quarta-feira, 7 de maio de 2008

As Últimas

Samuel BeckettA American Book Review, tal como havia procedido há cerca de dois anos com a publicação das 100 melhores frases de abertura de romances, resolveu lançar mais um desafio, que, desta feita, culminou com a publicação no seu volume 29, n.º 2 do primeiro bimestre de 2008, após idêntico processo de escrutínio, The 100 Best Last Lines from Novels[ficheiro PDF, 225 Kb], ou seja, as 100 melhores frases de encerramento em romances.
Na altura da primeira listagem – a das frases de abertura – lancei aqui na blogosfera, utilizando para o efeito o meu antigo blogue residual Data, o desafio aos restantes companheiros de diferentes blogues que revelassem as frases de abertura – alargando o espectro para o formato conto ou novela, e até ensaio – que lhes havia ficado na retina para, desta forma, construirmos uma lista paralela em que o domínio anglo-saxónico da listagem original se esbatesse.
O desafio teve tanto de agradável como de trabalhoso, cuja recompensa maior esteve na colaboração de cerca de 22 bloggers que com as frases por mim seleccionadas se chegou a um
total de 47 (número primo)… porém, o filme, ou melhor o enredo repetiu-se, deixei a blogosfera, e o empreendimento ficou a meio – neste momento dado por definitivamente encerrado. Surgiram frases de obras de Machado de Assis, Juan Rulfo, Eduardo Mendonza, Thomas Bernhard, Eça de Queiroz, Sandor Márai, Francisco José Viegas, Guillermo Cabrera Infante, Peter Handke, Mário de Carvalho, e por aí fora.
Por outro lado, a colaboração blogosférica estendeu-se à própria lista da ABR, que esforçadamente se materializou em encontrar a tradução oficial portuguesa para as 100 frases originais em língua inglesa. Até nesse campo a reciprocidade foi proveitosa. Muitos foram os que recorrendo às suas bibliotecas, arriscaram a própria vida ao abrir os livros que, decerto, há muito já se encontravam sós perante a força da deterioração dos elementos, a apelar ao surgimento de algumas alergias fora de época: mais de metade das frases da lista inicial encontrou a devida correspondência com a nossa língua, e a grande parte delas que ficou por traduzir nada teve que ver com uma eventual falta de diligência, ficou, isso sim, a dever-se à sua não publicação no nosso inqualificável mercado editorial, decidindo-se não enveredar por uma tradução livre das mesmas. Assim, das dez primeiras apenas ficaram de fora as frases de abertura de Gravity’s Rainbow de Thomas Pynchon (frase 3.ª classificada) – obra que incompreensivelmente subsiste sem uma única edição portuguesa em 35 anos, apesar de existir a versão em português do Brasil da Cia. das Letras (O Arco-Íris da Gravidade, ed. 1998) – e James Joyce com a sua xaropada intraduzível em Finnegans Wake (7.ª classificada) – que me perdoem os joycianos ou aqueles que vislumbram nesta obra o apogeu do experimentalismo linguístico-literário.

Pela experiência do fatigante empreendimento metablogoliterário anterior, desta vez apenas irei deixar ficar a ligação para a lista completa e, porque não?, as três primeiras “últimas frases” (ou frases de encerramento) classificadas e devidamente traduzidas (tradução oficial).
Ao invés da listagem das 100 frases de abertura, a 1.ª classificada das melhores 100 frases de encerramento é daquelas que tenho a certeza de que quem leu a obra jamais deixou fugir da memória. Trata-se do remate do labiríntico O Inominável (L’Innomable, 1953), o terceiro livro da trilogia francesa do autor irlandês – pertencente ao meu Olimpo literário – Samuel Beckett, que se iniciou com Molloy (1951) e Malone está a morrer (Malone meurt, 1951). A 3.ª classificada pertence ao final angustiante de um dos livros da minha vida, cujo autor também convive, a empanturrar-se de ambrósia, no mesmo local com o atrás mencionado, Francis Scott Fitzgerald:

1. …you must go on, I can’t go on, I’ll go on.
«…tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar.»
Samuel Beckett, O Inominável

(Lisboa: Assírio & Alvim, Março de 2002, pág. 189; tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo; obra original: L’Innomable, 1953; obra traduzida citada em inglês: The Unnamable; trans. Samuel Beckett).


2. Who knows but that, on the lower frequencies, I speak for you?
«Quem sabe se, nas frequências mais baixas, não falo também por vós?»
Ralph Ellison, Homem Invisível

(Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Fevereiro de 2006, pág. 466; tradução de Salvato Telles de Menezes e Rui Andrade; obra original: Invisible Man, 1952).


3. So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past.
«Assim vamos teimando, proas contra a corrente, incessantemente cortando as águas, a caminho do passado.»
F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby

(Lisboa: Presença, 5.ª edição, Julho de 1997, pág. 202; tradução de José Rodrigues Miguéis; obra original: The Great Gatsby, 1925).


Antevisão do entretenimento que se segue e com hipótese imediata de aplicação: dentro de dois anos a American Book Review irá lançar a terceira iniciativa paraliterária do género, sob o título “100 Best Mid-Book Lines from Novels”. Neste caso, os autores e críticos literários convidados terão de proceder a um pequeno cálculo matemático antes de estabelecer o arrolamento de frases potencialmente candidatas às 100 melhores.

Um pequeno exemplo, com recurso ao único livro que neste momento estou a ler (e quase a acabar, anda Agathe pela montanha...):

  • Obra: O homem sem qualidades;
  • Autor: Robert Musil;
  • N.º de páginas: 843 (volume I) + 451 (volume II) – total de páginas (T): 1294;
  • Meio do livro (M): página 647 – encontrar a primeira frase inteira e transcrevê-la:
    «O rapaz levantou-se com cuidado e retirou com dificuldade uma grande flor de dentro do casaco.» (Dom Quixote, 1.ª edição, Mar/2008; trad. João Barrento).

Óbices (eventuais):

  • Se o número total de páginas for ímpar, ignorar as casas decimais do quociente (arredondar à unidade por defeito, ou seja, se T=1295; M=647,5; logo M1=647, seria a mesma frase neste caso);
  • Se a página encontrada estiver em branco, saltar para a primeira página que se segue com texto, claro;
  • Se se tratar de um livro de Sebald, Saramago ou, por exemplo, uma obra do escritor austríaco Thomas Bernhard, aconselha-se o uso do bom senso na escolha da frase que figurará entre vírgulas…

3 comentários:

Mónica (em Campanhã) disse...

a melhor última frase de que me lembro é: "somos todos cegos, cegos que vêem" (Saramago, ensaio sobre a cegueira)

André Moura e Cunha disse...

Viva Mónica,
Essa frase pertence ao penúltimo parágrafo, que o encerra:
«Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.»
Depois surge o anticlímax do último parágrafo, quando a mulher do médico põe os olhos no céu, e termina: «O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava.»

António Conceição disse...

Um exercício deste género é sempre um bocado tolo. Por exemplo, a frase de Samuel Beckett aqui citada é fraquíssima. Por outro lado, nenhuma colecção de "finais felizes" pode deixar de abrir com o "... Tal como um cão. E era como se esta vergonha devesse sobreviver-lhe." com que Kafka encerra "O Processo".