo alemão, que é o único que está calmo, diz: ah, mas então Jesus Cristo existiu mesmo?»
Roberto Bolaño, Nocturno Chileno, p. 95
[Lisboa: Gótica, Julho de 2003, 150 pp.; tradução de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues; obra original: Nocturno de Chile, 2000.]

Para a semana, nas habituais citações dominicais, um brilhante auto-retrato e análise do ilustre autor chileno (devidamente traduzido).

sábado, 17 de janeiro de 2009

Afecto


Um entre vários sentimentos que perpassam por um dos melhores filmes (americanos e não-americanos) dos últimos tempos.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O desmadonnizado

Janeiro, 16. Três filmes contabilizados – se esta média for para manter, verei durante o corrente ano menos um filme que em 2008 (68). Mas a matemática e a estatística não se coadunam com a minhas volatilidade emocional e consistente inconsistência.
Primeiro, o fraquinho A Troca (Changeling, 2008) de Clint Eastwood, que se salva pelo excelente desempenho de Angelina Jolie, embora, tenha de admitir, que, pela história de base, o filme poderia ter facilmente resvalado para o melodrama grotesco e xaroposo, bem ao estilo dos metros de celulóide desperdiçados com peliculas que se baseiam em livros de Nicholas Sparks.

Numa das salas do ex-AMC, há já alguns anos rebaptizadas com a sigla UCI – tiveram essa descortesia para com o meu nome, a não ser que mude o meu nome próprio para Urbano (o que seria incoerente dada a minha irritabilidade crescente nos tempos que correm, somatizada numa coloquialidade discursiva e comportamental a rasar a grosseria) ou para um homérico Ulisses (não, não sou assim tão afanoso e empenhado) –, foi acrescentado um efeito sonoro, que, decerto, não influenciará os votantes desta categoria para os Óscares deste ano dada, por um lado, a distância geográfica e, por outro, uma eventual surdez do Echelon, efeito que poderia haver-se designado por “cascata”, “impetuosidade aquosa” ou “micção elefantina”: chovia dentro da sala, como se se houvesse materializado no tecto da dita cuja um fontanário de bica larga, impotente para deter tamanha descarga celestial. Resultado: a gerência do referido multiplex ofereceu a cada pessoa presente no putativo pantanal a possibilidade de assistir de graça a um outro filme, em qualquer dia, a qualquer hora. Bem-haja.
Gastei o vale. Decidi, em cima do acontecimento, que iria ver o último filme do santo, arcanjo, ou até Cristo ressuscitado Guy Ritchie – qualificativos que lhe assentam bem dado ter aturado durante anos aquela mulher inconcebível. RocknRolla, era o nome do filme. Ritchie é daqueles realizadores que por mais filmes que realize transmite a sensação de ter feito sempre o mesmo filme. Cheiro-me a Snatch – Porcos e Diamantes (a sala até se encontrava bem asseada), principalmente no histerismo cadencial das cenas, nos personagens, até no estribilho curto e acelerado de imagens que em Snatch funcionou tão bem com Dennis Farina.
Guy, agora com quarenta anos, despoluído de toda a carga de excentricidade, apimbalhada, sudorífera até (pronto, que querem, a dita cuja senhora sempre que aparece diante dos meus olhos, faz activar os meus detectores de um forte, adocicado e repugnante odor axilar), pode começar a viver de novo, e quiçá tal rompimento haja potenciado as suas capacidades criativas, aguardando-o uma série de filmes por si dirigidos que entrarão directamente, sem o necessário envelhecimento em casco de carvalho francês, para o panteão da cinematografia mundial. Ou então, descobre que é mesmo um completo fracasso enquanto cineasta e encontra a sua verdadeira vocação, desaparecendo na massa anódina de estivadores, também sudoríferos, que enrijecem corpo e alma nas docas de Southampton.
Salvam-se a banda sonora, sugerindo ao espectador ter sido objecto de uma selecção meticulosa, e a fantástica participação dos maravilhosos The Subways, com um dos seus êxitos de 2005, do álbum Young for Eternity, “Rock & Roll Queen”.
Mas, por enquanto, deixo aqui ficar o vídeo “I’m a Man” dos franceses Black Strobe, que dá vida ao excelente genérico (outra das escassíssimas coisas que valem mesmo a pena no filme) e, como bónus, permanecerá na barra lateral o som de The Subways:


