A Editorial Presença acabou de anunciar que já se encontra disponível no mercado a segunda obra da sua recentemente inaugurada colecção “Obras Literárias Escolhidas” – a estreia deu-se com o romance, esgotadíssimo no mercado nacional, Trópico de Câncer (Tropic of Cancer, 1934) de Henry Miller.
Ora, a tal segunda obra é o excepcional romance Os Anos (The Years, 1937), de Virginia Woolf – o seu penúltimo romance, e o último publicado antes da sua morte trágica no Rio Ouse em 1941. A edição da Presença conta com a tradução de Fernanda Pinto Rodrigues e estende-se por 376 páginas, com o preço de venda ao público de 20 euros.
O que não se consegue entender é a oportunidade de publicação desta obra, uma vez que no mercado nacional de livros o mesmo romance, editado pela Relógio D’Água, distribuído por 414 páginas, com uma boa tradução de Pedro Elston, encontra-se perfeitamente disponível. Não há livraria, de média ou grande dimensão, que não o disponha, inclusive, em escaparate, pelo preço do editor de 17 euros.
Mas, comparemos as versões através das frases de abertura:
A versão original da abertura:
Ora, a tal segunda obra é o excepcional romance Os Anos (The Years, 1937), de Virginia Woolf – o seu penúltimo romance, e o último publicado antes da sua morte trágica no Rio Ouse em 1941. A edição da Presença conta com a tradução de Fernanda Pinto Rodrigues e estende-se por 376 páginas, com o preço de venda ao público de 20 euros.
O que não se consegue entender é a oportunidade de publicação desta obra, uma vez que no mercado nacional de livros o mesmo romance, editado pela Relógio D’Água, distribuído por 414 páginas, com uma boa tradução de Pedro Elston, encontra-se perfeitamente disponível. Não há livraria, de média ou grande dimensão, que não o disponha, inclusive, em escaparate, pelo preço do editor de 17 euros.
Mas, comparemos as versões através das frases de abertura:
A versão original da abertura:
«It was an uncertain spring. The weather, perpetually changing, sent clouds of blue and of purple flying over the land. In the country farmers, looking at the fields, were apprehensive; in London umbrellas were opened and then shut by people looking up at the sky.»
A versão de Pedro Elston (Relógio D'Água) da abertura:
«Estava uma Primavera incerta. O tempo, em permanente mudança, fazia voar sobre a terra nuvens de azul e violeta. No campo os lavradores ao olharem para as terras ficavam apreensivos; em Londres os guarda-chuvas abriam-se e fechavam-se nas mãos das pessoas que olhavam para o céu.»
A versão de Fernanda Pinto Rodrigues (Presença) da abertura:
«Era uma Primavera irregular. O tempo, em constante mudança, punha nuvens azuis e purpúreas a voar sobre a terra. No interior, os agricultores olhavam, apreensivos, para os campos; em Londres, os guarda-chuvas eram abertos e depois fechados por pessoas que olhavam para o céu.»
A quem serve esta duplicação de esforços? Será a primeira versão uma má tradução? E se esse for o caso, quem a classificou como tal? O público? A crítica? Uma qualquer reunião casual de editores sentenciadores?
Já no início do ano havia dado conta de um caso ainda mais paradigmático de desperdício de eucaliptos para a produção de pasta de papel: as versões disponíveis no mercado nacional da novela de Lev Tolstói A Morte de Ivan Ilitch. Ele há para todos os gostos, de Adolfo Casais Monteiro, de António Pescada, de Pedro Tamen, de João Maia, de Nina e Filipe Guerra, e por aí fora.
Não há critério razoável que me permita discernir pela bondade desta duplicação, condição que é agravada pela quantidade incomensurável de obras de autores consagrados, há muito pertencentes ao cânone literário universal, que nunca viram a luz do dia em língua portuguesa deste lado do Atlântico.
Bastar-me-ão dois singelos exemplos entre dezenas: a obra de Thomas Pynchon após o romance O Leilão do Lote 49 (The Crying of Lot 49, 1966) e obras como The Adventures of Augie March (1953), Humboldt's Gift (1975) ou The Dean's December (1982), entre outras, do inigualável Saul Bellow (Prémio Nobel da Literatura em 1976).
