domingo, 18 de janeiro de 2009

Chiste bolañiano

Os americanos descobriram-no há muito pouco tempo. Talvez através de Susan Sontag (1933-2004) com o sem ajuda de miss I., a sua amiga do peito. E pelos jornais, revistas da especialidade, pelas comunidades de leitores, críticos, autores sancionadores da qualidade profissional de seus pares e hermeneutas da palavra alheia – estes últimos, normalmente, em busca de mensagens subliminares e encriptadas de teor político, reconhecendo no autor as capacidades divinatórias de guia de luz contra o despotismo de índole capitalista – só se lê, ouve, ou vê – o gesticular afectado dos iniciados ou eleitos pelo esplendor da intelectualidade literária – falar de Roberto Bolaño (1953-2003). Traduzem-se as suas obras. Esmiúça-se ao mínimo detalhe a sua personalidade, vida familiar, teia de relacionamentos, entrevistas em publicações mais ou menos obscuras.
No ano passado, saiu Bolaño selvagem (Bolanõ selvaje, livro e DVD sob a chancela da Editorial Candaya, editado pelo boliviano Edmundo Paz Soldán e pelo peruano Gustavo Faverón Patriau, inclui textos de Enrique Vila-Matas, Rodrigo Fresán, Jorge Volpi, entre outros. Chega-se a hiperbolizar afirmando que com a morte de Bolaño morreu a literatura latino-americana (e eu, sozinho em casa a escrever este texto, pergunto-me por Fuentes e Vargas Llosa, até por García Márquez ou Piglia).

Prosseguindo. A vida e o brilhantismo de Bolaño reflectem-se na sua obra. Decerto que há muito para dizer sobre a curta vida deste ilustríssimo escritor chileno, mas primeiro leiam-no e deliciem-se com a sua ironia, por vezes subtil outras vezes carregada, sarcástica, pontuado de um espirituoso humor negro.

Eis uma passagem de Nocturno Chileno (que demorei uma infinidade de tempo a encontrar, dada a minha mania de não profanar os meus livros com inscrições, sublinhados e anotações à margem), do Padre Ibacache recenseador literário (cujo ao ortónimo Sebastián era adicionada a estranha combinação de apelidos basco-francesa Urrutia Lacroix).
Pobre padre. Jovem, perdido na Europa numa demanda insana engendrada por dois numerários da Opus Dei, Oido e Odeim – ódio e medo (miedo), respectivamente, de trás para a frente –, sobre a preservação das fachadas das igrejas europeias frente aos bárbaros ataques de bandos de pombas (o símbolo do Espírito Santo) e a sua copiosa defecação. Solução wescottiana: criação de falcões. No momento de desespero absoluto, em que Sebastián pensa no regresso ao Chile, um bom padre alemão conta-lhe uma anedota:

«Está o Papa com um teólogo alemão, a falar tranquilamente numa das salas do Vaticano. De repente, aparecem dois teólogos franceses, muito excitados e nervosos, e dizem ao Santo Padre que acabam de chegar de Israel e que trazem duas notícias, uma muito boa e outra considerada má. O Papa suplica-lhes que falem de uma vez por todas, que não o mantenham na expectativa. Os franceses, atropelando-se, dizem que a boa notícia é que encontraram o Santo Sepulcro. O Santo Sepulcro?, diz o Papa. O Santo Sepulcro. Sem a mais pequena dúvida. O Papa chora de emoção. Qual é a má notícia?, pergunta, secando as lágrimas. Dentro do Santo Sepulcro encontrámos o cadáver de Jesus Cristo. O Papa desmaia. Os franceses tentam dar-lhe ar. O teólogo alemão, que é o único que está calmo, diz: ah, mas então Jesus Cristo existiu mesmo?»
Roberto Bolaño, Nocturno Chileno, p. 95
[Lisboa: Gótica, Julho de 2003, 150 pp.; tradução de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues; obra original: Nocturno de Chile, 2000.]

Para a semana, nas habituais citações dominicais, um brilhante auto-retrato e análise do ilustre autor chileno (devidamente traduzido).

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