Nota: no início do texto referi três filmes e, na realidade, não houve da minha parte qualquer lapso matemático. Aqui, neste texto, apenas deveria falar de dois. O terceiro merece um texto individual num futuro (próximo ou não, depende sempre da minha variável pachorra). Levantando a ponta do véu, não poderia estar mais em desacordo com o, a par de João Lopes, melhor crítico de cinema em Portugal: tempus fugit, porém, acrescento com alguma esperança (seja ela qual for), ars longa vita brevis.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

BAFTA 2009 – Nomeações

Prossegue a competição renhida, pelo menos nas nomeações (no que respeita a prémios a história é bem diferente), entre os filmes de Fincher e Boyle. Cada um recebeu 11 nomeações para os prémios de 2009 das British Academy of Film and Television Arts (mais conhecida pelo acrónimo BAFTA).

Ao todo, são 14 os filmes com 3 ou mais nomeações, num total de 29 títulos nomeados:

O Estranho Caso de Benjamin Button / The Curious Case of Benjamin Button (11 nomeações)
Actor – Brad Pitt
Argumento Adaptado – Eric Roth
Caracterização
Efeitos Especiais
Filme
Fotografia
Guarda-Roupa
Montagem
Música – Alexandre Desplat
Planeamento de Produção
Realizador – David Fincher

Slumdog Millionaire (11 nomeações)
Actor – Dav Patel
Actriz Secundária – Freida Pinto
Argumento Adaptado – Simon Beaufoy
Filme
Filme Britânico
Fotografia
Montagem
Música – A. R. Rahman
Planeamento de Produção
Realizador – Danny Boyle
Som

O Cavaleiro da Trevas / The Dark Knight (9 nomeações)
Actor Secundário – Heath Ledger
Caracterização
Efeitos Especiais
Fotografia
Guarda-Roupa
Montagem
Música – Hans Zimmer e James Newton Howard
Planeamento de Produção
Som

A Troca / Changeling (8 nomeações)
Actriz – Angelina Jolie
Argumento Original – J. Michael Straczynski
Fotografia
Guarda-Roupa
Montagem
Planeamento de Produção
Realizador – Clint Eastwood
Som

Frost/Nixon (6 nomeações)
Actor – Frank Langella
Argumento Adaptado – Peter Morgan
Caracterização
Filme
Montagem
Realizador – Ron Howard

The Reader (5 nomeações)
Actriz – Kate Winslet
Argumento Adaptado – David Hare
Filme
Fotografia
Realizador – Stephen Daldry

Em Bruges / In Bruges (4 nomeações)
Actor Secundário – Brendan Gleeson
Argumento Original – Martin McDonagh
Filme Britânico
Montagem

Milk (4 nomeações)
Actor – Sean Penn
Argumento Original – Dustin Lance Black
Caracterização
Filme

Revolutionary Road (4 nomeações)
Actriz – Kate Winslet
Argumento Adaptado – Justin Haythe
Guarda-Roupa
Planeamento de Produção

Destruir Depois de Ler / Burn After Reading (3 nomeações)
Actor Secundário – Brad Pitt
Actriz Secundária – Tilda Swinton
Argumento Original – Joel e Ethan Coen

Dúvida / Doubt (3 nomeações)
Actor Secundário – Philip Seymour Hoffman
Actriz – Meryl Streep
Actriz Secundária – Amy Adams

Il y a longtemps que je t’aime (3 nomeações)
Actriz – Kristin Scott Thomas
Argumento Original – Philippe Claudel
Filme em Língua Não-Inglesa

Mamma Mia! (3 nomeações)
Filme Britânico
Música – Benny Andersson e Björn Ulvaeus
Produtor Estreante (The Carl Foreman Award) Judy Craymer

Wall-E (3 nomeações)
Filme de Animação
Música – Thomas Newman
Som

Notas:

  • A categoria “Melhor Montagem” inclui, a título excepcional, seis nomeações, uma vez que se verificou um empate na contagem dos votos (como é óbvio, não foi divulgado em quantos e entre que filmes se verificou tal raridade);
  • Kate Winslet recebeu duas nomeações para “Melhor Actriz” (principal) pelos filmes Revolutionary Road e The Reader. É de recordar que a actriz venceu dois Globos de Ouro no passado domingo pelas mesmas interpretações, embora pela sua interpretação no filme The Reader tenha sido nomeada e depois vencido na categoria de “Melhor Actriz Secundária – Drama”;
  • Brad Pitt também dispõe de duas nomeações: “Melhor Actor Principal” no filme de Fincher e a merecidíssima nomeação para “Melhor Actor Secundário” no paupérrimo filme dos irmãos Coen – como referi aqui, a interpretação de Pitt e de Frances McDormand foram a excepção à regra da mediania (ou quase mediocridade) fílmica, apagar da memória depois de o ver;
  • O filme The Wrestler, realizado pelo homem do excitável e ostentador dedo do meio perante milhões de pessoas, the toughest guy on Earth, Darren Aronofsky, obteve duas nomeações, ambas em categorias de interpretação: Mickey Rourke na categoria de “Melhor Actor” e Marisa Tomei na categoria de “Melhor Actriz Secundária”;
  • Seria suficientemente notada uma não referência às nove nomeações alcançadas por O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight), de Christopher Nolan, apesar de, no meu íntimo e legítimo ponto de vista, considerar que se trata de um filme medíocre – como mencionei em tempos idos, o filme vale unicamente pela soberba interpretação de Heath Ledger –, as restantes nomeações referem-se a categorias técnicas, se exceptuarmos a nomeação para “Melhor Música” ou banda sonora;
  • Ao contrário do que ocorreu nos Óscares, Gomorra, de Matteo Garrone não deixou de ser nomeado para melhor filme não anglófono, todavia, de forma estranha, o aclamado A Turma (Entre les murs) de Laurent Cantet não figura na lista dos cinco nomeados; por outro lado, o filme de animação israelita A Valsa com Bashir (Vals Im Bashir) de Ari Folman, foi nomeado para esta categoria, e também faz trio com Persépolis (Persepolis), filme realizado pela dupla Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi, e com o mais que favorito Wall-E de Andrew Stanton na categoria “Melhor Filme de Animação”;
  • O Filme sensação Hunger, recebeu duas nomeações: “Melhor Filme Britânico” e Steve McQueen foi nomeado para o Carl Foreman Award, na qualidade de melhor realizador/argumentista estreante.
  • Para mais informações, consultar o sítio do próprio organizador ou o jornal Público.

A gala de atribuição dos prémios realiza-se no domingo, 8 de Fevereiro na The Royal Opera House, Covent Garden, em Londres.

2 Filmes, 11 Nomeações cada

BAFTA 2009



Mais tarde (quando houver tempo, mas ainda hoje) será aqui divulgada a lista completa das nomeações, estruturada de acordo com a forma de apresentação habitual neste blogue.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Benjamin Button, um assalto retroactivo?

