Quando em Junho de 2007 o júri do International IMPAC Dublin Literary Award – na altura o prémio literário pecuniariamente mais valioso do mundo a galardoar uma só obra de ficção – anunciou o vencedor, muitos foram os que ficaram de boca aberta pela escolha: um romance, com cavalos no título, de um escritor norueguês quase desconhecido chamado Per Petterson, soava, em primeira mão, a folclore nórdico.
A perplexidade foi ainda maior conhecendo-se a priori a lista dos oito semifinalistas seleccionados pelo referido júri – constituído por seis elementos, que em 2007 incluía o escritor português Almeida Faria – dos quais destaco cinco, para além do vencedor, todos já com edição portuguesa: Arthur & George de Julian Barnes (Asa); O Homem Lento de J.M. Coetzee (Dom Quixote), Nobel da Literatura em 2003; Extremamente Alto, Incrivelmente Perto de Jonathan Safran Foer (Quetzal); Este País Não É para Velhos de Cormac McCarthy (Relógio D’Água); e Shalimar, o Palhaço de Salman Rushdie (Dom Quixote).
Porém, havia um facto anterior que não poderia ser desprezado, o mesmo romance já havia vencido em 2006 o prémio do jornal britânico The Independent para a melhor obra de ficção estrangeira, derrotando autores como David Grossman, Claudel, Murakami, Kertész (Nobel da Literatura em 2002) e o autor marroquino Tahar Ben Jelloun.
Tal como referi aqui, a versão portuguesa chegou (tarde) pelas mãos da Casa das Letras, adiantando-me, desde já, à nota de apreciação, para referir a tradução irrepreensível de Maria João Freire de Andrade* – menção que tem alguma razão de ser, dada a debilidade de algumas das traduções de obras lançadas pela mesma editora, cujo livro de memórias de Gore Vidal, Navegação Ponto por Ponto, é o epítome.
A perplexidade foi ainda maior conhecendo-se a priori a lista dos oito semifinalistas seleccionados pelo referido júri – constituído por seis elementos, que em 2007 incluía o escritor português Almeida Faria – dos quais destaco cinco, para além do vencedor, todos já com edição portuguesa: Arthur & George de Julian Barnes (Asa); O Homem Lento de J.M. Coetzee (Dom Quixote), Nobel da Literatura em 2003; Extremamente Alto, Incrivelmente Perto de Jonathan Safran Foer (Quetzal); Este País Não É para Velhos de Cormac McCarthy (Relógio D’Água); e Shalimar, o Palhaço de Salman Rushdie (Dom Quixote).
Porém, havia um facto anterior que não poderia ser desprezado, o mesmo romance já havia vencido em 2006 o prémio do jornal britânico The Independent para a melhor obra de ficção estrangeira, derrotando autores como David Grossman, Claudel, Murakami, Kertész (Nobel da Literatura em 2002) e o autor marroquino Tahar Ben Jelloun.
Tal como referi aqui, a versão portuguesa chegou (tarde) pelas mãos da Casa das Letras, adiantando-me, desde já, à nota de apreciação, para referir a tradução irrepreensível de Maria João Freire de Andrade* – menção que tem alguma razão de ser, dada a debilidade de algumas das traduções de obras lançadas pela mesma editora, cujo livro de memórias de Gore Vidal, Navegação Ponto por Ponto, é o epítome.
