No próximo Natal, estreia mundial da 7.ª longa-metragem do realizador norte-americano David Fincher (n. 1962).
Filme baseado num conto de F. Scott Fitzgerald (1896-1940):
O estanho caso de Benjamin Button
I
I
Tão distante no tempo como 1860 o mais correcto era nascer-se em casa. Actualmente, dizem-me, os eminentes deuses da medicina decretaram que o primeiro choro dos nascituros deverá ser articulado num ambiente anestésico de um hospital, de preferência num que esteja na moda. Assim, o jovem casal Roger Button encontrava-se cinquenta anos à frente da moda quando decidiram, num dia de Verão de 1860, que o seu primeiro bebé deveria nascer num hospital. Porém, nunca saberemos se este anacronismo teve alguma influência nesta história admirável que vos irei contar.
Eu apenas irei narrar-vos o ocorrido e deixar-vos-ei julgá-lo por vós mesmos.
Os Roger Buttons dispunham de uma posição invejável, tanto em termos sociais como financeiros, na pré-bélica Baltimore. Eles eram parentes da família Esta e da família Aquela, que, como todos os sulistas sabiam, permitia-lhes pertencer à enorme aristocracia que cobria largamente a Confederação. Esta era a sua primeira experiência com esse costume encantador de ter bebés – o Sr. Button estava naturalmente nervoso. Ele ansiava por um rapaz para que este mais tarde pudesse ser enviado para a Universidade de Yale no Connecticut, onde ele próprio fora durante quatro anos conhecido pela alcunha mais ou menos óbvia de “Cuff*.”
Na manhã de Setembro consagrada ao grande evento, ele acordou nervoso às seis horas, vestiu-se, envergando uma irrepreensível indumentária e embrenhou-se apressadamente pelas ruas de Baltimore que o conduziam ao hospital, na ânsia de avaliar se a escuridão da noite haveria acolhido no seu seio uma vida nova.
Quando chegou a aproximadamente cem metros do Hospital Privado do Maryland para Senhoras e Cavalheiros, ele viu o Dr. Keene, o médico da família, a descer a escadaria da frente, esfregando as suas mãos num movimento típico de ablução – como se todos os médicos tivessem de cumprir este ritual por princípios éticos da sua profissão.
O Sr. Roger Button, o presidente da Roger Button & Cia., todo o tipo de ferragens, desatou a correr em direcção ao Dr. Keene com muito menos dignidade do que a que seria de esperar de um cavalheiro do sul pertencente àquele período pitoresco. «Doutor Keene!» chamou. «Ó Doutor Keene!»
O médico ouviu-o, voltou-se e ficou à espera, tinha posto uma expressão estranha na sua antipática e medicinal cara à medida que Button se ia aproximando.
«O que se passou?» perguntou Button enquanto se acercava do médico numa corrida de perder o fôlego. «Como foi? Como está ela? Um rapaz? Ou…? O que é…»
«Ganhe juízo!» disse de forma veemente o médico, aparentando encontrar-se irritado.
«Já nasceu o bebé?” suplicou Button.
O Dr. Keene franziu o cenho. «Porquê, sim, suponho que sim – dadas as circunstâncias». Fitando, de novo, Button de uma forma estranha.
«A minha mulher está bem?»
«Sim.»
«É menino ou menina?»
«Olhe lá!» gritou Dr. Keene num culminar de perfeita irritação, «eu sugiro-lhe que vá e veja por si próprio. É chocante!» Disse-o, cuspindo a última palavra em quase uma só sílaba e virou-lhe as costas murmurando: «Você imagina o que um caso destes irá fazer à minha reputação profissional? Outro deste género arruinar-me-ia – arruinaria qualquer pessoa.»
«Mas o que se passa?” perguntou Button aterrorizado. «Trigémeos?»
«Não, não são trigémeos!» respondeu o médico de forma cortante. «Sabe o que mais? Pode ir vê-lo pelos seus próprios olhos. E trate de encontrar outro médico. Eu trouxe-o a este mundo, meu rapaz, e fui médico da sua família durante quarenta anos, mas terminei a minha colaboração consigo! Eu nunca mais o quero ver a si ou a algum dos seus parentes! Adeus!»
Voltou-se bruscamente e sem mais uma palavra trepou para o seu cabriolé que o esperava no empedrado, afastando-se daquele local de uma forma brusca.
