Há muito que o mercado editorial português vive momentos agitados, potenciados não só pelo aumento exponencial do número de livros publicados por dia, muitas vezes desfasados da realidade leitora nacional, mas também pela revolução motivada pelas fusões, aquisições e associações de editoras. Nós, do lado de cá, vamos assistindo compassivamente.
Pressente-se no ar, pelo agitar de águas que vai muito além da pedrada no charco, um cheiro pestilento que anuncia a insalubridade. E se o meio editorial nacional até aqui pudesse ser comparado a um atoleiro bafiento que resistia paredes meias ou às portas das piramidais construções de um progresso voraginoso, o tratamento que lhe foi imposto ultrapassou e muito a reciclagem dos resíduos provenientes dessa estagnação.
Dinamitaram o charco, e a sujidade que se acumulou durante anos de inacção espalhou-se por todos os lados, alimentando uma guerra infecta que ninguém pretende, muito menos os consumidores-leitores que há anos esperam por qualidade nesse passatempo tão ancestral como o de matar a sede de conhecimento nos livros.
Todavia, a insalubridade permanece. Neste momento preparamo-nos para recolher os primeiros despojos de uma guerra que teve por pano de fundo a organização das feiras dos livros. Assim, tentando resumir, temos, de um lado, um modelo gasto, espremido, rígido, anquilosado e seriamente ferido de morte, que se traduz na concepção da feira como um imenso espaço dedicado aos saldos de livros – como se fosse necessário esperar por Maio para comprar livros com descontos iguais ou superiores a 20% do p.v.p. –, que se afastou progressivamente da montra das novidades literárias e da ligação estreita entre o leitor e o produtor da obra – aquele que da literatura fez ocupação e passou meses, anos a fio encerrado com o seu interior na criação de uma obra para apreciação de um determinado público, de forma a garantir-lhe o sustento, não só o material, mas acima de tudo o espiritual, do reconhecimento, da aceitação e, porque não, do engrandecimento do seu ego – algum lirismo imaterialista nunca fez mal a ninguém. Do outro lado, apresentou-se o poderio económico, que munido de toda a sua arrogância pretende abanar (aniquilar?) o mercado sem ouvir o próprio mercado. Operações de reestruturação empresarial em cujos critérios não se vislumbra a atenção ao requisito mais importante: a cultura. A avidez pelo mercado, por quotas, pela formação de grupos ufanos pelo seu poderio no meio, parece ter sido o único critério. Não há uma cultura de base que se entenda, nem que se consiga, por maior que seja o esforço de abstracção, subentender; nem tão-pouco se respeitou a cultura das próprias organizações que da noite para o dia, sem ouvir escritores e editores, foram anexadas pelo poderio dos cifrões – anschluss ou blizkrieg?
E depois, admirem-se que no meio de tudo isto apareça um título como o que vem reflectido na imagem ao lado, relativo a um conjunto de ensaios do autor britânico George Orwell (1903-1950). Esta antologia foi publicada pela Antígona e traduzida por Desidério Murcho: Why I Write (1946) foi traduzido para “Por Que Escrevo”. Haja paciência… é o título da obra, que, como é obvio, aparece na capa, agravado pelo destaque de letras negras garrafais em fundo amarelo vivo que não deixam a dúvida da existência de um espaço entre a preposição “Por” e o pronome interrogativo adjunto “Que”, que apesar de adjunto surge sem substantivo (motivo, razão, carga de água, raio, etc.). Quiçá a editora, o revisor e/ou o tradutor pretendeu ser mais papista que o Papa e alargou o acordo ortográfico a um acordo gramatical; em português do Brasil o título estaria gramaticalmente bem formulado.
Depois, temos a LeYa, através da Dom Quixote – ou será o contrário? – acabou de publicar o horroroso projecto de romance de Truman Capote (1924-1984), publicado postumamente, Súplicas Atendidas (Answered Prayers, 1987).