«Toda a minha vida ansiei estar sozinho num lugar como este. Mesmo quando tudo corria bem, como era frequente acontecer.» (pág. 11)
Cavalos Roubados – título concludente escolhido pelo editor português, enquadrável na polissemia do jogo de palavras do título original norueguês (dá o título a este texto) – foi publicado pela primeira vez na Noruega em 2003 e traduzido para inglês em 2005, e daí a sua elegibilidade para o IMPAC de 2007. Trata-se de uma história narrada na primeira pessoa pelo protagonista Trond Sander, que aos sessenta e sete anos se decidiu pela reforma e pela fuga de Oslo, desfazendo-se de todos os seus bens e compromissos que o agarravam à capital, procurando o isolamento numa cabana imersa na paisagem bucólica, verdejante, gélida e despovoada do interior da Noruega: «O meu plano para este lugar é bastante simples. Esta vai ser a minha última casa. Quanto tempo isso poderá demorar é algo acerca do qual ainda não pensei.» (pág. 74)
Aí instalado, na companhia da sua cadela Lyra, previamente adquirida para atenuar o isolamento previsto, Trond é o protagonista de uma estranha coincidência que irá despoletar uma série de rememorações dolorosas: «isso liga-me a um passado que pensei estar muito atrás de mim e afasta para o lado os cinquenta anos com uma ligeireza quase obscena.» (pág. 115). Rememorações que vão tão longe como o ano de 1940, quando o narrador tinha sete anos; passando pela ocupação nazi na Noruega e a sua retirada com a vitória dos Aliados em 1945; o Verão do afloramento de toda a verdade em 1948, desfrutado na companhia do pai, na última vez que estiveram juntos, deixando a mãe e a irmã em Oslo, num local muito parecido com o que actualmente escolheu para morrer; e as duas mortes trágicas ocorridas, no intervalo de um mês, três anos antes do momento presente. O agora é Novembro de 1999, um mês antes da passagem do milénio, segundo o autor e uns tantos milhões de pessoas em todo mundo na altura, que, com a sua ignorância, contribuíram para mais umas vergastadas na tão maltratada Matemática – e já agora, a talho de foice, o mesmo erro é cometido por Frederico Lourenço por haver escolhido, no inquérito levado a cabo pelo blogue Os Livros Ardem Mal, como o melhor livro de ficção portuguesa do século XX A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queirós publicado em 1900, logo, ainda, no último ano do século XIX, embora aqui interesse a influência que a obra exerceu na literatura portuguesa subsequente e nas gerações vindouras, e assim durante o século XX.
Per Petterson, com uma escrita limpa, escorreita, sem o recurso a artifícios de linguagem ou a uma bateria de figuras de estilo, consegue agarrar o leitor do princípio ao fim, alternando com mestria os diversos períodos históricos atrás referidos. E talvez seja nessa limpidez de linguagem onde reside o principal brilho da obra: inocente, jamais estéril, que consegue captar a ingenuidade imanente de um ser intrinsecamente bom, profundamente emocional e sem a mácula da violência dos tempos que corriam.
Aí instalado, na companhia da sua cadela Lyra, previamente adquirida para atenuar o isolamento previsto, Trond é o protagonista de uma estranha coincidência que irá despoletar uma série de rememorações dolorosas: «isso liga-me a um passado que pensei estar muito atrás de mim e afasta para o lado os cinquenta anos com uma ligeireza quase obscena.» (pág. 115). Rememorações que vão tão longe como o ano de 1940, quando o narrador tinha sete anos; passando pela ocupação nazi na Noruega e a sua retirada com a vitória dos Aliados em 1945; o Verão do afloramento de toda a verdade em 1948, desfrutado na companhia do pai, na última vez que estiveram juntos, deixando a mãe e a irmã em Oslo, num local muito parecido com o que actualmente escolheu para morrer; e as duas mortes trágicas ocorridas, no intervalo de um mês, três anos antes do momento presente. O agora é Novembro de 1999, um mês antes da passagem do milénio, segundo o autor e uns tantos milhões de pessoas em todo mundo na altura, que, com a sua ignorância, contribuíram para mais umas vergastadas na tão maltratada Matemática – e já agora, a talho de foice, o mesmo erro é cometido por Frederico Lourenço por haver escolhido, no inquérito levado a cabo pelo blogue Os Livros Ardem Mal, como o melhor livro de ficção portuguesa do século XX A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queirós publicado em 1900, logo, ainda, no último ano do século XIX, embora aqui interesse a influência que a obra exerceu na literatura portuguesa subsequente e nas gerações vindouras, e assim durante o século XX.
Per Petterson, com uma escrita limpa, escorreita, sem o recurso a artifícios de linguagem ou a uma bateria de figuras de estilo, consegue agarrar o leitor do princípio ao fim, alternando com mestria os diversos períodos históricos atrás referidos. E talvez seja nessa limpidez de linguagem onde reside o principal brilho da obra: inocente, jamais estéril, que consegue captar a ingenuidade imanente de um ser intrinsecamente bom, profundamente emocional e sem a mácula da violência dos tempos que corriam.