Nas mãos do leitor fica a decisão: comprar o livro Os Anos de Woolf por 17 ou por 20 euros? Relógio D’Água ou Presença? 414 ou 376 páginas? Pedro Elston ou Fernanda Pinto Rodrigues?
Já no início do ano havia dado conta de um caso ainda mais paradigmático de desperdício de eucaliptos para a produção de pasta de papel: as versões disponíveis no mercado nacional da novela de Lev Tolstói A Morte de Ivan Ilitch. Ele há para todos os gostos, de Adolfo Casais Monteiro, de António Pescada, de Pedro Tamen, de João Maia, de Nina e Filipe Guerra, e por aí fora.
Não há critério razoável que me permita discernir pela bondade desta duplicação, condição que é agravada pela quantidade incomensurável de obras de autores consagrados, há muito pertencentes ao cânone literário universal, que nunca viram a luz do dia em língua portuguesa deste lado do Atlântico.
Bastar-me-ão dois singelos exemplos entre dezenas: a obra de Thomas Pynchon após o romance O Leilão do Lote 49 (The Crying of Lot 49, 1966) e obras como The Adventures of Augie March (1953), Humboldt's Gift (1975) ou The Dean's December (1982), entre outras, do inigualável Saul Bellow (Prémio Nobel da Literatura em 1976).
Nas mãos do leitor fica a decisão: comprar o livro Os Anos de Woolf por 17 ou por 20 euros? Relógio D’Água ou Presença? 414 ou 376 páginas? Pedro Elston ou Fernanda Pinto Rodrigues?
11 comentários:
pelo contrário, acho muito positivo que haja várias traduções simultâneas, é sinal de dinâmica na prática editorial, dá possibilidade de escolha ao leitor, permite detectar com mais facilidade os critérios e os erros de tradução, pode acrescentar pontos de vista novos a uma obra que julgávamos eternamente canonizada. Cada tradutor, cada leitor, cada intérprete. Sei que em França e na Inglaterra acontecem muito as traduções simultâneas. e que os espaços de discussão literária chegam a polemizar sobre esta ou aquela tradução.
Filipe Guerra
entendo a opinião do Filipe Guerra, mas não posso deixar de concordar com o André. e nem quero aqui falar outra vez de Bukowski...
O objectivo deste texto não era o de zurzir na pertinência das traduções simultâneas, tout court, mas o de chamar a atenção para a prática reiterada das nossas editoras na edição das mesmas obras sem se apontar uma razão subjacente dessa repetição.
Aquilo que aqui quis expressar, e talvez não tivesse sido muito claro – mea culpa – usando como exemplo o romance de Woolf, Os Anos, foi que à luz de uma lógica torcida, as editoras parecem querer digladiar-se através da edição das mesmas obras – mesmo que esse belicismo editorial seja apenas aparente e fruto dos devaneios de um amante de literatura, mas torna-se na hipótese mais razoável para explicar a estranheza que me provoca uma situação dessas.
Ora, no caso referido, a versão de Os Anos da Relógio D’Água é de 1992, portanto recente. Mas se a tradução da obra fosse de alguma forma considerada como deturpadora do espírito que Woolf lhe quis atribuir, encontraria, desde logo, um motivo para que a mesma ou outra editora a editassem com uma nova tradução. Pelo que sei não há, neste caso, nada a apontar à tradução de 1992 de Pedro Elston – quando muito haveria a necessidade de proceder a correcções, tal como me parece urgente que assim se proceda à tradução quase coetânea de As Ondas de Francisco Vale.
O mesmo, por exemplo, já não se poderia dizer das más traduções iniciais de Musil (da Livros do Brasil, por exemplo) que João Barrento, com todo o seu saber, tão bem tem impedido que remanesça no mercado, através de novas traduções de raiz; ou na reparação da obra de Proust feita por Pedro Tamen; ou nos clássicos russos onde o Filipe, conjuntamente com Nina Guerra, tem ajudado a clarificar e a estabelecer um ponto de ordem e até um cânone – honra lhes seja feita, também extensível ao António Pescada em certos autores. As traduções anteriores eram más, feitas, normalmente, a partir das versões francesas e jamais da língua original. Outras, resultavam de simples adaptações de versões brasileiras, como no caso de grande parte das obras de Thomas Mann que ainda ninguém resolveu mexer.
