Por estes dias, a recente e louvavelmente criada editora Sextante – que começou por se chamar Sudoeste e modificou o nome para evitar possíveis mal-entendidos com outras editoras existentes, optando por um novo que, de forma estranha, é igual à de outra existente no Brasil – publicou a, até hoje considerada, obra-prima da romancista, ensaísta, crítica literária e ex-professora universitária Antonia Susan Byatt (assina o seus trabalhos como A.S. Byatt), nascida em 1936 em Sheffield em Inglaterra, Possessão (Possession, 1990).
Esta obra permitiu à escritora britânica juntar o seu nome ao restrito conjunto de autores que venceram o mais prestigiado prémio literário a galardoar uma obra de ficção publicada originalmente em língua inglesa (Estados Unidos não incluídos), o célebre Booker Prize. E se acrescentarmos que, até 2007 (inclusive), dos 41 prémios distribuídos desde 1969 (tanto em 1974 como em 1992 houve dois vencedores ex aequo, Middleton e Gordimer, e Ondaatje e Unsworth, respectivamente) apenas 14 foram atribuídos a mulheres, o valor da vitória ganha outros matizes de excelência.
Por estes dias vou terminando a sua leitura, que diga-se, a talho de foice, não é nada fácil. Porém, posso desde logo confirmar de que se trata de um romance minuciosamente trabalhado, de uma excelente obra, com um arcaboiço literário invejável capaz de retirar o fôlego a mentes menos avisadas nas artes literárias. Para além da técnica narrativa recorrentemente analéptica, pejada de saltos históricos entre os séculos XIX e XX (hoje), e do percebido conhecimento aprofundado dos poetas, das suas obras e biografias, dos períodos romântico e vitoriano (Wordsworth, Arnold, Tennyson, S.T. Coleridge, Byron, Keats, etc.), de mitologia grega, do folclore nórdico e celta, e de filosofia, Byatt alterna dentro da mesma obra as formas narrativas do conto, da poesia, da prosa epistolar e diarista, do romance profusamente descritivo dos personagens, ambientes e objectos e dos diversos locais por onde se vai desenrolando a trama, a diálogos bem elaborados, com uma grande dose de humor e de ironia normalmente apontada à vida académica contemporânea, caracterizada por um estado de guerrilha latente, de invejas e de compadrios – só quem por lá anda ou andou consegue rever-se na descrição da envolvente tão bem articulada pela autora inglesa.
Bom, mas o que me levou à elaboração deste já longo texto irónico-interrogativo, nada teve que ver com a obra em si mesma, mas com a coincidência estranha da forma como a edição desta obra foi noticiada pela imprensa da especialidade1.
Já aqui havia referido o texto publicado a propósito de Possessão no último número da renovada revista Ler que, pelos laconismo e brevidade, apenas, na minha maneira de ver, teve como resultado um dispêndio despropositado de espaço e de caracteres: «Empreendimento no mínimo volumoso, acaba de sair Possessão […]»
Desta feita, a honras cabem ao JL, que na sua última edição (n.º 982, de 21 de Maio) refere o seguinte na página 29: «Há mistérios insondáveis na tradução portuguesa. Possessão – Uma História de Amor de A. S. Byatt é um deles. Escrito em 1990 [será?], foi distinguido com o Man Booker Prize [o grupo Man, plc só começou a patrocinar o Booker Prize desde 2003] no mesmo ano. Mas só agora foi traduzido do inglês.»
Mistério insondável? Porquê? Tratar-se-á de uma ironia, em tom de ferroada, ao editor português, que em boa hora se lembrou de colmatar esta lacuna no mercado livreiro de língua portuguesa? Ou será um puxão de orelhas a todo o meio editorial nacional pela falta de sensibilidade na escolha das obras estrangeiras a editar no nosso país?
Ora, em quase 40 anos de Booker Prize (1969-2007), foram premiadas cerca de 41 obras de ficção, das quais 26 foram editadas em português europeu e 15 não mereceram essa atenção – destas 15 há quatro obras posteriores a Possessão de A.S. Byatt: é o caso das obras vencedoras em 1991, 1992, 1994 e 1995, respectivamente, The Famished Road de Ben Okri; Sacred Hunger de Barry Unsworth; How Late It Was, How Late de James Kelman; e The Ghost Road de Pat Barker. Curiosamente, esta última foi nomeada, em conjunto com mais 5 obras de outros tantos escritores vencedores do Booker, para a eleição aberta ao público em geral para o prémio “The Best of the Booker Prize” a propósito da comemoração dos seus 40 anos de existência. Neste caso e naqueles termos, estamos perante um mistério ainda mais insondável, sabendo que a escritora inglesa (n. 1943) conta já com duas das suas onze obras de ficção editadas em português, nenhuma das quais pertence ao grupo das suas três (incluíndo The Ghost Road) que foram contempladas com prémios literários.
Mas o verdadeiro problema do mercado editorial português, se nos abstivermos do critério do potencial êxito comercial, normalmente associado a obras de qualidade duvidosa, está nos autores que jamais viram as suas respectivas obras penetrarem no mercado luso, embora sejam internacionalmente reconhecidos por diversos méritos estritamente relacionados com a questão literária; ou naqueles de reconhecidíssimo mérito cuja obra completa editada na nossa língua está muito longe de ser alcançada.
Há cerca de um mês elaborei uma listagem, que ficou no segredo dos meus ficheiros pessoais, que incluía 50 obras fundamentais de 10 autores norte-americanos2 que jamais viram a luz do dia (ou o negro tipográfico) na língua de Camões (embora algumas tenham sido editadas em português do Brasil). Após a realização daquele empreendimento e por mera coincidência, uma semana bastou para a lista passar da sua configuração de 10/50 para 10/49, uma vez que a editora portuense Civilização acabara de lançar no mercado uma das obras referenciadas na dita lista, Regressa, Coelho (Rabbit Redux, 1971) de John Updike. E até sei que, pelas mãos da editora acossada pela publicação da obra de Byatt, a cifra passará, em breve, para 10/48, já que se prevê a edição da obra-prima de um dos mestres da literatura contemporânea: Underworld (1997) de Don DeLillo. Será, da mesma forma, um empreendimento volumoso e/ou um mistério insondável?
A ver vamos.
Notas:
- Antes de Possessão, já se encontravam editados em Portugal um romance e um conto de A.S. Byatt: A Fábula do Biógrafo (ed. port. Temas e Debates, 2003; The Biographer’s Tale, 2000) e, curiosamente, um conto de fadas extraído do romance Possessão (ed. port. Sextante, pp. 67-77), chamado O caixão de vidro (ed. port. Tempus, 1997; The Glass Coffin incluído na colectânea de contos da autora The Djinn In The Nightingale's Eye, 1994).
- Autores referenciados na lista pessoal: John Barth (1930), Donald Barthelme (1931-1989), Saul Bellow (1915-2005), Don DeLillo (1936), Vladimir Nabokov (1899-1977), Thomas Pynchon (1937), Philip Roth (1933), Norman Rush (1933), John Updike (1932) e David Foster Wallace (1962).
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