Não há ressentimento, nem qualquer vestígio de vingança ou sequer de autoflagelação por um passado inamovível, em que se desconhece por completo a importância e o valor do papel desempenhado, nem isso parece importar ao narrador: «Se me irei transformar no herói da minha própria vida, ou se esse papel será representado por outra pessoa, é isso que estas páginas irão mostrar.» (pág. 228) Trata-se da abertura do romance de Charles Dickens, David Copperfield, o escritor preferido de Trond que a sua filha Ellen (fruto do seu primeiro casamento), após o haver encontrado na sua cabana e isto depois de o ter procurado pela Noruega rural, já que aquele partira de Oslo sem avisar, lhe recomenda a releitura – este é, sem dúvida, na minha opinião, um dos episódios mais pungentes e comovedores de todo o livro.
De seguida Trond reflecte sobre as admiravelmente tocantes palavras da filha, depois de lhe haver citado a introdução de Dickens: «Não me é fácil responder àquilo. Não sabia que ela pensava daquele modo. Nunca mo disse. É óbvio que pelo simples motivo de que eu não estava lá quando ela precisara de falar, mas ela não pode saber com que frequência pensei o mesmo e li aquelas primeiras linhas de David Copperfield e depois tive de continuar, página após página, quase petrificado de terror porque tinha de ver se no fim tudo encaixava no seu devido lugar, e como é natural encaixava, mas demorava sempre muito tempo até me sentir seguro. No livro. A vida real era de certo modo diferente.» (pág. 229).
É esta a magia de Cavalos Roubados, o paradoxo da inquietação tranquila, de um raro lirismo na literatura contemporânea. E que melhor resumo nos pode dar a percebida epígrafe dissimulada, porque há uma pequena chamada na ficha técnica que nos alerta, sem mais assunto, para umas frases no interior do texto, cujo sentido é repetido umas páginas mais adiante. As palavras pertencem ao romance de 1934 Viagem no escuro (Voyage in the Dark) da escritora dominicana Jean Rhys (1890-1979):
De seguida Trond reflecte sobre as admiravelmente tocantes palavras da filha, depois de lhe haver citado a introdução de Dickens: «Não me é fácil responder àquilo. Não sabia que ela pensava daquele modo. Nunca mo disse. É óbvio que pelo simples motivo de que eu não estava lá quando ela precisara de falar, mas ela não pode saber com que frequência pensei o mesmo e li aquelas primeiras linhas de David Copperfield e depois tive de continuar, página após página, quase petrificado de terror porque tinha de ver se no fim tudo encaixava no seu devido lugar, e como é natural encaixava, mas demorava sempre muito tempo até me sentir seguro. No livro. A vida real era de certo modo diferente.» (pág. 229).
É esta a magia de Cavalos Roubados, o paradoxo da inquietação tranquila, de um raro lirismo na literatura contemporânea. E que melhor resumo nos pode dar a percebida epígrafe dissimulada, porque há uma pequena chamada na ficha técnica que nos alerta, sem mais assunto, para umas frases no interior do texto, cujo sentido é repetido umas páginas mais adiante. As palavras pertencem ao romance de 1934 Viagem no escuro (Voyage in the Dark) da escritora dominicana Jean Rhys (1890-1979):
«Foi como um cortinado se tivesse fechado e escondido tudo aquilo que eu sempre conhecera. Era quase como renascer. As cores eram diferentes, os cheiros diferentes, a sensação que tocar nas coisas nos dava interiormente era diferente. Não apenas a diferença entre calor, frio; claridade, escuridão; roxo, cinzento. Mas a diferença estava no modo como me sentia assustado e no modo como me sentia feliz.» (pág. 255).