Um dia um tal de Francis, Tenente do Exército americano, jurara à sua atrevida boneca provinciana Zelda que haveria de ser famoso. Conseguiu. Francis e Zelda casaram após a confirmação da iminência de uma carreira literária de sucesso.
Porém, o alto padrão de vida que mantinham, e procuravam manter, associada à destruição progressiva de uma vida pela boémia permanente, transformaram o estúrdio Tenente Francis numa máquina de produção de contos e novelas, que eram pagos à peça em revistas da especialidade e não só. Francis escreveu perto de duzentos contos, para um período de escrita tão curto (1920-1940) e se lhe acrescentarmos os cinco romances, com destaque para o inigualável O Grande Gatsby (The Great Gatsby, 1925) e o magistral Terna é a Noite (Tender is the Night, 1934), assim como o projecto de romance que redundou no inacabado e espantoso O Último Magnate (The Last Tycoon), e outras dezenas de artigos que, tal como os contos, foram publicados em revistas de reconhecido mérito, como a Scribner’s, a Harper’s, a Esquire, a Kenyon Review, ou até a Vanity Fair, percebemos que Scott era um trabalhador incansável, que provavelmente o conduziu, outros abusos à parte, à sua morte prematura nas cercanias do Natal de 1940.
A 27 de Maio de 1922, a extinta revista Collier’s publica nas suas páginas (ocupando cerca de 9 páginas dessa edição) o conto The Curious Case of Benjamin Button, mais tarde integrado numa mão cheia de antologias de histórias do próprio autor.
Hoje, o mesmo conto faz parte do domínio público, podendo ser descarregado na íntegra e de forma gratuita, na sua versão original, nas páginas do Projecto Gutenberg [ficheiro Zip], integrado na colectânea Tales of the Jazz Age, publicada em 1922 pela editora Charles Scribner’s Sons.
Hoje, o conto de F. Scott Fitzgerald ressuscitou das cinzas. Narra a história de Benjamin Button, nascido em 1860 em Baltimore, no Estado do Maryland, com a estranha idade de 70 anos, e que rejuvenesce até ao alvor da conturbada década de 1930. Segundo dizem os livros, Scott Fitzgerald escreveu a história inspirando-se nas palavras de um dos mais brilhantes pais fundadores das letras norte-americanas, Mark Twain (1935-1910) – o homem cuja existência está ligada a um fenómeno assaz curioso, nasceu e morreu entre duas aparições consecutivas do famoso Cometa Halley, em datas muito próximas, em ambas as ocasiões, do seu perigeu –, que referiu que o homem devia nascer velho, quando as preocupações e todos os problemas de vários níveis o atormentam, e morrer no berço, sem consciência da morte.
David Fincher foi o realizador escolhido para levar ao ecrã a fantástica história de retroactividade existencial. Eric Roth foi o argumentista escolhido – vencedor de um Óscar em 1995 pela adaptação do romance de Winston Groom, Forrest Gump; foi o responsável pelos argumentos de filmes como O Informador (The Insider, 1999) de Michael Mann ou Munique (Munich, 2005) de Steven Spielberg, e pelo guião de autênticas aberrações fílmicas como O Mensageiro (Postman, 1997) de Kevin Costner, ou de O Encantador de Cavalos (The Horse Whisperer, 1998) de Robert Redford, ou do mau de mais para ser verdade Mr. Jones (1993) de Mike Figgis. Roth partiu da história original de Fitzgerald, e reconstruiu com a incansável Robin Swicord, uma história trasladada para o século XX e para a cidade de Nova Orleães, no Estado do Luisiana, quando esta é fustigada pelo furacão Katrina.
O filme estreia esta quinta-feira (dia 15) em Portugal.

Entretanto, aproveitando os milhões aplicados na promoção do filme, a Editorial Presença resolveu publicar uma tradução inédita do conto de F. Scott Fitzgerald – que, como se referiu acima, tem pouco que ver com a história levada ao grande ecrã pelo realizador de Denver.
O livro dispõe de 75 páginas, com 61 páginas úteis (as que incluem a história, entre páginas em branco na mudança de capítulo, ficha técnica e título), com as dimensões de 23 por 15 cm, letra de tamanho 13, com margens bastante folgadas. E pasme-se: P.V.P. 10 euros.
Sobre o referido conto já não recaem direitos de autor, quando muito a editora teve de pagar à produtora do filme o direito de utilização das imagens da capa e da contracapa e os honorários (à cabeça ou em percentagem do volume de vendas) à tradutora (Fernanda Pinto Rodrigues).
Repete-se à saciedade que os livros em Portugal são caros. Não partilho dessa opinião e basta atentar nos preços normalmente praticados noutros países. Todavia, isso não significa que não deixe de considerar que os direitos de propriedade intelectual são ridiculamente baixos, principalmente no caso dos novos autores, face ao preço do produto final. No entanto, neste caso específico da publicação em Portugal de O Estanho Caso de Benjamin Button, o preço é excessivo, para não usar uma expressão mais severa e acutilante – para isso, basta o título deste texto…
Scott morreu em 1940, Zelda em 1948, Frances “Scottie” (filha única do casal) deixou o mundo dos vivos em 1986 com descendência que não renovou, ou nem tão-pouco herdou, os direitos de autor sobre as obras do avô.
O súbito e legítimo interesse dos leitores pela história epónima que serve de base ao filme de Fincher, levou a que editoras de todo o mundo a editassem usando uma de duas soluções: publicação em separado, retirando-a das quatro ou cinco antologias em que estava inserida; ou publicação de uma nova antologia cujo título era emprestado pelo próprio conto.

