Falo de Auster, Paul Benjamin. Um homem cuja escrita teve o mérito de passar à primeira no meu crivo estético-literário com as obras de ficção que começou a publicar desde 1985, sublimadas em A Trilogia de Nova Iorque (The New York Trilogy) em 1987 e com continuidade nas restantes até 1999, com Timbuktu, e para não parecer tão severo e manifestar alguma da condescendência de um admirador típico, amplio o intervalo até ao ano de 2002 quando é lançado no mercado editorial O Livro das Ilusões (The Book of Illusions). De lá para cá, publica A Noite do Oráculo (The Oracle Night, 2004), As Loucuras de Brooklyn (o romance austeriano mais atípico; The Brooklyn Follies, 2005), Viagens no Scriptorium (Travels in the Scriptorium, 2006) e Homem na Escuridão (Man in the Dark, 2008), e enreda-se, ainda mais, nas teias da metaficção, no método das caixas chinesas e na narrativa desbastada ou sem atavios, magra, sem qualquer toque de génio, como se tratasse de um conjunto de caracteres despejados para páginas em branco que, por acaso, formam palavras e frases coerentes que, porém, não se ligam a outras frases ou a outras partes do texto.
É óbvio que, enquanto escrevo estas palavras, não me sai da cabeça o seu último romance (o tal que oferecia, ou ainda oferece, o inútil saco de pano assinado) que me partiu o coração tal como a morte de Titus fez ao de Katya – Auster já nem se furta aos clichés, usa-os como muleta, com uma urgência que não se compreende. Que diabo, é este o seu trabalho. Foi esta a profissão que escolheu, como tão bem proferiu no discurso de agradecimento em Oviedo no ano 2006 (Prémio Príncipe das Astúrias). Contar histórias e falar ao interior de cada leitor que ouve, lendo, a sua narração. Se as histórias são alimento e meio de sobrevivência da espécie humana, a falta, ou a perda total, dessa qualidade, por simples desperdício, preguiça, levaria o Homem à inanição intelectual, espiritual, e, por consequência, à morte e ao limiar da sua extinção.
Em Homem na Escuridão é-nos narrada a história de um homem septuagenário que se conta histórias para fazer com que a sua mente divirja das barbaridades que o foram assolando ao longo de décadas: a conturbada vida conjugal, os profundos desgosto e amargura da filha e o diletantismo pré-adulto da neta, que num arroubo deixou a Escola de Cinema em Nova Iorque para se juntar ao dueto familiar que se encontra a remoer o passado no Estado do Vermont. A filha escreve uma biografia sobre a obscura filha mais nova de Nathaniel Hawthorne, Rose e ele recupera das sequelas de um terrível acidente de automóvel no seu quarto escuro, onde engendra as histórias que o distraem da crueldade dos dias do seu quotidiano.
Os ingredientes para uma boa história estão lá. A receita, porém, acaba por estragar ou desperdiçar as propriedades individuais desses ingredientes, retirando-lhes os elementos que adicionados a outros potenciam, por sinergia, a perfeição do produto final.
A sensação que assalta o leitor não podia ser mais desagradável. Qual Tântalo esfaimado impedido de tragar os frutos suspensos à frente dos seus olhos. Embora, aqui, o fruto surja em formas difusas – o que poderia ter sido. Pontas soltas que não se unem. Histórias que ficam por contar. Uma infinidade de possibilidades que poderiam, sem esforço, encher uma meia estante de livros. As ideias estão lá, em bruto, prontas para serem lapidadas, calmamente desenvolvidas, à espera de ganhar o brilho espectral, iridescente e inimitável de uma história bem contada.
O protagonista e a neta, em alternativa de criarem um blogue, passam o seu tempo a assistir a filmes em DVD, em silêncio, com uma atenção crítica que mais tarde é verbalizada em troca de opiniões e pontos de vista. Depois, de forma heteróclita, a neta, assaltada por uma insónia, deita-se na cama do avô e falam da vida e dos filmes que viram. Auster chega ao cúmulo de debitar em papel autênticas recensões cinematográficas e as suas perspectivas sobre filmes de realizadores não-americanos, como Ozu, Renoir ou Satyajit Ray, sem objectivo aparente – ou que eu o tenha conseguido captar – para a história que se conta. Peças desconexas e perfeitamente expurgáveis, e se retiradas contribuiriam para emagrecer a obra como num processo de lipoaspiração – extrair a camada adiposa em excesso.
É apenas no fim do romance em que, perante a hecticidade literária das páginas anteriores, surge algum lirismo ligado a uma narrativa debilmente conexa, que necessitaria de mais páginas, de argumento, adjectivação… em suma, de tutano literário capaz de fazer retinir a campainha estética de um leitor minimamente exigente.
Nas sucessivas entrevistas que deu, Auster confessou que se limitou literalmente a despejar palavras para a sua máquina de escrever e que, entre a digressão mundial para a promoção do seu mais que zurzido filme – A Vida Interior de Martin Frost (The Inner Life of Martin Frost, 2007) –, só teve tempo de largar o manuscrito no seu editor americano sem mais considerações.
Como dizia Tom LeClair no The New York Times Book Review de 19 de Setembro de 2008:
«Depois, digamos, de 10 livros, os romancistas talvez devessem ser reexaminados, tal como acontece com os cidadãos mais idosos, cuja maior propensão para acidentes os obriga a renovar a carta de condução. Os veteranos de guerras literárias deveriam submeter, de forma anónima, um novo manuscrito aos agentes literários. Sobre Homem na Escuridão, suponho que diriam, “imitação de Paul Auster de terceira categoria.” Depois, o autor poderia decidir em acelerar a escrita de uma imitação de primeira categoria dos seus trabalhos passados de primeira categoria. Ou poderia escrever uma ofensiva de quarta categoria sobre os agentes literários.» [tradução: AMC]
Benjamin, por favor, renova a tua carta.
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