segunda-feira, 16 de junho de 2008

“Não tenho pensado noutra coisa nestes últimos dias”

Palavras proferidas por Sócrates no passado dia 12 de Junho perante a Assembleia da República (ver vídeo).
Coisa: Referendo na República da Irlanda sobre a ratificação do Tratado de Lisboa (a.k.a. porreiro-pá treaty)
Um país a ferro e fogo. Cidades barricadas por camionistas. Prateleiras de hipermercados exauridas de bens de primeira necessidade. Agricultores angustiados e endividados até à raiz dos cabelos. Frota pesqueira parada. Nível de desemprego alto e estável. Desaparecimento progressivo da classe média, talvez agarrada à promessa futura do estrelato em programas de antropologia cultural do National Geographic. País que diverge. Estado da União Europeia com maiores desigualdades sociais. Corrupção institucionalizada e endémica, que se alastra vorazmente a toda a sociedade, a todos os sectores da actividade económica, perante um sistema de justiça quase complacente, pela demora, pela confecção da lei por medida, com a grande criminalidade de colarinho branco…
São palavras gastas. Perderam, pelo uso, todo o seu significado angustiante. Para quê repeti-las?

Há umas semanas, o Pedro Correia pediu a um conjunto de bloggers para que cada um escrevesse um texto sobre qualquer tema ou assunto à escolha para mais tarde o poder publicar no seu blogue
Corta-Fitas. Fui, imerecidamente, contemplado pelo pedido. Escrevi-o, num dia em que a fúria da minha triste e opressiva condição lusa me saía pelos poros. O Pedro publicou-o no dia 8 de Junho, e eu, correndo o risco de abusar da sua confiança, republico-o, sem lhe dar cavaco ou (aviso: as palavras que se seguem deveriam surgir no texto unidas por hífen, mas por razões estéticas e de formatação, optou-se por se lhe dar o devido descanso, substituindo-o por umas agradáveis aspas) “homem do dia da raça que se abstém de alertar os governantes e de falar sobre um país que de dia para dia vai imergindo num viscoso atoleiro sem qualquer hipótese de salvamento”.
Eis o texto:
Alheamento do Inferno

Já não ouvem e nem se fazem ouvir. Dezasseis criaturas aprisionadas a um discurso de um só líder. Magnânimo mas irritadiço, democrata impiedoso, munido da sua aura mágica de mestre de indução do êxtase político; ele garante-lhes a sublime perfeição do rumo por que vão enveredando. Seguem às cegas – já não precisam de ver –, sem bússola ou outros instrumentos de navegação. A tecnologia provém da inesgotável fonte da sua sabedoria. Estamos no bom caminho, ele diz-lhes para dizerem, porque ele também diz e anuncia, cria e inaugura, promete e já não se preocupa com a sua realização – já não necessitam de resultados palpáveis, basta a promessa de cumprimento de um conjunto de promessas e uma poderosa máquina de perpetuação da sensação do dever cumprido. Alguém lhe disse que uma boa mente, permeável, alimentada de sonhos e de quimeras é o sustento necessário e suficiente do corpo, porque a alma de cada corpo, sugada e mortificada, partiu há muito, envergonhada. Espectáculo indecente, grotesco, de mortos-vivos vencidos pela acédia.
Empreender, crescendo na imponderabilidade.
À volta do timoneiro e dos seus dezasseis seguidores, foi-se formando uma leve, translúcida e hermética película, que medida após medida, diapositivo após diapositivo – ou slide como por lá chamam os criadores de tecnologia –, soltou amarras rumo ao firmamento. Ambiente ionizado, (ele prometeu-lhes) onde moram os grandes decisores, imersos no éter do serviço desempenhado com notável orgulho em favor da humanidade. Vivem do insípido néctar sagrado que nasce a jorros por cada nova ideia: já não necessitam do palato. Julgam-se gordos no revérbero da sua eminência. Todavia, elegantes fiando-se na teoria da imagem virtual reflectida pela concavidade das paredes espelhadas do seu habitat em forma de bolha. Lá em cima, vogando no espaço, já não sentem o cheiro da miséria que se vai decompondo em mais miséria. (Enchem-se de esperança – talvez se transforme em húmus, terra fértil, como um seguro para quando um dia para cá voltarem). E, embora não confiando na desprezível fé divina do Homem – foram orgulhosamente descontaminados por um processo de escrupulosa descrença –, sabem… haverá Aquele (quem?) que pela Sua força (qual?) os poderá fazer cair como anjos em desgraça. Sem juízes ou promotores de justiça, sem espiões ou corpo policial, sem banqueiros, autarcas, cobradores ou criados burocratas.
Pura distracção. Estiveram sempre nas cercanias da famigerada porta.
Ignorantes…
E então, sem ouvir, ver, palpar, saborear ou cheirar… não, não sentem, e as emoções por lá rareiam, mas recordam-se daqueles nove versos que terminam com uma sentença aterradora (Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate):

Por mim vai-se à cidade que é dolente,
  por mim se vai até à eterna dor,
  por mim se vai entre a perdida gente.
Moveu justiça o meu supremo autor:
  divina potestade fez-me e tais
  a suma sapiência, o primo amor.
Antes de mim não houve cousas mais
  do que as eternas e eu eterna duro.
  Deixai toda a esperança, vós que entrais.

Porreiro, pá!*

Referência: Dante Alighieri, A Divina Comédia (I Inferno: Canto III: v. 1-9). Venda Nova: Bertrand, 5.ª edição, Dezembro de 2000, pág. 47; tradução de Vasco Graça Moura; obra original: (La Divina) Commedia, 1307-1321.

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*[acrescentado]: Agora há que encontrar meios de ostracizar o “tigre europeu”, colocando-o à margem dos restantes 26 – os apavorados ratificadores parlamentares. Gordon Brown já espuma de júbilo voraginoso pela punição a dar a esses infames católicos.
Como é que se diz “porreiro, pá” em gaélico?

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