Button ficou especado no passeio, atónito e a tremer dos pés à cabeça. Que horrível desgraça poderia haver ocorrido? De repente perdeu toda a vontade de entrar no Hospital Privado do Maryland para Senhoras e Cavalheiros – foi então com a maior das dificuldades que, momentos depois, ele se obrigou a subir as escadas exteriores e a entrar pela porta principal.
Na opaca obscuridade da recepção entreviu uma enfermeira sentada atrás de uma secretária. Engolindo a sua vergonha, Button aproximou-se dela.
«Bom dia» proferiu ela, olhando-o de uma forma agradável.
«Bom dia. E-Eu sou o Sr. Button.»
Ao ouvir isto um esgar de absoluto terror abateu-se sobre a face da rapariga. Ela levantou-se e parecia prestes a iniciar um voo pela recepção, aparentando uma extrema dificuldade para se conseguir controlar.
«Quero ver o meu filho» disse Button.
A enfermeira deu um pequeno grito. «Lá em cima. Está lá em cima. Vá… para cima!...»
Ela mostrou a direcção a seguir e Button, ensopado em suores frios, voltou-se de forma vacilante e começou a subir as escadas que davam acesso ao segundo piso. No andar de cima dirigiu-se a outra enfermeira que se aproximou dele, com um bacia na mão. «Eu sou o Sr. Button,» tentou ele articular. «Eu quero ver o meu…»
A bacia caiu no chão com um estrondo e rolou em direcção às escadas. Iniciou uma descida metódica, batendo ruidosamente em cada degrau, como se partilhasse do terror geral que este cavalheiro provocara.
«Eu quero ver o meu filho!» Button quase vociferou. Encontrava-se à beira do colapso.
Com o último estrondo, a bacia alcançou o primeiro piso. A enfermeira recuperou o seu controlo e atirou a Button um vigoroso olhar de desprezo.
«Tudo bem, Sr. Button» concordou ela numa voz sussurrante. «Muito bem!... Mas se você… soubesse… em que estado isto nos pôs a todos esta manhã! É perfeitamente chocante! Depois disto… o hospital jamais voltará a recuperar um mínimo da sua anterior reputação.»
«Despache-se!» gritou ele numa voz rouca. «Não suporto esta coisa!»
«Venha então por aqui, Sr. Button.»
Ele arrastou-se atrás dela. No fundo de um longo corredor chegaram a um quarto de onde emanava uma variedade de choros – de facto, um quarto em que, por conversas posteriores, passaria a ser conhecido como o “quarto do pranto”. Eles entraram.
«Bem,» arquejou Button, «qual é o meu?»
«Ali!» disse a enfermeira.
Os olhos de Button seguiram o dedo indicador da enfermeira e isto foi o que ele viu: embrulhado num enorme cobertor branco, e parcialmente constrangido num dos berços, ali se sentava um velho aparentando ter uma idade à volta dos setenta anos. O seu cabelo ralo era quase branco e do seu queixo caía uma longa barba cor de fumo, que abanava absurdamente para a frente e para trás, movida pela brisa que vinha da janela. Ele olhou para Button com uns olhos baços e esmorecidos onde se escondia uma pergunta confusa.
«Estarei louco?» atroou Button, enquanto o seu terror se ia transformando em raiva. «Será isto tudo uma terrível partida de hospital?»
«Isto, para nós, não se parece nada com uma partida» retorquiu a enfermeira de forma severa. «E nada sei sobre se está doido ou não – mas este é de certeza o seu filho.»
Os suores frios redobraram na testa de Button. Ele fechou os olhos e depois, abrindo-os, olhou de novo. Não havia engano nenhum – ele estava a olhar para um homem com três vintenas e meia de anos de idade – um… bebé… com três vintenas e meia… um bebé cujos pés estavam pendurados do lado de fora do berço em que repousava.
Por uns momentos, o velho olhou placidamente para um e para outro e, de repente, falou numa voz estilhaçada e envelhecida. «Você é o meu pai?» perguntou.
Button e a enfermeira agitaram-se de uma forma violenta.
«Porque se o for» prosseguiu o velho queixando-se enfaticamente, «eu pretendo que me retire deste lugar – ou, pelo menos, que os obrigue a darem-me um berço mais confortável.»
