quarta-feira, 25 de junho de 2008

O Jogo de De Niro

Foi talvez pela cacofonia que resultaria da tradução literal do título da obra de Rawi Hage – por ela recentemente vencedor do IMPAC 2008 – que o editor português optou pelo título Como a Raiva ao Vento. Não me vou alongar pelas necessidade e pertinência da alteração, mas revelar o significado do título em inglês obrigar-me-ia a introduzir no texto, com direito a destaque, uma advertência sobre a possibilidade de, com as curtas palavras que irei escrever, revelar parte do enredo, o sal que tempera em medidas certeiras esta excelente obra. Porém, um tiro menos certeiro (neste caso seria mais afortunado), propositado ou não, do autor, ao desviar de Walken, de autoria ciminiana, o protagonismo do acto para De Niro, a alcunha de George que nos é dada a conhecer no desenvolvimento da obra.
Beirute, Líbano, 1975, eclodiu a Guerra Civil na até então conhecida suíça do médio oriente. A cidade ficou dividia em duas zonas: a oriental dominada pelas milícias cristãs e a ocidental pela facção muçulmana dominada pelos sírios e refugiados palestinianos.
Uma amizade subsiste ao conflito: George e Bassam (o narrador da história), os adolescentes protagonistas do romance, que se definem como rufias no centro de uma zona de guerra:

«A guerra é para os tugues. As motocicletas também são para os tugues e para os adolescentes cabeludos como nós, com armas na barriga e gasóleo roubado no depósito, sem destino certo.» (pp. 14-15)

Ambos vagueavam pelas ruas bombardeadas de Beirute, atulhadas de lixo, por onde perambulavam milhares de cães e gatos abandonados pelos que tiveram a sorte de fugir do país para continuar as suas vidas luxuosas em França. Jovens órfãos feitos adultos à força:

«Andámos sem rumo, como pedintes e ladrões, como árabes lascivos de cabelo encaracolado e camisas abertas com o maço de Marlboro preso nas mangas enroladas, refugos da escola, niilistas implacáveis com armas, mau hálito e calças de ganga compridas, americanas.» (p. 15)

Bassam é manobrador de um guincho no porto da cidade, George toma conta de uma casa de máquinas electrónicas de póquer controlada pela milícia cristã, onde os miseráveis enterravam a sua fortuna, as jóias e terrenos da família, as roupas e o futuro dos próprios filhos. Bassam convence George a abandonar o país, elaborando um esquema de viciação das máquinas. Este é ponto a partir do qual o destino de ambos – até então pretendida e efectivamente comum, como dois irmãos sangue, amigos que se conhecem desde a infância – chega a uma encruzilhada, e aquele bifurca-se, ambos terão de seguir por caminhos diferentes. George fica, tem de ficar, é-lhe solicitada a entrada para a milícia, vogando nas suas mentes a eventual descoberta do esquema fraudulento pelo gerente do estabelecimento, o terrível miliciano Abu Nará, como a causa imediata do alistamento compulsivo e de uma separação progressiva, impiedosa, que se irá revelar como fatal. Chega-se ao tal ponto viragem camusiano, a curta viagem, a percepção, da existência anódina e mecanizada entre os escombros da civilização para a tomada de consciência da solidão e da indiferença, do Homem só com o mundo, crescendo um sentimento de desapego pela vida – aliás, Camus é explicitamente citado na obra através do seu memorável O Estrangeiro (L’Étranger, 1942) e de forma subliminar a trilogia do absurdo de que aquele romance faz parte.

Sob um fundo de destruição, barbaridade e de terror, Hage constrói uma narrativa equilibrada, muitas vezes cómica e irónica que funciona como válvula de escape à tensão provocada por uma prosa necessariamente cruel e brutal na descrição das atrocidades perpetradas, das práticas de tortura e de um povo à beira da ruína – leia-se como exemplo da insanidade geral provocada pelo conflito, o grotesco massacre dos cães vadios despoletado por uma mordidela de um chihuahua a um outrora famoso advogado que a guerra desempregou, o Sr. Samir:

«Estão a matar os cães! As palavras dos cristãos corriam de varanda em varanda. Dois jipes que transportavam sete milicianos cercaram os cães. O massacre dos cães! A chacina dos cães. Uma cadela, galga afegã, foi executada por traição, enquanto a sua adorada dona se encontrava, em Paris, com as suas quatro patas numa cama de lençóis de seda, dando apoio ao seu amante secreto, Pierre, um pintor francês, nas suas diligências artísticas. Um cocker spaniel foi perseguido por um atacante gordo, enquanto a sua mamã comprava filet mignon nos Campos Elísios para um serão com vinho e debuxada. Um pastor alemão foi chacinado como uma ovelha numa história de lobos, enquanto os seus pais adoptivos bebiam cerveja, sentados a uma mesa comprida num bar europeu, repleto de homens a cantar canções bávaras. O chihuahua conseguiu escapar duas vezes devido ao seu diminuto tamanho, mas foi finalmente fuzilado à queima-roupa, debaixo de um carro, enquanto a sua mãe discutia, em Veneza, a origem da seda num salão chique onde se tomavam espressos. O líder de três patas, um órfão, morreu sozinho, no cimo de uma montanha de lixo, apoiado numa peça metálica, numas latas de hummus vazias e uma caixa de detergente belga.» (pp. 65-66)


Roma, Beirute e Paris. Três cidades que compõem as três partes em que se subdivide o romance. Beirute entre dois palcos onde se escreveram as páginas mais negras da História universal, em nome da religião, da raça ou da simples demarcação de fronteiras. O Corso montado no seu cavalo branco, o nazismo, o império de Roma, os cruzados…
Como a Raiva ao Vento não é uma obra de espionagem, um relato de guerra ou um romance histórico, é sobretudo uma narrativa sobre a inocência prematuramente perdida, que não foge ao lirismo do amor fraterno, da dor pungente da traição; é um ensaio sobre a perda, a solidão e o desamparo, sobre o egoísmo imanente a uma civilização que se degrada em torno do poder; e é, sobretudo, um relato vívido sobre o desencanto dessa descoberta, embora o autor, com toda a sua sagacidade e a sua destreza literária, deixe um sinal de esperança na réstia de inocência que permanece cá dentro, apesar das atrocidades, materializada na narrativa através dos fabulosos pueris e burlescos devaneios de Bassam.

Como a Raiva ao Vento é um romance poderoso, de leitura compulsiva e, certamente, daqueles cuja experiência de leitura perdurará por muito tempo na memória de quem faz da Literatura o seu principal objecto de distracção. É o primeiro romance de Rawi Hage (n. 1964)...

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Rawi Hage
, Como a Raiva ao Vento. Porto: Civilização, Junho de 2008, 284 pp. (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz; obra original: De Niro’s Game, 2006).

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