Se tiver oportunidade vê-lo-ei de novo ainda esta semana. Tal foi a marca de inquietação que, com uma persistência espantosa, não me larga o espírito.
Como desconstruir a hipótese existencial, em forma de prece divina, ambicionada por Mark Twain? O tal homem cujo destino ficou associado aos caprichos da circularidade de um cometa.
F. Scott Fitzgerald inspirou-se na biografia de Mark Twain, escrita e publicada em 1912 por Albert Bigelow Paine, onde leu uma curiosa citação:
«Seu eu houvesse ajudado o Todo-Poderoso quando Ele criou o homem, tê-Lo-ia persuadido a começar pelo outro extremo, pondo os seres humanos a nascer na velhice. Quão melhor seria nascer velho, com toda a amargura e a cegueira da idade dispostas no início! Ninguém se importaria se ansiássemos por uma juventude rejubilante. Pense na feliz perspectiva de rejuvenescer em vez de envelhecer! Pense na satisfação em esperar pelos dezoito anos em vez dos oitenta! Sim, o Todo-Poderoso nisso fez um mau trabalho. Quem me dera que Ele houvesse pedido o meu auxílio.» [tradução: AMC]Na colectânea de contos de Scott Fitzgerald, Tales of the Jazz Age de 1922, Scott, na apresentação dos contos compilados refere o que se segue para “The Curious Case of Benjamin Button”:
«Esta história inspirou-se numa observação de Mark Twain, que propalava que era uma pena que a melhor parte da vida surgisse no seu início e a pior no seu fim. Ao efectuar a experiência em apenas um homem num mundo perfeitamente normal, dificilmente proporcionei à sua reflexão um julgamento justo.» [tradução: AMC]Talvez tenham sido estas palavras introdutórias do criador que levaram Robin Swicord e Eric Roth (a primeira perseguia obsessivamente a concretização deste projecto em filme, e já dispunha de um guião escrito) à ampliação e trasladação histórica desta magistral alegoria sobre a morte como fim sombrio, angustiante, perceptível, inelutável e omnipresente em toda uma vida, quer haja ou não uma inversão do seu início. O sofrimento permanece, aproveitai os momentos.
Fincher alerta-nos para a beleza do preceito que, todavia, choca com princípios morais, na estrita medida em que se gera uma séria iniquidade, uma desarmonia existencial, jamais conjugável com, e potencialmente geradora de, uma felicidade perene e absoluta. Benjamin Button é uma parábola sobre essa dissonância insanável. Não é uma história de amor ou sobre o seu desencontro, é um hino ao não desperdício daquilo que a vida no traz no momento, saber vivê-lo, agarrá-lo com unhas e dentes, porque a única certeza, rejuvenescendo ou envelhecendo, é a transitoriedade para o vazio, que ultrapassa a dúvida paralisadora sobre a transcendência do fim.
Ainda sob a influência do espectro mágico do filme, que irei rever, revisitar e reexaminar, à procura dos famosos “ovos de Páscoa” – como gosta de chamar uma mente auto-iludida com a sua perspicácia – ou daquilo que aos meus olhos fugiu numa primeira exibição, não falarei, por enquanto, sobre os pormenores de realização, dos momentos memoráveis (o mais delicioso com Tilda Swinton no Hotel na cidade polar de Murmansk, no extremo noroeste da Rússia), a banda sonora, a fotografia e as interpretações (a soberba interpretação de Brad Pitt, que ao que tudo indica irá passar em branco).
Deixo apenas uma recomendação para a leitura deste excelente texto do Henrique e um excerto de um poema de Larkin (talvez a despropósito), que não me atrevo a traduzir:
I work all day, and get half drunk at night.
Waking at four to soundless dark, I stare.
In time the curtain edges will grow light.
Till then I see what's really always there:
Unresting death, a whole day nearer now,
Making all thought impossible but how
And where and when I shall myself die.
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.
Philip Larkin (1922-1985), 1.ª estrofe de “Aubade” (1977)
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