Eis seis exemplos:

  • Alemanha – editado pela Diogenes, 70 pp., €5,90;
  • Espanha – editado pela Lumen (de capa dura, inclui mais 7 contos), 272 pp., €18,90;
  • Estados Unidos – editado pela Juniper Grove, 32 pp., $5,95 (aprox. €4,50 ao câmbio do dia);
  • França – editado pela Gallimard (bolso, inclui mais 1 conto), 103 pp., €2;
  • Itália – irá ser editado pela Guanda (livro ilustrado), 130 pp., €14;
  • Reino Unido – editado pela Penguin (inclui mais 6 contos do autor), 208 pp., £7,99 (aprox. 8,78 € ao câmbio do dia).

Nota final: Em 19 de Junho de 2008, a propósito do anúncio da data de estreia da 7.ª longa-metragem de David Fincher, publiquei aqui o primeiro capítulo (de onze) do referido conto, com tradução, eminentemente livre, de minha autoria. A dita tradução corresponde ao intervalo fechado de páginas entre a 7 e a 18 da edição de 75 páginas da Presença; sendo a 18 uma página em branco, corresponde a 11 páginas úteis, num total de 61, ou seja, traduzi cerca de 18% da obra. Neste momento, sinto pena de não haver traduzido os restantes 82%, destinados àqueles que têm reais dificuldades com a língua inglesa… mas, porventura, seria trabalho de burro, sem recompensa recíproca, ou seja, o esforço não seria acompanhado de uma massagem blogosférica no ego com o aumento do número de visitas.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Melhor Filme Estrangeiro – Óscares

Imagem do filme Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes

Foram hoje anunciados, pela Academia das Artes e das Ciências Cinematográficas de Hollywood, os nove dos sessenta e cinco filmes a concurso que passaram a integrar a lista de semifinalistas candidatos ao Óscar para Melhor Filme Estrangeiro, de onde sairão, no próximo dia 22 de Janeiro, os cinco nomeados para a sessão de entrega das estatuetas douradas, a realizar no Kodak Theatre no dia 22 de Fevereiro (23 de Fevereiro, à 1 da manhã, hora de Lisboa).
Uma vez mais Portugal ficou de fora. No passado dia 30 de Setembro, a comissão de selecção do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual) elegeu o filme de Miguel Gomes, Aquele Querido Mês de Agosto, como concorrente português à categoria de “Melhor Filme Estrangeiro” na 81.ª edição de entrega dos Óscares da Academia.

Sem mais delongas, eis a lista dos nove filmes semifinalistas (por ordem alfabética do título em português, se existir, ou título original):

  • Arráncame la vida, de Roberto Sneider – México (Tear This Heart Out);
  • Ce qu’il faut pour vivre, de Benoît Pilon – Canadá (The Necessities of Life);
  • Der Baader Meinhof Komplex, de Uli Edel – Alemanha (The Baader Meinhof Complex);
  • Maria Larssons eviga ögonblick, de Jan Troell – Suécia (Everlasting Moments);
  • Okuribito, de Yojiro Takita – Japão (Departures);
  • Revanche, de Gotz Spielmann – Áustria;
  • Os Três Macacos, de Nuri Bilge Ceylan – Turquia (Üç maymun / Three Monkeys);
  • A Turma, de Laurent Cantet – França (Entre les murs / The Class);
  • A Valsa com Bashir, de Ari Folman – Israel (Vals Im Bashir / Waltz with Bashir).