«Em nome de Deus, de onde veio? Quem é o senhor?» clamou Button freneticamente.
«Não lhe posso dizer… de forma exacta… quem sou eu» replicou o chorão impertinente, «porque apenas nasci há umas horas – mas o meu último nome é certamente Button.»
«O senhor está a mentir! O senhor é um impostor!»
O velho virou-se, pacientemente, para a enfermeira. «Que maneira engraçada de dar as boas-vindas a um recém-nascido» queixou-se numa voz fraca. «Diga-lhe que ele está enganado, porque não o diz?»
«Está enganado, Sr. Buttton,» disse a enfermeira de forma severa. «Este é o seu filho e terá de se esforçar o melhor que puder. É que nós iremos pedir-lhe que o leve para casa consigo o mais cedo possível, algures durante este dia.»
«Casa?» repetiu incredulamente Button.
«Sim, nós não o podemos ter aqui. Não podemos mesmo, o senhor sabe?»
«Fico muito contente por isso,» queixou-se o velho. «Este não é um bom local para manter um miúdo de gostos sóbrios. Com toda esta gritaria e choradeira, eu não pude dormir absolutamente nada. Pedi alguma coisa para comer» – aqui a sua voz subiu para um tom estridente de protesto – «e eles trouxeram-me um biberão de leite!»
Button afundou-se numa cadeira que estava próxima do seu filho e tapou a cara com as mãos. «Meu Deus!» murmurou num êxtase de horror. «O que irão as pessoas dizer? O que terei de fazer?»
«Tem de o levar para casa» insistiu a enfermeira – «imediatamente!»
Aos olhos do homem torturado formou-se com uma terrível clareza uma imagem grotesca – o retrato dele próprio caminhando pelas ruas apinhadas da cidade com esta horrenda aparição a seu lado a acossá-lo.
«Não posso. Não posso» murmurou.
Pessoas parariam para lhe falar e o que é que ele iria dizer? Teria de apresentar isto – este septuagenário: «Este é o meu filho, nascido bem cedo nesta madrugada.» A seguir o velho enrolar-se-ia no seu cobertor e eles caminhariam a passo pesado, passando pelas lojas apinhadas, pelo mercado de escravos – por um instante obscuro Button desejou que o seu filho fosse negro – passando pelas casas luxuosas da zona residencial, pelo lar de idosos…
«Ande lá! Mexa-se sozinho» ordenou a enfermeira.
«Vê isto» anunciou de súbito o velho, «se você julga que eu vou para casa neste cobertor, está inteiramente enganada.»
«Os bebés têm sempre cobertores.»
Com um estalido malicioso o velho exibiu uns cueiros pequenos e brancos. «Veja!» tremia-lhe a voz. «Isto… foi aquilo que eles me arranjaram.»
«Os bebés usam sempre isso» disse a enfermeira de forma afectada.
«Bem» disse o velho, «este bebé dentro de dois minutos não vai é usar nada. Este cobertor pica-me. Eles podiam, pelo menos, ter-me dado um lençol.»
«Deixe-o estar! Mantenha-se coberto!» disse apressadamente Button. E voltando-se para a enfermeira perguntou-lhe: «Que poderei fazer?»
«Vá à cidade e compre algumas roupas para o seu filho.»
A voz do filho de Button perseguiu-o até lá baixo à recepção: «E uma bengala, pai. Eu quero ter uma bengala.»
Ao sair, Button bateu violentamente com a porta exterior…
[…]
Eu apenas irei narrar-vos o ocorrido e deixar-vos-ei julgá-lo por vós mesmos.
Os Roger Buttons dispunham de uma posição invejável, tanto em termos sociais como financeiros, na pré-bélica Baltimore. Eles eram parentes da família Esta e da família Aquela, que, como todos os sulistas sabiam, permitia-lhes pertencer à enorme aristocracia que cobria largamente a Confederação. Esta era a sua primeira experiência com esse costume encantador de ter bebés – o Sr. Button estava naturalmente nervoso. Ele ansiava por um rapaz para que este mais tarde pudesse ser enviado para a Universidade de Yale no Connecticut, onde ele próprio fora durante quatro anos conhecido pela alcunha mais ou menos óbvia de “Cuff*.”