Pressente-se no ar, pelo agitar de águas que vai muito além da pedrada no charco, um cheiro pestilento que anuncia a insalubridade. E se o meio editorial nacional até aqui pudesse ser comparado a um atoleiro bafiento que resistia paredes meias ou às portas das piramidais construções de um progresso voraginoso, o tratamento que lhe foi imposto ultrapassou e muito a reciclagem dos resíduos provenientes dessa estagnação.
Dinamitaram o charco, e a sujidade que se acumulou durante anos de inacção espalhou-se por todos os lados, alimentando uma guerra infecta que ninguém pretende, muito menos os consumidores-leitores que há anos esperam por qualidade nesse passatempo tão ancestral como o de matar a sede de conhecimento nos livros.
Todavia, a insalubridade permanece. Neste momento preparamo-nos para recolher os primeiros despojos de uma guerra que teve por pano de fundo a organização das feiras dos livros. Assim, tentando resumir, temos, de um lado, um modelo gasto, espremido, rígido, anquilosado e seriamente ferido de morte, que se traduz na concepção da feira como um imenso espaço dedicado aos saldos de livros – como se fosse necessário esperar por Maio para comprar livros com descontos iguais ou superiores a 20% do p.v.p. –, que se afastou progressivamente da montra das novidades literárias e da ligação estreita entre o leitor e o produtor da obra – aquele que da literatura fez ocupação e passou meses, anos a fio encerrado com o seu interior na criação de uma obra para apreciação de um determinado público, de forma a garantir-lhe o sustento, não só o material, mas acima de tudo o espiritual, do reconhecimento, da aceitação e, porque não, do engrandecimento do seu ego – algum lirismo imaterialista nunca fez mal a ninguém. Do outro lado, apresentou-se o poderio económico, que munido de toda a sua arrogância pretende abanar (aniquilar?) o mercado sem ouvir o próprio mercado. Operações de reestruturação empresarial em cujos critérios não se vislumbra a atenção ao requisito mais importante: a cultura. A avidez pelo mercado, por quotas, pela formação de grupos ufanos pelo seu poderio no meio, parece ter sido o único critério. Não há uma cultura de base que se entenda, nem que se consiga, por maior que seja o esforço de abstracção, subentender; nem tão-pouco se respeitou a cultura das próprias organizações que da noite para o dia, sem ouvir escritores e editores, foram anexadas pelo poderio dos cifrões – anschluss ou blizkrieg?
E depois, admirem-se que no meio de tudo isto apareça um título como o que vem reflectido na imagem ao lado, relativo a um conjunto de ensaios do autor britânico George Orwell (1903-1950). Esta antologia foi publicada pela Antígona e traduzida por Desidério Murcho: Why I Write (1946) foi traduzido para “Por Que Escrevo”. Haja paciência… é o título da obra, que, como é obvio, aparece na capa, agravado pelo destaque de letras negras garrafais em fundo amarelo vivo que não deixam a dúvida da existência de um espaço entre a preposição “Por” e o pronome interrogativo adjunto “Que”, que apesar de adjunto surge sem substantivo (motivo, razão, carga de água, raio, etc.). Quiçá a editora, o revisor e/ou o tradutor pretendeu ser mais papista que o Papa e alargou o acordo ortográfico a um acordo gramatical; em português do Brasil o título estaria gramaticalmente bem formulado.
Depois, temos a LeYa, através da Dom Quixote – ou será o contrário? – acabou de publicar o horroroso projecto de romance de Truman Capote (1924-1984), publicado postumamente, Súplicas Atendidas (Answered Prayers, 1987).
Deixando de lado as questões conexas com a qualidade literária (quase nula ou mesmo abaixo de zero, digo) e as vicissitudes ligadas à sua publicação original, do conjunto das três histórias interligadas de Capote, o livro termina em beleza com o indescritível capítulo, pelo péssimo gosto da prosa nele vertida, de “La Côte Basque”, que revela um Capote mesquinho, ignóbil e decadente, entregue ao álcool e às drogas que, aliás, marcariam o ritmo dos seus últimos anos, o fim da aventura do rapaz irreverente de Nova Orleães que um dia quis ser famoso.