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Uma nota final para as estrelas que encerram esta nota de apreciação. Das 40 obras publicadas este ano que tive a oportunidade de ler, três figuram na categoria de excepção – se se tratassem de hotéis, eram de super luxo –, às restantes 35 que figuram em posições inferiores a esta – das 5 estrelas (Muito Bom) a 1 estrela (Mau) –, uma vez que 2 não foram reveladas para esta contagem, Cavalos Roubados é aquela que se aproxima mais do limiar da genialidade, e só não figura na categoria mais acima dados o fôlego, a profundidade e a intemporalidade das obras de Musil, Cortázar e Donoso que aí são referenciadas; em suma, ainda não dispõe da pátina de genialidade, ainda não obtida pela curta distância temporal entre os dias que correm e o momento em que foi publicada.
Classificação final: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica:
Per Petterson, Cavalos Roubados. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Outubro de 2008, 275 pp. (tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Ut og stjæle hester, 2003).
Uma nota final para as estrelas que encerram esta nota de apreciação. Das 40 obras publicadas este ano que tive a oportunidade de ler, três figuram na categoria de excepção – se se tratassem de hotéis, eram de super luxo –, às restantes 35 que figuram em posições inferiores a esta – das 5 estrelas (Muito Bom) a 1 estrela (Mau) –, uma vez que 2 não foram reveladas para esta contagem, Cavalos Roubados é aquela que se aproxima mais do limiar da genialidade, e só não figura na categoria mais acima dados o fôlego, a profundidade e a intemporalidade das obras de Musil, Cortázar e Donoso que aí são referenciadas; em suma, ainda não dispõe da pátina de genialidade, ainda não obtida pela curta distância temporal entre os dias que correm e o momento em que foi publicada.
Classificação final: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica:
Per Petterson, Cavalos Roubados. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Outubro de 2008, 275 pp. (tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Ut og stjæle hester, 2003).
Nota: esta obra será vítima da habitual citação dominical, amanhã, portanto.
[adenda: 22:50]: *Alertado por e-mail, dei conta que ficou por referir, no que à tradução diz respeito, que a versão editada pela Casa das Letras foi elaborada a partir da versão inglesa, Out Stealing Horses, da poetisa e tradutora Anne Born (tradutora de norueguês e dinamarquês, traduziu, entre outras, obras de Isak Dinesen/Karen Blixen), cuja tradução do 2.º romance de Petterson (Cavalos Roubados) foi objecto de enorme aclamação no meio literário anglófono, realçada pelo próprio júri do IMPAC Award. Quanto às minhas referências neste campo apenas se circunscrevem (constava do espírito) à comparação entre a tradução inglesa (que já havia lido em deambulações livreiras) e a tradução de Maria João Freire de Andrade – infelizmente, não sei norueguês, e como diz Chico Buarque «devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira.»
[adenda: 22:50]: *Alertado por e-mail, dei conta que ficou por referir, no que à tradução diz respeito, que a versão editada pela Casa das Letras foi elaborada a partir da versão inglesa, Out Stealing Horses, da poetisa e tradutora Anne Born (tradutora de norueguês e dinamarquês, traduziu, entre outras, obras de Isak Dinesen/Karen Blixen), cuja tradução do 2.º romance de Petterson (Cavalos Roubados) foi objecto de enorme aclamação no meio literário anglófono, realçada pelo próprio júri do IMPAC Award. Quanto às minhas referências neste campo apenas se circunscrevem (constava do espírito) à comparação entre a tradução inglesa (que já havia lido em deambulações livreiras) e a tradução de Maria João Freire de Andrade – infelizmente, não sei norueguês, e como diz Chico Buarque «devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira.»
Noutro aspecto, seria, como parece óbvio, preferível que se procedesse à tradução directa da língua original, mesmo que, como é o caso presente, a primeira tradução (do norueguês para o inglês) seja a todos os títulos irrepreensível, há sempre algo que se perde. Na tradução de uma tradução essas perdas serão, decerto, maiores.
1 comentário:
O resto do texto é a sua opiniao pessoal, e por isso indisputável, mas estou dividido em relacao a afirmacao "ainda não dispõe da pátina de genialidade, ainda não obtida pela curta distância temporal entre os dias que correm e o momento em que foi publicada". De facto, nao estou dividido, mas precisaria de mais justificacao, antes de concordar. a partida, alias, nao concordo.
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