Na manhã de Setembro consagrada ao grande evento, ele acordou nervoso às seis horas, vestiu-se, envergando uma irrepreensível indumentária e embrenhou-se apressadamente pelas ruas de Baltimore que o conduziam ao hospital, na ânsia de avaliar se a escuridão da noite haveria acolhido no seu seio uma vida nova.
Quando chegou a aproximadamente cem metros do Hospital Privado do Maryland para Senhoras e Cavalheiros, ele viu o Dr. Keene, o médico da família, a descer a escadaria da frente, esfregando as suas mãos num movimento típico de ablução – como se todos os médicos tivessem de cumprir este ritual por princípios éticos da sua profissão.
O Sr. Roger Button, o presidente da Roger Button & Cia., todo o tipo de ferragens, desatou a correr em direcção ao Dr. Keene com muito menos dignidade do que a que seria de esperar de um cavalheiro do sul pertencente àquele período pitoresco. «Doutor Keene!» chamou. «Ó Doutor Keene!»
O médico ouviu-o, voltou-se e ficou à espera, tinha posto uma expressão estranha na sua antipática e medicinal cara à medida que Button se ia aproximando.
«O que se passou?» perguntou Button enquanto se acercava do médico numa corrida de perder o fôlego. «Como foi? Como está ela? Um rapaz? Ou…? O que é…»
«Ganhe juízo!» disse de forma veemente o médico, aparentando encontrar-se irritado.
«Já nasceu o bebé?” suplicou Button.
O Dr. Keene franziu o cenho. «Porquê, sim, suponho que sim – dadas as circunstâncias». Fitando, de novo, Button de uma forma estranha.
«A minha mulher está bem?»
«Sim.»
«É menino ou menina?»
«Olhe lá!» gritou Dr. Keene num culminar de perfeita irritação, «eu sugiro-lhe que vá e veja por si próprio. É chocante!» Disse-o, cuspindo a última palavra em quase uma só sílaba e virou-lhe as costas murmurando: «Você imagina o que um caso destes irá fazer à minha reputação profissional? Outro deste género arruinar-me-ia – arruinaria qualquer pessoa.»
«Mas o que se passa?” perguntou Button aterrorizado. «Trigémeos?»
«Não, não são trigémeos!» respondeu o médico de forma cortante. «Sabe o que mais? Pode ir vê-lo pelos seus próprios olhos. E trate de encontrar outro médico. Eu trouxe-o a este mundo, meu rapaz, e fui médico da sua família durante quarenta anos, mas terminei a minha colaboração consigo! Eu nunca mais o quero ver a si ou a algum dos seus parentes! Adeus!»
Voltou-se bruscamente e sem mais uma palavra trepou para o seu cabriolé que o esperava no empedrado, afastando-se daquele local de uma forma brusca.
Button ficou especado no passeio, atónito e a tremer dos pés à cabeça. Que horrível desgraça poderia haver ocorrido? De repente perdeu toda a vontade de entrar no Hospital Privado do Maryland para Senhoras e Cavalheiros – foi então com a maior das dificuldades que, momentos depois, ele se obrigou a subir as escadas exteriores e a entrar pela porta principal.
Na opaca obscuridade da recepção entreviu uma enfermeira sentada atrás de uma secretária. Engolindo a sua vergonha, Button aproximou-se dela.
«Bom dia» proferiu ela, olhando-o de uma forma agradável.
«Bom dia. E-Eu sou o Sr. Button.»
Ao ouvir isto um esgar de absoluto terror abateu-se sobre a face da rapariga. Ela levantou-se e parecia prestes a iniciar um voo pela recepção, aparentando uma extrema dificuldade para se conseguir controlar.
«Quero ver o meu filho» disse Button.
A enfermeira deu um pequeno grito. «Lá em cima. Está lá em cima. Vá… para cima!...»
Ela mostrou a direcção a seguir e Button, ensopado em suores frios, voltou-se de forma vacilante e começou a subir as escadas que davam acesso ao segundo piso. No andar de cima dirigiu-se a outra enfermeira que se aproximou dele, com um bacia na mão. «Eu sou o Sr. Button,» tentou ele articular. «Eu quero ver o meu…»
A bacia caiu no chão com um estrondo e rolou em direcção às escadas. Iniciou uma descida metódica, batendo ruidosamente em cada degrau, como se partilhasse do terror geral que este cavalheiro provocara.