Notas:

  • Três dos nove filmes já estrearam em Portugal, e o representante alemão, Der Baader Meinhof Komplex, estreará, em princípio, no próximo dia 29 de Janeiro.
  • Surpresa na exclusão do supernomeado Gomorra, filme italiano realizado por Matteo Garrone, baseado no livro homónimo escrito pelo temerário jornalista Roberto Saviano. Terá sido uma incauta, e bem latina, prova de vida do aparentemente estilhaçado submundo italo-americano, que outrora, como bem sabemos, se encontrava bem infiltrado no show business norte-americano?

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Slumdog, coleccionador de prémios


Ontem (hoje de madrugada), o mais recente filme do psicadélico realizador inglês de Manchester, de 52 anos, Danny Boyle juntou mais 4 à lista de 23 prémios que já havia arrecadado em cerimónias de distinção de filmes estreados durante o ano de 2008.
Com efeito, Slumdog Millionaire foi o grande vencedor da 66.ª edição dos Globos de Ouro, vencendo em todas as categorias para que estava nomeado, evento organizado pela Associação de Imprensa Estrangeira radicada em Hollywood (Hollywood Foreign Press Association), deixando em branco três filmes com 5 nomeações como O Estranho Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button, de David Fincher), Dúvida (Doubt, de John Patrick Shanley), Frost/Nixon (de Ron Howard), assim como os dois filmes a concurso de Clint Eastwood, Gran Torino (1 nomeação) e A Troca (Changeling, 2 nomeações), ou o até agora incensado Milk de Gus Van Sant, que concorria com Sean Penn à categoria de “Melhor Actor – Drama”.
Eis os vencedores, com destaque para o previsível prémio a título póstumo a Heath Ledger, e à imprevisível dupla vitória da bem nutrida Kate Winslet:

Slumdog Millionaire (4 Globos de Ouro / 4 nomeações)
Argumento – Simon Beaufoy
Banda Sonora Original – A. R. Rahman
Filme
Realizador – Danny Boyle


The Wrestler (2 Globos de Ouro / 3 nomeações)
Actor – Mickey Rourke
Canção – Bruce Springsteen, “The Wrestler”
(nota: filme realizado por Darren Aronofsky)

O Cavaleiro das Trevas / The Dark Knight (1 Globo de Ouro / 1 nomeação)
Actor Secundário – Heath Ledger
(nota: filme realizado por Christopher Nolan)

Em Bruges / In Bruges (1 Globo de Ouro / 3 nomeações)
Actor (musical ou comédia) – Colin Farrell
(nota: filme realizado por Martin McDonagh)


The Reader (1 Globo de Ouro / 4 nomeações)
Actriz Secundária – Kate Winslet
(nota: filme realizado por Stephen Daldry)

Revolutionary Road (1 Globo de Ouro / 4 nomeações)
Actriz – Kate Winslet
(nota: filme realizado por Sam Mendes)

Um Dia de Cada Vez / Happy-Go-Lucky (1 Globo de Ouro / 2 nomeações)
Actriz (musical ou comédia) – Sally Hawkins
(nota: filme realizado por Mike Leigh)

Vicky Cristina Barcelona (1 Globo de Ouro / 4 nomeações)
Filme (musical ou comédia)
(nota: filme realizado por Woody Allen)

Outros:

A Valsa com Bashir / Vals Im Bashir (1 Globo de Ouro / 1 nomeação)
Filme Estrangeiro
(nota: filme realizado por Ari Folman)

Wall-E (1 Globo de Ouro / 2 nomeações)
Filme de Animação
(nota: filme realizado por Andrew Stanton)

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Notas:

