Beirute, Líbano, 1975, eclodiu a Guerra Civil na até então conhecida suíça do médio oriente. A cidade ficou dividia em duas zonas: a oriental dominada pelas milícias cristãs e a ocidental pela facção muçulmana dominada pelos sírios e refugiados palestinianos.
Uma amizade subsiste ao conflito: George e Bassam (o narrador da história), os adolescentes protagonistas do romance, que se definem como rufias no centro de uma zona de guerra:
«A guerra é para os tugues. As motocicletas também são para os tugues e para os adolescentes cabeludos como nós, com armas na barriga e gasóleo roubado no depósito, sem destino certo.» (pp. 14-15)
«Andámos sem rumo, como pedintes e ladrões, como árabes lascivos de cabelo encaracolado e camisas abertas com o maço de Marlboro preso nas mangas enroladas, refugos da escola, niilistas implacáveis com armas, mau hálito e calças de ganga compridas, americanas.» (p. 15)
Sob um fundo de destruição, barbaridade e de terror, Hage constrói uma narrativa equilibrada, muitas vezes cómica e irónica que funciona como válvula de escape à tensão provocada por uma prosa necessariamente cruel e brutal na descrição das atrocidades perpetradas, das práticas de tortura e de um povo à beira da ruína – leia-se como exemplo da insanidade geral provocada pelo conflito, o grotesco massacre dos cães vadios despoletado por uma mordidela de um chihuahua a um outrora famoso advogado que a guerra desempregou, o Sr. Samir:
«Estão a matar os cães! As palavras dos cristãos corriam de varanda em varanda. Dois jipes que transportavam sete milicianos cercaram os cães. O massacre dos cães! A chacina dos cães. Uma cadela, galga afegã, foi executada por traição, enquanto a sua adorada dona se encontrava, em Paris, com as suas quatro patas numa cama de lençóis de seda, dando apoio ao seu amante secreto, Pierre, um pintor francês, nas suas diligências artísticas. Um cocker spaniel foi perseguido por um atacante gordo, enquanto a sua mamã comprava filet mignon nos Campos Elísios para um serão com vinho e debuxada. Um pastor alemão foi chacinado como uma ovelha numa história de lobos, enquanto os seus pais adoptivos bebiam cerveja, sentados a uma mesa comprida num bar europeu, repleto de homens a cantar canções bávaras. O chihuahua conseguiu escapar duas vezes devido ao seu diminuto tamanho, mas foi finalmente fuzilado à queima-roupa, debaixo de um carro, enquanto a sua mãe discutia, em Veneza, a origem da seda num salão chique onde se tomavam espressos. O líder de três patas, um órfão, morreu sozinho, no cimo de uma montanha de lixo, apoiado numa peça metálica, numas latas de hummus vazias e uma caixa de detergente belga.» (pp. 65-66)
Roma, Beirute e Paris. Três cidades que compõem as três partes em que se subdivide o romance. Beirute entre dois palcos onde se escreveram as páginas mais negras da História universal, em nome da religião, da raça ou da simples demarcação de fronteiras. O Corso montado no seu cavalo branco, o nazismo, o império de Roma, os cruzados…
Como a Raiva ao Vento não é uma obra de espionagem, um relato de guerra ou um romance histórico, é sobretudo uma narrativa sobre a inocência prematuramente perdida, que não foge ao lirismo do amor fraterno, da dor pungente da traição; é um ensaio sobre a perda, a solidão e o desamparo, sobre o egoísmo imanente a uma civilização que se degrada em torno do poder; e é, sobretudo, um relato vívido sobre o desencanto dessa descoberta, embora o autor, com toda a sua sagacidade e a sua destreza literária, deixe um sinal de esperança na réstia de inocência que permanece cá dentro, apesar das atrocidades, materializada na narrativa através dos fabulosos pueris e burlescos devaneios de Bassam.
Como a Raiva ao Vento é um romance poderoso, de leitura compulsiva e, certamente, daqueles cuja experiência de leitura perdurará por muito tempo na memória de quem faz da Literatura o seu principal objecto de distracção. É o primeiro romance de Rawi Hage (n. 1964)...
Classificação: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica:
Rawi Hage, Como a Raiva ao Vento. Porto: Civilização, Junho de 2008, 284 pp. (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz; obra original: De Niro’s Game, 2006).
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