No que diz respeito a A Morte de Ivan Ilitch, as traduções anteriores poderiam ser vetustas, mas considero não ser razão para surgirem duas novas em simultâneo. O Filipe e Nina Guerra traduziram-na notavelmente para a Relógio D’Água e logo a seguir a Dom Quixote (LeYA), com aquele impulso mercantilista, escudado pelas escolhas de António Lobo Antunes que hoje, vê-se, ficou-se por duas obras (Tolstói e Daudet), lançou a de António Pescada, por que razão? Competição mesquinha entre editoras? Porque não utilizar esse esforço para a reedição (com nova tradução) de Ressurreição?
E a tradução das obras editadas pela Presença de DeLillo? São de pôr os cabelos em pé (só espero que a Sextante ao reeditar Ruído Branco, como prometeu, não use a mesma tradução que, lá está, data de 1991, é recente, mas estas sim merecessem uma nova tradução).
O mercado português é reduzidíssimo, incomparavelmente inferior, menos que proporcional (e isso não é novidade) ao francês e ao inglês. Já nem é preciso ir tão longe, podemos ficar pelos nossos vizinhos espanhóis. Até pode ser que exista a duplicação de traduções em Espanha (mercado que conheço bem) mas não há um clássico por traduzir, não ficou por traduzir para a língua de Cervantes uma única obra dos escritores pertencentes ao denominado cânone ocidental. E se não há, por um lado, obras dos Sparks, Modignanis, Allendes, Coelhos e quejandos por traduzir, também, não ficam de fora (por falta de tradução ou por falta de reedição) os Pynchons, Roths, Nabokovs, James, Updikes, DeLillos, Bukowskis, Vonneguts, Hellers, Gaddis, Foster Wallaces, Capotes, etc.
O problema português é o da míngua, e a repetição (benfazeja como refere o Filipe para a troca de pontos de vista sobre a mesma obra) é uma mera excentricidade, um ultrapassar de etapas essenciais para o amadurecimento deste pobre mercado editorial.
Concordo com você e digo mais: um tradutor brasileiro também deveria levar em conta o que já foi traduzido por um português, e vice-versa, para que houvessem mais clássicos em português.
manuel a. domingos, nos poetas, então, cada leitor (que saiba ler no original)é mesmo cada tradutor.
Mais uma vez, acho que devemos separar as águas, e não misturar na argumentação aspectos comerciais, de défice de traduções de outros autores que não os mais traduzidos, etc, com o facto EM SI da duplicação ou triplicação da tradução de um livro, que só pode ser positivo. Se isso resulta da competição doentia entre editoras, o que nos importa a nós, leitores? (não estou a falar sequer do ponto de vista de tradutor). Gostaria, por exemplo, de traduzir, ou de ver novamente traduzido, o Cyrano de Bergerac (trad. de Vasco Graça Moura), quanto mais não fosse para desfazer equívocos e incertezas de sentido, de ritmo e de ambiente. E, por que não?, seria bem-vinda uma nova tradução de Proust. E alguém duvida da boa qualidade da tradução de P. Tamen? Ou será que a tradução dele, por ser excelente, apanhou a 100 por cento o Proust e se tornou canónica? Em tradução, isso é impossível.
caro filipe:
concordo consigo nesse ponto: cada leitor de poesia é um tradutor. mas quando me referi a Bukowski nem estava a pensar na sua poesia. estava a pensar na sua prosa. um romance como Ham on Rye é impensável não estar traduzido. quanto aos outros, cuja qualidade é discutível (e muito), não refiro. mas Ham on Rye...
OK, Filipe. Concordo com quase tudo o que disse. No entanto, o ênfase que pretendi dar com este texto foi à do défice de traduções de obras de escritores internacionais consagrados e das suas respectivas obras.