«Eu quero ver o meu filho!» Button quase vociferou. Encontrava-se à beira do colapso.
Com o último estrondo, a bacia alcançou o primeiro piso. A enfermeira recuperou o seu controlo e atirou a Button um vigoroso olhar de desprezo.
«Tudo bem, Sr. Button» concordou ela numa voz sussurrante. «Muito bem!... Mas se você… soubesse… em que estado isto nos pôs a todos esta manhã! É perfeitamente chocante! Depois disto… o hospital jamais voltará a recuperar um mínimo da sua anterior reputação.»
«Despache-se!» gritou ele numa voz rouca. «Não suporto esta coisa!»
«Venha então por aqui, Sr. Button.»
Ele arrastou-se atrás dela. No fundo de um longo corredor chegaram a um quarto de onde emanava uma variedade de choros – de facto, um quarto em que, por conversas posteriores, passaria a ser conhecido como o “quarto do pranto”. Eles entraram.
«Bem,» arquejou Button, «qual é o meu?»
«Ali!» disse a enfermeira.
Os olhos de Button seguiram o dedo indicador da enfermeira e isto foi o que ele viu: embrulhado num enorme cobertor branco, e parcialmente constrangido num dos berços, ali se sentava um velho aparentando ter uma idade à volta dos setenta anos. O seu cabelo ralo era quase branco e do seu queixo caía uma longa barba cor de fumo, que abanava absurdamente para a frente e para trás, movida pela brisa que vinha da janela. Ele olhou para Button com uns olhos baços e esmorecidos onde se escondia uma pergunta confusa.
«Estarei louco?» atroou Button, enquanto o seu terror se ia transformando em raiva. «Será isto tudo uma terrível partida de hospital?»
«Isto, para nós, não se parece nada com uma partida» retorquiu a enfermeira de forma severa. «E nada sei sobre se está doido ou não – mas este é de certeza o seu filho.»
Os suores frios redobraram na testa de Button. Ele fechou os olhos e depois, abrindo-os, olhou de novo. Não havia engano nenhum – ele estava a olhar para um homem com três vintenas e meia de anos de idade – um… bebé… com três vintenas e meia… um bebé cujos pés estavam pendurados do lado de fora do berço em que repousava.
Por uns momentos, o velho olhou placidamente para um e para outro e, de repente, falou numa voz estilhaçada e envelhecida. «Você é o meu pai?» perguntou.
Button e a enfermeira agitaram-se de uma forma violenta.
«Porque se o for» prosseguiu o velho queixando-se enfaticamente, «eu pretendo que me retire deste lugar – ou, pelo menos, que os obrigue a darem-me um berço mais confortável.»
«Em nome de Deus, de onde veio? Quem é o senhor?» clamou Button freneticamente.
«Não lhe posso dizer… de forma exacta… quem sou eu» replicou o chorão impertinente, «porque apenas nasci há umas horas – mas o meu último nome é certamente Button.»
«O senhor está a mentir! O senhor é um impostor!»
O velho virou-se, pacientemente, para a enfermeira. «Que maneira engraçada de dar as boas-vindas a um recém-nascido» queixou-se numa voz fraca. «Diga-lhe que ele está enganado, porque não o diz?»
«Está enganado, Sr. Buttton,» disse a enfermeira de forma severa. «Este é o seu filho e terá de se esforçar o melhor que puder. É que nós iremos pedir-lhe que o leve para casa consigo o mais cedo possível, algures durante este dia.»
«Casa?» repetiu incredulamente Button.
«Sim, nós não o podemos ter aqui. Não podemos mesmo, o senhor sabe?»
«Fico muito contente por isso,» queixou-se o velho. «Este não é um bom local para manter um miúdo de gostos sóbrios. Com toda esta gritaria e choradeira, eu não pude dormir absolutamente nada. Pedi alguma coisa para comer» – aqui a sua voz subiu para um tom estridente de protesto – «e eles trouxeram-me um biberão de leite!»
Button afundou-se numa cadeira que estava próxima do seu filho e tapou a cara com as mãos. «Meu Deus!» murmurou num êxtase de horror. «O que irão as pessoas dizer? O que terei de fazer?»
«Tem de o levar para casa» insistiu a enfermeira – «imediatamente!»