  • Outros vencedores da noite: a minissérie John Adams venceu 4 Globos de Ouro; a série cómica 30 Rock foi galardoada com 3 Globos de Ouro; e pelo 2.º ano consecutivo Hugh Laurie, no papel do fabuloso médico misantropo (e mis-muitas-coisas) House, perde o Globo de Ouro na categoria “Melhor Actor em Séries de Televisão”, este ano para o meu mui estimado actor irlandês Gabriel Byrne, protagonista da série In Treatment – a medicina interna vencida pela medicina do interior… (rogo-vos, suplico-vos, de forma dramática, de joelhos e usando cilício (se necessário for), por perdão pelo mau gosto do trocadilho);
  • Mais um ano em que os actores originários do Cinema continuam a arrecadar os principais prémios de Televisão: para além do mencionado Gabriel Byrne, e com a honrosa excepção de Tina Faye, tivemos Alec Baldwin, Anna Paquin, Laura Dern, Laura Linney, Paul Giamatti e Tom Wilkinson.
  • Mais uma vez, uma noite sem glamour (parente pobre dos Óscares da Academia), com muito ruído de fundo (talheres, copos, risos e vozes, possíveis contratos celebrados pelo álcool e pelas filas de pó branco, e as bisbilhotices e piadas sarcásticas de pé de orelha do costume) e com prémios, a fazer fé, por enquanto, na crítica, que deixaram muito a desejar.
  • Mickey Rourke, apesar de aparentar continuar transformado num “farrapo humano”, consumido pelas drogas e pelo álcool, conseguiu, embora de forma entrecortada e tartamudeada, sem que aquelas cabeças, normalmente produtoras de eco em eventos destes, se houvessem apercebido, proferir o discurso mais emotivo-dramático da noite, ao falar da sua ruína nos últimos anos, da eterna gratidão pela pessoa que o retirou do poço e da solidão, da profunda solidão que o assalta no momento.
  • Ver aqui a notícia em português, com a listagem completa dos vencedores.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Breaking News

Neste preciso momento neva no Porto.

Adenda [às 10:29]: «Batem leve, levemente,/ como quem chama por mim.» Augusto Gil. E, pronto, ficamo-nos por aqui...

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

A chama que se apaga

Este é dos tais textos que vamos evitando escrever. Quiçá não o devesse mesmo ter escrito, esperando sempre, como espera um admirador, um quase incondicional, um amante arrebatado turvado pela incandescência da paixão, que com o tempo o destinatário dessas admiração, incondicionalidade ou paixão acabe por não nos desiludir e, cumprindo a sua tarefa, seja ela qual for, o alimento da nossa admiração, mantenha ou amplie, ou que pelo menos reponha com a brevidade necessária, o brilho artístico, neste caso literário, que nos ofusca ou um dia nos ofuscou. É essa a esperança do admirador apaixonadamente incondicional, mas há limites.
Falo de Auster, Paul Benjamin. Um homem cuja escrita teve o mérito de passar à primeira no meu crivo estético-literário com as obras de ficção que começou a publicar desde 1985, sublimadas em A Trilogia de Nova Iorque (The New York Trilogy) em 1987 e com continuidade nas restantes até 1999, com Timbuktu, e para não parecer tão severo e manifestar alguma da condescendência de um admirador típico, amplio o intervalo até ao ano de 2002 quando é lançado no mercado editorial O Livro das Ilusões (The Book of Illusions). De lá para cá, publica A Noite do Oráculo (The Oracle Night, 2004), As Loucuras de Brooklyn (o romance austeriano mais atípico; The Brooklyn Follies, 2005), Viagens no Scriptorium (Travels in the Scriptorium, 2006) e Homem na Escuridão (Man in the Dark, 2008), e enreda-se, ainda mais, nas teias da metaficção, no método das caixas chinesas e na narrativa desbastada ou sem atavios, magra, sem qualquer toque de génio, como se tratasse de um conjunto de caracteres despejados para páginas em branco que, por acaso, formam palavras e frases coerentes que, porém, não se ligam a outras frases ou a outras partes do texto.
É óbvio que, enquanto escrevo estas palavras, não me sai da cabeça o seu último romance (o tal que oferecia, ou ainda oferece, o inútil saco de pano assinado) que me partiu o coração tal como a morte de Titus fez ao de Katya – Auster já nem se furta aos clichés, usa-os como muleta, com uma urgência que não se compreende. Que diabo, é este o seu trabalho. Foi esta a profissão que escolheu, como tão bem proferiu no discurso de agradecimento em Oviedo no ano 2006 (Prémio Príncipe das Astúrias). Contar histórias e falar ao interior de cada leitor que ouve, lendo, a sua narração. Se as histórias são alimento e meio de sobrevivência da espécie humana, a falta, ou a perda total, dessa qualidade, por simples desperdício, preguiça, levaria o Homem à inanição intelectual, espiritual, e, por consequência, à morte e ao limiar da sua extinção.
Em Homem na Escuridão é-nos narrada a história de um homem septuagenário que se conta histórias para fazer com que a sua mente divirja das barbaridades que o foram assolando ao longo de décadas: a conturbada vida conjugal, os profundos desgosto e amargura da filha e o diletantismo pré-adulto da neta, que num arroubo deixou a Escola de Cinema em Nova Iorque para se juntar ao dueto familiar que se encontra a remoer o passado no Estado do Vermont. A filha escreve uma biografia sobre a obscura filha mais nova de Nathaniel Hawthorne, Rose e ele recupera das sequelas de um terrível acidente de automóvel no seu quarto escuro, onde engendra as histórias que o distraem da crueldade dos dias do seu quotidiano.
Os ingredientes para uma boa história estão lá. A receita, porém, acaba por estragar ou desperdiçar as propriedades individuais desses ingredientes, retirando-lhes os elementos que adicionados a outros potenciam, por sinergia, a perfeição do produto final.
A sensação que assalta o leitor não podia ser mais desagradável. Qual Tântalo esfaimado impedido de tragar os frutos suspensos à frente dos seus olhos. Embora, aqui, o fruto surja em formas difusas – o que poderia ter sido. Pontas soltas que não se unem. Histórias que ficam por contar. Uma infinidade de possibilidades que poderiam, sem esforço, encher uma meia estante de livros. As ideias estão lá, em bruto, prontas para serem lapidadas, calmamente desenvolvidas, à espera de ganhar o brilho espectral, iridescente e inimitável de uma história bem contada.
O protagonista e a neta, em alternativa de criarem um blogue, passam o seu tempo a assistir a filmes em DVD, em silêncio, com uma atenção crítica que mais tarde é verbalizada em troca de opiniões e pontos de vista. Depois, de forma heteróclita, a neta, assaltada por uma insónia, deita-se na cama do avô e falam da vida e dos filmes que viram. Auster chega ao cúmulo de debitar em papel autênticas recensões cinematográficas e as suas perspectivas sobre filmes de realizadores não-americanos, como Ozu, Renoir ou Satyajit Ray, sem objectivo aparente – ou que eu o tenha conseguido captar – para a história que se conta. Peças desconexas e perfeitamente expurgáveis, e se retiradas contribuiriam para emagrecer a obra como num processo de lipoaspiração – extrair a camada adiposa em excesso.
É apenas no fim do romance em que, perante a hecticidade literária das páginas anteriores, surge algum lirismo ligado a uma narrativa debilmente conexa, que necessitaria de mais páginas, de argumento, adjectivação… em suma, de tutano literário capaz de fazer retinir a campainha estética de um leitor minimamente exigente.