A duplicação ou a triplicação de traduções e a falta de tradução de obra essenciais da literatura universal (como destaca bem o Manel, com o incrivelmente não traduzido Ham on Rye de Bukowski) não são, certamente, fenómenos mutuamente exclusivos, aliás deveriam ser coexistentes. Só acho que a duplicação é um desperdício de recursos num mercado que padece de tanta míngua de literatura de qualidade, principalmente dos autores estrangeiros consagrados.
A Dinamarca, por exemplo, adoptou uma política curiosa na tradução dos grandes autores de língua inglesa: antecipa a estreias mundiais das obras na língua original, e isto porque o anterior desfasamento entre a publicação do original e as tradução e edição da obra em dinamarquês levava a que o seus cidadãos lessem preferencialmente o original em inglês. Ora, as autoridades consideraram um verdadeiro perigo que este fenómeno se alastrasse, levando a juventude a abandonar progressivamente o dinamarquês em favor do inglês (a língua franca dos nossos dias). É óbvio que a dimensão dos mundos que falam o dinamarquês e o português é díspar, assim como o ensino da língua inglesa, mas trata-se, de facto, de um sinal que poderá por em risco a sobrevivência de muitas línguas, especialmente as menos faladas, com contágio natural para as restantes. Até os chauvinistas franceses andam preocupados… vide, caso Google.
Parece que estamos todos de acordo, mas cada qual está a puxar a brasa para onde lhe interessa. Na verdade, quem pode não estar de acordo com o facto de que há obras essenciais ainda não traduzidas? Mas meia dúzia de traduções duplas serão mesmo a causa disso? Mas por que raio, AMC, os «franceses» têm de andar sempre aparelhados com o epíteto de «chauvinistas»? Chauvin,o soldado que deu origem ao termo (autocrítico e auto-irónico), era francês, sim, mas actualmente há sem dúvida muitos países e povos que, no respeitante ao conceito, pedem meças aos franceses.
nao compreendo o seu problema com isto tudo. as editoras sao negócios que se regem, essencialmente, por principios financeiros, e neste caso eu arriscaria dizer que a Presenca viu numa nova traducao e edicao de "As horas" uma boa oportunidade de negócio.
compreendo a sua reserva intelectual quanto ao facto de, num mundo idealista, se estarem a desperdicar recursos (isto é: tradutores) em obras que já estao traduzidas, mas o amc nao se pode esquecer que essa alocacao de recursos nao obedece a um critério intelectual-literário-educacional-cultural, mas sim económico.
Aqui, diria que sim, é pena que se perca tempo em dois "As horas" quando outras obras ficam por traduzir, mas nao se pode atirar pedras à Presenca. A funcao da Presenca nao é educar o publico portugues e fazer cá chegar o maior numero de obras possivel, a funcao da Presenca é fazer dinheiro através da venda de livros.
Tem toda a razão El-Gee. E já deixiei aqui o meu meA culpa nas réplica e tréplica ao Filipe Guerra (insigne tradutor dos grandes mestres russos).
E como eu entendo os critérios económico-financeiros… afinal, essa é a minha profissão… Só não entendo a escolha de Os Anos que está no mercado pela Relógio D’Água com uma boa tradução, em detrimento de outros, como por exemplo, para nos mantermos em Virginia Woolf, o caso de A Viagem… para já nem falar da qualidade do livro (objecto, propriamente dito, capa, papel, tipo de letra, etc.) editado pela Europa-América.
Todavia, não creio – infelizmente o digo, apesar de não estar presente no mercado editorial – que a edição de Os Anos possa obedecer a critérios (económicos) de rentabilidade. De uma maneira simplista, os custos associados à edição (produção do livro, tradução, distribuição, eventuais direitos, etc.) venham a ser inferiores aos proveitos arrecadados pelas vendas.
Mas mesmo como economista, inscrito na ordem, que acumula com uma paixão desmedida pela literatura e pela representatividade da língua portuguesa no mundo, o eventual desperdício de recursos faz soar as minhas campainhas de alarme. Chamemos-lhe, como está na moda, “deformação profissional”.
Compreendo. nunca duvidei que alguem com a sua capacidade tivesse descurado esta questao, mas achei por bem relembra-la. obrigado pela resposta. ja agora, peco desculpa por me referir sempre a "as horas" - fiz confusao com o livro do cunningham, mas obviamente o argumento nao se modifica.
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