sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Essa difícil arte, a de editar

Escrevo este texto na suave transição de quinta 29 para sexta-feira 30 de Janeiro. Ele morreu a 27, na terça-feira da última semana de Janeiro de 2009. O tempo passa e os nossos sentidos insensibilizam-se perante a distância da ocorrência. Não era nosso, ou não nos pertencia – como gosto de referir quando partilho afectos –, a notícia dissemina-se na espuma dos dias, verde, bolorenta, ou amarela, enxofrada, por uma atmosfera carregada dos miasmas químicos produzidos pela nossa destrutiva existência. Estranha espécie. Matamo-nos uns aos outros no silêncio do nosso consumismo e a morte transforma-se numa ténue reminiscência daquilo que nos espera. Porventura é esse mesmo o nosso mecanismo de defesa: desligar os alarmes perante a inevitabilidade do saque que destroçará o nosso corpo. A alma…
Updike tinha 76 anos. A 18 de Março duplicaria o algarismo mágico. Publicou, entre romances, ensaios, antologias poéticas e colectâneas de críticas, mais de cinquenta obras. Nasceu em 1932 numa pequena comunidade rural do Estado da Pensilvânia, e agarrou-se à vida, esgadanhando-se para manter a cabeça à tona no lamaçal do negócio das letras – lá por ser arte, palavras soltas, preto no branco, que se formam pelo toque do génio e que se transformam em quimeras aos olhos dos seus leitores, não deixa de ser um negócio como outro qualquer: mercado, volume, margens, lucro.
Morreu a publicar. O seu último romance foi editado no último trimestre de 2008, quando as metástases da doença decerto o impediriam de articular verbalmente as palavras que sempre gostou de proferir. No seu canto isolado no Massachusetts. Nova Iorque, pressentira havia anos, destruí-lo-ia e devoraria a sua notável obra. Espectral como um vitral iridescente de uma igreja medieval, os seus escritos conquistaram a pulso tudo o que havia para vencer, Pulitzer, National Book Award, PEN/Faulkner, American… excepto o Nobel. Escrita regional que não participa no grande diálogo da literatura, poderia referir o sueco indiscreto. Uma imagem borgiana, uma biblioteca em que se produz um diálogo tal – algazarra, vozearia – que destrói a verdadeira essência de um livro, o diálogo interior entre autor e leitor através das letras impressas, mil vezes ampliado em colunas de agudos, médios e graves de imaginosas viaturas de tuning, dispostas em filas organizadas nos corredores da biblioteca high-tech.
Vários obituários, elegias e notas comoventes de uma perda imensa para a Literatura, produzidos por colegas escritores, críticos literários, editores, gente anónima.
Em Portugal, com a excepção de dois ou três jornais, os de referência – a literatura não mata a fome e o tempo é de crise, aliás, por essa perspectiva, infiro que andamos todos saciados, como um bom país de iletrados –, como dizia, poucos se referiram à morte de um dos maiores vultos da literatura mundial.
A sua edição em no nosso país, apenas conheceu alguma fase de prosperidade desde há dois ou três anos, medida pelo número de títulos publicados. Uma editora, aqui da minha terra, a Civilização publicou e completará (espera-se) a tetralogia do Coelho – acreditando que prossiga com a 5.ª parte, ou com a meia parte após o 4.º romance, a novela póstuma de Harry Angstrom, Rabbit Remembered (2001) agora publicada separadamente da antologia de contos Licks of Love (2000) – assim como publicou o feérico Brasil (Brazil, 1994) uma extrapolação de Tristão e Isolda, Procurai a Minha Face (Seek My Face, 2002) e O Terrorista (The Terrorist, 2006). No mercado podemos ainda encontrar S. (1988; ed. port. Livros do Brasil), O Centauro (The Centaur, 1963; ed. port. Europa-América) e o fascinante, fracturante e monumental Casais Trocados (Couples, 1968; reimpressão/ed. port. Modo de Ler/Inova).
Quando soube da notícia, procurei em vão na sua editora portuguesa textos, algumas palavras, uma frase apenas que descrevesse a honra de o haver editado e talvez uma manifestação de interesse, firme e inequívoca, pela continuidade na publicação das suas obras inéditas neste país de filisteus. Nada de nada. Nem uma linha. Nem uma nota de pé de página. Apenas a estrepitosa publicidade ao primeiro romance de Richard Yates (1926-1992), publicado com 47 anos de atraso, tudo porque o filme estreou hoje em Portugal, que ressuscita o casalinho do horripilante Titanic (1997) de James Cameron.
Pois claro, o mercado não se compadece com episódios de morte. Com lamechices e a amaricada (antimariálvica) exteriorização de sentimentos de perda. Porém, para mim, talvez um palerma de um idealista, isto não é editar. Qualquer semelhança com essa nobre arte é pura coincidência. Estariam melhor em Mirandela, assim que o frio se anuncia, a atiçar o fogo para a produção dos famosos enchidos em forma de “U”. Páginas queimadas que nos matam a fome.
Falta-me a palavra certa.

«Com uma ominosa frequência, não consigo pensar na palavra certa. Eu sei que existe a palavra; não consigo vislumbrar a forma exacta que ela ocupa no quebra-cabeças da língua inglesa. Mas a própria palavra, com a sua precisa expressividade e o seu matiz único de significação, aguarda no limiar nebuloso da consciência.»
John Updike, “The Writer in Winter”, AARP The Magazine, November/December, 2008.

4 comentários:

azeite disse...

muito bom. obrigado.

isabel mendes ferreira disse...

e a mim tb falta.me a palavra certa e ideal (existe?) para agradecer este blog...uffffffa....que prazer.


e saio. dançando sobre as coincidências...:)

André Moura e Cunha disse...

Para além de um imenso obrigado, também me falta a palavra certa, a que flutua no tal limbo da percepção.

Alexandre Kovacs disse...

André, escrevi uma postagem sobre Updike lá no meu mundo, selecionei e citei uma sequência de "Coelho Corre", onde a esposa de Harry entra em depressão, bebendo muito tudo evolui para uma grande tragédia. Este trecho me marcou muito pela veracidade com que foi escrito, gostaria muito da sua visita e comentário.