«La Côte Basque fica no lado Leste da rua 55, mesmo em frente ao St. Regis.» (pág. 160). É portanto um bar/restaurante em Nova Iorque, que ficaremos a saber ser de propriedade de um tal Sr. Soulé, local onde se reúne a nata da alta sociedade nova-iorquina numa grotesca parada de estrelas atulhada de fofoquices sobre as vidas sórdidas dos outros.
[O capítulo até começa bem com uma piada de saloon, que dá o verdadeiro cunho ao género do que a seguir, em cerca de quarenta páginas, se descreve:
«Ouvido num bar de cowboys em Roswell, no Novo México… Primeiro cowboy: Hei, jed. Como estás? Como vai essa vida?
Segundo cowboy: Bem! Mesmo bem. Sinto-me tão bem que, esta manhã, não tive de bater uma punheta para pôr o coração a funcionar.» (pág. 159)]
Bem, adiante…
Pois, na contracapa da recentíssima edição portuguesa da Dom Quixote podemos ler [destaque meu]:
«Ao acompanhar a carreira de um escritor de origens incertas e gostos eróticos insaciáveis, SUPLICAS ATENDIDAS conduz o leitor de um decadente bar em Tânger a um banquete na costa basca, dos salões literários aos mais caros bordéis […]»
Pelo título, deve tratar-se da costa basca francesa. Mas terá sido em Biarritz? Ou noutro lugar qualquer.
A maior editora portuguesa, agora pertença do império LeYa, dá-se a este tipo de negligência.
Conselho: seria melhor ler a obra antes de escrever os textos que irão constar das badanas e da contracapa. Como o livro (creio eu) não é para ser vendido a um conjunto de abrutalhados que o desfolham – ah, aqui a utilização do dito cujo verbo “desfolhar” teve a merecida utilização – e não o folheiam com olhos de ver, haveria de desperdiçar um pouco mais de tempo a rever a asneirada que se escreve, como numa corrida contra o tempo – eu sei, já dizia o outro, time is money, e é isso mesmo que permite a ocorrência deste tipo de abjecções literárias.
[O capítulo até começa bem com uma piada de saloon, que dá o verdadeiro cunho ao género do que a seguir, em cerca de quarenta páginas, se descreve:
«Ouvido num bar de cowboys em Roswell, no Novo México… Primeiro cowboy: Hei, jed. Como estás? Como vai essa vida?
Segundo cowboy: Bem! Mesmo bem. Sinto-me tão bem que, esta manhã, não tive de bater uma punheta para pôr o coração a funcionar.» (pág. 159)]
Bem, adiante…
Pois, na contracapa da recentíssima edição portuguesa da Dom Quixote podemos ler [destaque meu]:
«Ao acompanhar a carreira de um escritor de origens incertas e gostos eróticos insaciáveis, SUPLICAS ATENDIDAS conduz o leitor de um decadente bar em Tânger a um banquete na costa basca, dos salões literários aos mais caros bordéis […]»
Pelo título, deve tratar-se da costa basca francesa. Mas terá sido em Biarritz? Ou noutro lugar qualquer.
A maior editora portuguesa, agora pertença do império LeYa, dá-se a este tipo de negligência.
Conselho: seria melhor ler a obra antes de escrever os textos que irão constar das badanas e da contracapa. Como o livro (creio eu) não é para ser vendido a um conjunto de abrutalhados que o desfolham – ah, aqui a utilização do dito cujo verbo “desfolhar” teve a merecida utilização – e não o folheiam com olhos de ver, haveria de desperdiçar um pouco mais de tempo a rever a asneirada que se escreve, como numa corrida contra o tempo – eu sei, já dizia o outro, time is money, e é isso mesmo que permite a ocorrência deste tipo de abjecções literárias.
Enfim, à beira do abismo, vamos caminhando em frente...
Referências bibliográficas:
- Truman Capote, Súplicas Atendidas. Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Maio de 2008, 199 pp. (tradução de José Luís Luna; obra original: Answered Prayers, 1987);
- George Orwell, Por que escrevo e outros ensaios. Lisboa: Antígona, 1.ª edição, Maio de 2008, 154 pp. (tradução de Desidério Murcho; obra original: s/ ref.ª, ensaios dispersos).
