E a maneira mais fácil de me libertar desta perífrase, ou dos nós que não se desatam na impudica desnudação do eu, subsume-se a uma citação:
«Compreendo-os muito bem; a tua seriedade perturba-os.» (pág. 600 de uma obra com referência final).
Nos primeiros dias deste breve interstício – ainda não assumido como tal, dado o valor absoluto que um nunca mais costuma assumir na minha vida, assaz diferente do galicismo liniano jamais –, houve apenas uma pessoa que, entendendo a razão subjacente à minha decisão, me enviou um e-mail, em manifestação de apelo, para que não desistisse de dar voz às tais inquietações através da escrita, que poderia ser, se a falta de tempo fosse factor determinante, mais espaçada, sem a urgência diarista.
É verdade: uma só pessoa… valeu por todas e esse alguém, que não importa quem e que nem sequer irei revelar a identidade, trata-se apenas de um grande amigo invisível, de “0’s” e “1’s”, que fisicamente se encontra a 300 quilómetros de distância.
Porventura, a situação não pedia tanto… bastava a lembrança do envio de um singelo abraço nas curtas distracções do globo ocular nas suas incontáveis circunvoluções diárias ao próprio umbigo.
Perspicácia no apelo: a primeira epígrafe tudo diz sobre a caminhada na beira do perigoso abismo, pelo triunfo ardentemente pretendido da ascese, o isolamento absoluto referido por Vila-Matas em “A Glória Solitária” (cf. Exploradores do Abismo, Teorema, 2008), tendo por base o fabuloso ensaio de Don DeLillo, “Counterpoint: Three Movies, a Book, and an Old Photograph”, referindo-se a uma certa estirpe de bartlebianismo em Glenn Gould, Thomas Bernhard e a notável versão ficcionada da vida de Gould em O Náufrago (Der Untergeher, 1983), em que DeLillo acaba por estabelecer o paralelismo com o enormíssimo Thelonious Monk (a enigmática referência de Bernhard às Monk Mountains) e o seu tenebroso emudecimento nos últimos seis anos da sua vida.
Depois, Sophia, como sempre e para sempre, como em todos os outros, e como em qualquer dos outros não iniciados, um poema que traduz, pela interpretação eminentemente pessoal que dele faço, o meu estado de espírito no momento. Uma evolução anímica, espiritual que percorre o largo espectro da sua soberba e admirável obra poética – trata-se, não escondo, depois de Camões e Pessoa – incomparáveis pela desmesura que só os próprios nomes encerram –, dos poetas da minha pessoalíssima preferência.
O que isto irá ter de diferente?
Não sei. Por enquanto. Pretendia-o menos turbulento, sem beliscar a incisividade necessária no momento certo em que me der ganas de vociferar, escrevendo, sobre o confronto vivido e real com o impudor, o arrivismo, a sordícia, a mediocridade e, em suma, com a injustiça, como a fonte criadora e simultaneamente o efeito desses pecados, vícios e imperfeições tão lusos.
Termino como comecei, com uma citação de uma já sentida obra-prima que por estes dias irei terminar:
«Hoje em dia parece que quase só há escritores, e poucas pessoas que lêem livros […] quantos livros saem anualmente dos prelos? Se bem me lembro acho que só na Alemanha são cerca de cem por dia. E nascem mais de mil novas revistas todos os anos! Toda a gente escreve, toda a gente se serve de todas as ideias como se fossem suas, quando lhes convém. Ninguém pensa na responsabilidade que devemos ter para com o todo! Desde que a Igreja perdeu a influência que tinha, não há autoridade neste nosso caos. Não há ideias culturais nem uma ideia de cultura. Nestas circunstâncias, é perfeitamente natural que os sentimentos e a moral andem à deriva, sem âncora, e o mais firme dos homens comece a vacilar.»
Robert Musil, O homem sem qualidades, pág. 728. (Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Março de 2008, vol. I, 843 pp.; tradução de João Barrento; obra original: Der Mann ohne Eigenschaften, 1930-1942.)
«Porque escrevo»
Para soltar a minha raiva;
Para exorcizar os espíritos ocultos que habitam em mim;
Para libertar a ansiedade que sufoca o meu corpo;
Para exprimir os meus desassossegos, dúvidas e tristezas,
Para os poder transformar em momentos de quietude, de certeza e de alegria:
Humanidade, firmeza e júbilo!
Para os poder difundir e gastá-los à tripa forra,
Para não ter de prestar contas:
A uma douta hierarquia,
Ao Estado,
À pátria,
Ao mundo…
A Deus!
Bastar-me-á um leitor:
Porque escrevo e assim quero resistir!
1 comentário:
Longa vida!
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