Aos olhos do homem torturado formou-se com uma terrível clareza uma imagem grotesca – o retrato dele próprio caminhando pelas ruas apinhadas da cidade com esta horrenda aparição a seu lado a acossá-lo.
«Não posso. Não posso» murmurou.
Pessoas parariam para lhe falar e o que é que ele iria dizer? Teria de apresentar isto – este septuagenário: «Este é o meu filho, nascido bem cedo nesta madrugada.» A seguir o velho enrolar-se-ia no seu cobertor e eles caminhariam a passo pesado, passando pelas lojas apinhadas, pelo mercado de escravos – por um instante obscuro Button desejou que o seu filho fosse negro – passando pelas casas luxuosas da zona residencial, pelo lar de idosos…
«Ande lá! Mexa-se sozinho» ordenou a enfermeira.
«Vê isto» anunciou de súbito o velho, «se você julga que eu vou para casa neste cobertor, está inteiramente enganada.»
«Os bebés têm sempre cobertores.»
Com um estalido malicioso o velho exibiu uns cueiros pequenos e brancos. «Veja!» tremia-lhe a voz. «Isto… foi aquilo que eles me arranjaram.»
«Os bebés usam sempre isso» disse a enfermeira de forma afectada.
«Bem» disse o velho, «este bebé dentro de dois minutos não vai é usar nada. Este cobertor pica-me. Eles podiam, pelo menos, ter-me dado um lençol.»
«Deixe-o estar! Mantenha-se coberto!» disse apressadamente Button. E voltando-se para a enfermeira perguntou-lhe: «Que poderei fazer?»
«Vá à cidade e compre algumas roupas para o seu filho.»
A voz do filho de Button perseguiu-o até lá baixo à recepção: «E uma bengala, pai. Eu quero ter uma bengala.»
Ao sair, Button bateu violentamente com a porta exterior…
[…]
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1.º capítulo do conto “The Curious Case of Benjamin Button” (1922), de F. Scott Fitzgerald, integrado no mesmo ano na colectânea de contos Tales of the Jazz Age [tradução livre: AMC, 2008]
Nota: *a alcunha aposta a Button de «Cuff» pelos seus colegas da famosa Universidade de Yale (Estado do Connecticut, situado no Norte, na denominada Nova Inglaterra) deriva, certamente, do significado do seu apelido, “Button” significa “botão” e “cuff” significa punho de camisa, de onde “cufflinks” são os tradicionais botões de punho usados pelas classes altas. Mas esta alcunha também poderá ser entendida, à luz da época histórica em que decorre a acção do conto – na vizinhança da Guerra da Secessão ou da Guerra Civil Americana, que teria o seu início menos de um ano depois, em Abril de 1861, apenas terminando em Abril 1865 – e considerando o protagonista como um “sulista” – aliás, como resulta do próprio texto – filho do Estado do Maryland – embora, em rigor, este Estado não fosse considerado um dos secessionistas, a esmagadora maioria da população juntou-se ao exército dos confederados. Assim, a expressão “cuff”, com o seu vasto campo semântico, poderia designar as grilhetas com que os proprietários sulistas amarravam os seus escravos.
1.º capítulo do conto “The Curious Case of Benjamin Button” (1922), de F. Scott Fitzgerald, integrado no mesmo ano na colectânea de contos Tales of the Jazz Age [tradução livre: AMC, 2008]
Nota: *a alcunha aposta a Button de «Cuff» pelos seus colegas da famosa Universidade de Yale (Estado do Connecticut, situado no Norte, na denominada Nova Inglaterra) deriva, certamente, do significado do seu apelido, “Button” significa “botão” e “cuff” significa punho de camisa, de onde “cufflinks” são os tradicionais botões de punho usados pelas classes altas. Mas esta alcunha também poderá ser entendida, à luz da época histórica em que decorre a acção do conto – na vizinhança da Guerra da Secessão ou da Guerra Civil Americana, que teria o seu início menos de um ano depois, em Abril de 1861, apenas terminando em Abril 1865 – e considerando o protagonista como um “sulista” – aliás, como resulta do próprio texto – filho do Estado do Maryland – embora, em rigor, este Estado não fosse considerado um dos secessionistas, a esmagadora maioria da população juntou-se ao exército dos confederados. Assim, a expressão “cuff”, com o seu vasto campo semântico, poderia designar as grilhetas com que os proprietários sulistas amarravam os seus escravos.
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