sexta-feira, 19 de maio de 2006

Sabedoria Feminina em Eco

Como o prometido é devido, coloco neste texto um excerto de uma conversa mantida entre Casaubon e Lia – marido e mulher – a respeito das simbologias conspirativas, antes de chegar a Tiferet – beleza e compaixão –, em pleno Geburah – julgamento, força e poder:

«(…)
“Mas passemos aos números mágicos de que gostam tanto os teus autores. Um és tu que não és dois, um é o teu coisinho aí, uma é a minha coisinha aqui e um são o nariz e o coração, e assim vê bem quantas coisas importantes são um. E dois são os olhos, as orelhas, as narinas, os meus seios e as tuas bolas, as pernas, os braços e as nádegas. Três é o mais mágico deles todos porque o nosso corpo não o conhece, não temos nada que seja três coisas, e devia ser um número misteriosíssimo que atribuíamos a Deus, seja onde for que vivamos. Mas se pensares bem, eu tenho só uma coisinha e tu tens só um coisinho (…) e se pusermos estas duas coisinhas juntas sai um novo coisinho e tornamo-nos três. Mas então é preciso um professor universitário para descobrir que todos os povos têm estruturas ternárias, trindades e coisas do género? Mas as religiões não as faziam com o computador, era tudo gente de bem, que fodia como deve ser, e todas as estruturas trinitárias não são nenhum mistério, são a narração do que fazes tu, do que faziam eles. Mas dois braços e duas pernas fazem quatro, e eis que quatro é na mesma um belo número, especialmente se pensares que os animais têm quatro patas e andam a quatro as crianças pequenas, como sabia a Esfinge. Cinco nem vale a pena falar, são os dedos da mão, e com as duas mãos tens o outro número sagrado que é dez, e têm de ser por força dez até os mandamentos, senão se fossem doze quando o padre diz um, dois, três e mostra os dedos, chegado aos dois últimos tinha de ir buscar a mão do sacristão. Agora pega no corpo e conta todas as coisas que saem do tronco, com braços, pernas, cabeça e pénis são seis, mas para a mulher são sete, por isso acho que entre os teus autores o seis nunca foi tomado a sério senão como o dobro de três, porque só funciona para os machos, que não têm nenhum sete, e quando mandam eles preferem vê-lo como número sagrado, esquecendo-se de que também as minhas mamas saem para fora, mas paciência. Oito – meu deus, não temos nenhum oito… não, espera, se os braços e as pernas não contarem por um , mas sim por dois, por causa do cotovelo e do joelho, temos oitos grandes ossos longos que se prolongam para fora do corpo e pega nestes oito mais o tronco e tens nove, que depois se puseres a cabeça faz dez. Mas sempre andando à volta do corpo obténs todos os números que quiseres, pensa nos buracos?”
“Buracos?”
“Sim, quantos buracos tem o teu corpo?”
“Bem”, contei. “Olhos narinas orelhas boca e cu, faz oito.”
“Estás a ver? Outra razão por que o oito é um belo número. Mas eu tenho nove! E com o nono faço-te vir ao mundo, e é por isso que nove é mais divino que oito! Mas queres a explicação de outras figuras frequentes? Queres a anatomia do teu menir, de que falam sempre os teus autores? Está-se de pé de dia e deitado à noite – até o teu coisinho, não, não me digas o que faz de noite, o facto é que trabalha direito e descansa deitado. E portanto a estação vertical é a vida, e está em relação com o sol, e os obeliscos erguem-se para cima como as árvores, enquanto a estação horizontal e a noite são sono e portanto morte, e todos adoram menires, pirâmides e colunas, e ninguém adora varandas e balaustradas. Já ouviste falar de um culto arcaico do balcão sagrado? Vês? E até porque o corpo não to permite, se adorares uma pedra vertical, mesmo que sejam muitos todos vêem, enquanto se adorares uma coisa horizontal só a vêem os da primeira fila e os outros empurram dizendo eu também e não é um bom espectáculo para uma cerimónia mágica…”
“Mas os rios…”
(…)»

In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, Difel

Um espanto!

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