3 comentários:
Caro André
Obrigado pela sua atenção ao livro do Orwell. Como a responsabilidade é minha, no que respeita ao "por que", devo dizê-lo publicamente.
E defendo que você não tem razão. Há um erro fundamental na doutrina de um linguista português que fez escola, mas é pura e simplesmente absurdo considerar que "Porque escrevo" quer dizer o mesmo que "Por que razão escrevo". Isto é absurdo. "Porque escrevo" traduz-se por "Because I write" e "Por que razão escrevo" por "Why I write". Tanto em inglês como em francês ou alemão a diferença entre "porque" e "por que" é clara. Não faz pura e simplesmente sentido usar a norma que alguém em Portugal decidiu usar e que é incoerente. Semanticamente, não há qualquer diferença entre dizer "Por que [razão] escrevo" elidindo a palavra "razão", e por isso mesmo devemos escrever "por que" e não "porque". Enfim, espero que não se ofenda, mas a minha opção é muito consciente. Como referência, veja estes sítios:
http://omolete.blogspot.com/2007/10/por-que-porque.html
http://linguistica.publico.clix.pt/duvida.aspx?id=1317
Caro Desidério,
Eu considero os advérbios "porque" e "porquê", quando interrogativos, como substitutos do "por que razão/motivo", seguindo o recentemente falecido Prof. José Neves Henriques:
http://ciberduvidas.pt/pergunta.php?id=193
e
http://ciberduvidas.pt/pergunta.php?id=190
Entendo a inquietação do Desidério, mas parece-me correcta a tese de JNH e defendo-a, sem mais gordura como se costuma dizer. As discussões linguísticas são um verdadeiro enfado e depois nunca se chega a uma conclusão através da citação de eminentes académicos porque assumem posições contraditórias.
Esta língua, a nossa, tem o que se lhe diga. Por exemplo, por que razão separamos a preposição "de" e o pronome/artigo "o/a/os/as" antes de um verbo no infinitivo ou no infinitivo pessoal (esta última forma verbal também uma invenção só das nossas):
"Tive de o matar" em vez de "Tive do matar" (aqui até se entende);
"Antes de a apanharem, calcem as luvas" em vez de "antes da apanharem, calcem as luvas";
"antes de o dilúvio chegar quero fazer-te uma confissão" em vez de "antes do dilúvio chegar, quero fazer-te uma confissão" (é curioso que aqui também há uma fonte de discórdias linguísticas "quero-te fazer uma confissão" ou "quero fazer-te uma confissão" (sou adepto da 2.ª forma, o pronome clítico sempre junto ao verbo no infinitivo?
E então se falássemos nos particípios passados regulares e irregulares antecedidos dos verbos "ser/estar" ou "ter/haver"...
Um abraço,
André
Obrigado pela resposta, André, e pela atenção.
A sua resposta é contraditória. Afirma que “nunca se chega a uma conclusão através da citação de eminentes académicos porque assumem posições contraditórias”, mas o seu único argumento é citar um desses eminentes académicos. Eu não cito académico algum na minha intervenção do Público: limito-me a usar o raciocínio. A opção desse colega que cita é insustentável. Só parece sustentável quando se fica cego com tanta terminologia linguística. Mal se desce à terra percebe-se que é absurdo considerar que “Por que razão/motivo escrevo” não é exactamente o mesmo que “Por que escrevo” (“why I write”), sendo totalmente diferente de “Porque escrevo” (“Because I write”). Tirar o espaço é absurdo por isto mesmo. Só não parece absurdo, repito, quando os meus colegas linguistas estão tão mergulhados em tecnicismos linguísticos que perdem a noção da realidade.
Uma vez mais, obrigado pela sua atenção ao Orwell — espero que leia os seus maravilhosos ensaios e que se sinta interpelado. Penso que são ensaios de grande actualidade e fiz esta edição com muito amor.
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