terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Representação de um “banho de sangue”

É um facto indesmentível, o esquivo escritor norte-americano Cormac McCarthy (n. 1933), ausentado do mundo no seu rancho no Novo México, está definitivamente na moda em Hollywood.
Depois de Belos Cavalos (All the Pretty Horses, 1992) – primeiro romance da trilogia da Fronteira –, vítima de uma paupérrima adaptação ao cinema em 2000 pelo vaidoso Billy Bob Thornton, com argumento de Ted Tally (o mesmo que adaptou o romance de Thomas Harris para o inesquecível O Silêncio dos Inocentes do sossegado Jonathan Demme) e um conjunto de interpretações a roçar o cabotinismo do, na altura, auspicioso Matt Damon, da irritante Penélope Cruz e do quase sempre deslustrado Henry Thomas (porventura, ainda sente a falta do seu amigo alienígena), apareceu a celebrada e consagrada adaptação de Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men, 2005) pelas mãos dos desinquietos irmãos Coen.

[Depois da adjectivação de um conjunto de personagens que pululam pelas famosas colinas californianas, o desenvolvimento do texto segue o seu percurso, para os parâmetros deste blogue, normal.]

Falemos, então, de McCarthy e de parte das suas dez obras de ficção, que se vai transformando em texto para cinema, mais conhecido por argumento.
Em rodagem ou em pré-produção encontram-se mais quatro adaptações de outros tantos romances do escritor de Providence, Rhode Island:

  • Outer Dark (1968), o primeiro romance do autor, adaptação em curta-metragem, com realização e argumento a cargo do desconhecido (pelo menos, por mim) Stephen Imwalle;
  • A Estrada (The Road, 2006; ed. port. Relógio D’Água), realizado pelo australiano John Hillcoat;
  • Cities of the Plain (1998) – terceiro livro da trilogia da Fronteira – a realizar pelo neozelandês Andrew Dominik (realizou, por exemplo, o excelente O Assassínio de Jesse James…)
  • Meridiano de Sangue (Blood Meridian, 1985; ed. port. Relógio D’Água), a realizar por Ridley Scott? Já não…

Este texto do José Mário Silva contém uma citação de parte de uma mensagem de correio electrónico que lhe enviei e que remete o leitor para um texto que aqui publiquei em Agosto deste ano. A sua publicação deveu-se ao horror que se apoderou de mim e que, por excitação, se antecipou à estreia, para nem falar da rodagem, do filme Meridiano de Sangue quando foi anunciado o realizador britânico Ridley Scott para dirigir o filme.

Ponto de ordem: a razão de ser do que se segue (e não só): perda de actualidade do que aqui escrevi em Agosto. Retomo…
Porém, a indústria de Hollywood é pródiga em rumores provindos dos bastidores da indústria e em previsões proto-astrológicas. Pelos vistos os produtores de Meridiano de Sangue terão substituído Scott por Todd Field – sim, esse mesmo, o de Pecados Íntimos (Little Children, 2006), baseado no romance homónimo de Tom Perrotta.
A que se ficou a dever esta substituição? Ninguém, por enquanto, sabe, mas parece ter provocado uma certa azia ao criador de Blade Runner. Scott, em entrevista à revista Empire, diz a respeito do filme (ver o vídeo):



«Está escrito. Penso tratar-se de um [argumento] bastante complexo, e talvez seja algo que deva permanecer apenas como romance. Se se opta por [levar ao grande ecrã] Meridiano de Sangue ter-se-á de representar na íntegra o banho de sangue e não há solução para o banho de sangue, ele faz parte da história, sem tirar nem pôr. Quando se começa a escalpar em cerimónias de casamento mexicanas isso irá exigir a definição de um limite.» [tradução aproximada: AMC]

Retirada estratégica e voluntária? Ou simples vislumbre, por parte de quem financia, de um inevitável e desaconselhável produto a raiar o paroxismo do sanguinário, se for deixado às mãos do primeiro nome a quem se pensou entregar a direcção da película? (Se Maxime du Camp lesse, do inescrutável lugar onde se encontra, este blogue, teria dito: «corrige lá isso, os nomes não têm mãos»; é claro que, tal como GF, não acataria a admoestação literária.)
Analisando as palavras e a postura de Scott parece que daí advém alguma forma de ressentimento por eventual recusa, e um aviso à navegação. O argumento de Monahan também parece haver sido abandonado, cabendo a Field a dupla tarefa: escrever o guião e realizar.
De Scott conta-se uma história a propósito da produção e da rodagem de Hannibal (2001). O realizador leu e recusou filmar, pela violência que reservava, o argumento escrito por David Mamet, que foi integralmente refeito por Steven Zaillian. Mesmo assim, Liotta, despojado de grande parte do crânio – previamente cortado por Hannibal (Anthony Hopkins) –, come o seu próprio cérebro preparado pelo famoso canibal, numa das cenas mais horripilantes e grotescas de toda a história do cinema – a que se juntou uma posterior fase de hilaridade e escárnio pelo picaresco do seu conteúdo.

E tanta verborreia e palavra gasta, apenas para mencionar a desactualização do tal texto de Agosto deste ano.

Mas, se Meridiano de Sangue for parar à grande tela, estou curioso, não tanto pela forma como Field, ou, eliminado mais um realizador, outro que se lhe possa seguir, irá tentar amenizar a brutalidade imanente do romance em imagens – essa, será, como refere Scott, tarefa quase impossível –, mas pelos actores que irão fazer parte do elenco e representar papéis tão fortemente idiossincráticos como o misterioso, diabólico e pedófilo Juiz Holden, o celerado e sanguinário Glanton e o “rapaz”, o provável protagonista, de quem se conhecem os antecedentes e que se junta ao bando no início da narrativa.

Para terminar em beleza, deixo ficar uma das três epígrafes escolhidas por McCarthy para o seu extraordinário romance, que se baseia, imagine-se, em factos verídicos:

«As vossas ideias são apavorantes e os vossos corações fracos. Os vossos actos de clemência e crueldade são absurdos, executados sem ponderação, como se fossem irresistíveis. Por fim, vocês temem cada vez mais o sangue. O sangue e o tempo.»
Paul Valéry
in Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste, p.13
[Lisboa: Relógio D’Água, Junho de 2004, 391 pp.; tradução de Paulo Faria; obra original: Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985]

Dança, dança sempre. Diz que nunca vai morrer.

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