Nas sucessivas entrevistas que deu, Auster confessou que se limitou literalmente a despejar palavras para a sua máquina de escrever e que, entre a digressão mundial para a promoção do seu mais que zurzido filme – A Vida Interior de Martin Frost (The Inner Life of Martin Frost, 2007) –, só teve tempo de largar o manuscrito no seu editor americano sem mais considerações.
Como dizia Tom LeClair no The New York Times Book Review de 19 de Setembro de 2008:

«Depois, digamos, de 10 livros, os romancistas talvez devessem ser reexaminados, tal como acontece com os cidadãos mais idosos, cuja maior propensão para acidentes os obriga a renovar a carta de condução. Os veteranos de guerras literárias deveriam submeter, de forma anónima, um novo manuscrito aos agentes literários. Sobre Homem na Escuridão, suponho que diriam, “imitação de Paul Auster de terceira categoria.” Depois, o autor poderia decidir em acelerar a escrita de uma imitação de primeira categoria dos seus trabalhos passados de primeira categoria. Ou poderia escrever uma ofensiva de quarta categoria sobre os agentes literários.» [tradução: AMC]

Para finalizar, gostaria de deixar aqui um apelo que, com as estadas e curtas digressões em Portugal, o próprio Auster possivelmente poderia ler sem grandes dificuldades, deixando de lado a preguiça natural dos anglófonos em aprender qualquer palavra de outro idioma:

Benjamin, por favor, renova a tua carta.