Na manhã seguinte, havendo dado a solução final como irrefutável, já me preparava para ler o segundo livro referido neste texto, no entanto o rapazito louro de costas nuas, de macacão envergado – e por favor nada de pensamentos obscenos ou de asseverações sobre a minha presuntiva apetência sexual transgressora –, chamava por mim, apelando à minha irritante teimosia de nunca deixar um livro a meio. E assim foi, a Ali poderia esperar mais dois dias.
Robinson escreve pela mão de um sacerdote baptista que pressentindo a iminência da morte resolve transpor para o papel as suas memórias em tom epistolar, cujo destinatário é o seu filho ainda impúbere, resultado de uma união tardia com uma mulher com idade suficiente para ser sua filha.
O livro, de estilo confessional, é um tratado à utilidade da experiência de vida para que, através dela e dos seus ensinamentos – apesar de deslocados no tempo –, os desafios que se nos deparam a cada piscar de olhos não se revelem como muros de pedra intransponíveis que nos imobilizem em definitivo sem vontade lutar, resignados perante as forças exteriores e esquecendo que a vida deverá ser uma troca equilibrada de ensinamentos numa relação biunívoca entre o nosso ser e o ambiente que nos rodeia.
Terminado o livro, iniciei a leitura do romance de Ali Smith. Se até aí o meu estado de espírito era lúgubre, sombrio e desassossegado, A Acidental foi o objecto que me retirou do quarto escuro e bafiento e me transpôs para um prado verde a perder de vista, sentindo uma brisa fresca e deleitosa a correr-me pela face.
O vencedor do Whitbread Novel Award de 2005 e finalista (shortlist) do Booker Prize de 2005 é um hino à criatividade da escrita, à polivalência narrativa e à destreza de falar com génio e humor sobre assuntos sérios e perturbantes, como a massificação de relacionamentos e de comportamentos na sociedade contemporânea.
Neste livro Ali Smith é mágica, leve e surpreendente. Posso afirmar, sem receio de errar por muito, que Smith é a Murakami das ilhas britânicas, porém menos carregada e séria.
Tal como em Murakami, neste romance de Smith o transcendental pulula sobre toda a narrativa, coabitando em perfeita harmonia com a enfadonha e cansativa rotina diária. A cada parágrafo damos por nós à procura das entrelinhas, das mensagens subliminares, do imaginário que por sobre nós vagueia sem que disso dêmos caso, mas existe porque possuímos a particularidade inata de poder sonhar que se constitui como uma espécie etérea de oxigénio que alimenta a nossas células de características inimitáveis.
Ali Smith, traz-nos um romance a quatro vozes, com estruturas narrativas díspares, que nos dão o enquadramento da intriga sob a perspectiva de diversos ângulos como numa obra cinematográfica.
É simplesmente genial e de leitura imprescindível!
Para terminar, fazendo justiça, gostaria de destacar dois pontos: os excelentes trabalho e nota de tradução (“Ali Smith e o tradutor (in)visível”) de Tânia Ganho; as qualidades gráfica, de composição e estética proporcionadas pela neófita Editora Bico de Pena. Atrevo-me a dizer que é uma pedrada no charco no acabrunhado panorama editorial português, a par de outras editoras que foram surgindo no último ano, designadamente a Objecto Cardíaco.
Sobre a Bico de Pena deixo aqui uma breve descrição retirada daqui:
«Esta editora escreve, por enquanto, com bicos de quatro penas diferentes: Pena de Pato – Ficção literária. Com a pena de pato – a matéria-prima mais comum para os bicos de pena – editamos uma literatura que é tudo menos comum... Pena de Pavão – Literatura gay. Um lilás discreto, mas indubitavelmente lilás, para criar algum contraste numa terra de matiz cinzenta. O melhor, e só o melhor, da literatura gay de todo o mundo. Pena de Galo – Literatura erótica. Dos clássicos do erotismo aos mais contemporâneos artesãos literários do amor, são pintados com a pena de galo todos os matizes da sensualidade. Pena de Cisne – Literatura clássica. Um novo cânone de clássicos, um contraponto aos tomos vetustos que compõem as bibliografias das nossas vidas.»
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