segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Alçada

Não li muitos livros de Alçada Baptista, embora tenha lido alguns textos, sobretudo ensaios e crónicas do tempo. Porém, o seu nome ficará indelevelmente marcado na minha memória de bibliómano pelo seu romance de 1994, não lido há muitos anos, O Riso de Deus.
Recordo-me sobretudo de uma narrativa translúcida, sem atavios, directa, que a certa altura, pela delicadeza do tema central e a forma descomplexada como é retratado – o amor sem barreiras ou limites, como um sentimento avassalador que não pode conhecer fronteiras estatuídas pelo homem – nos atinge de uma forma brutal, como se de um verdadeiro murro no estômago se tratasse.
Não li muito mais. Dos seus escassos romances, li o Tecido do Outono (o seu último romance), para além do acima mencionado. Li, contudo (com vontade de reler), o seu último livro, uma colectânea de textos A Cor dos dias: Memórias e Peregrinações, que anda à volta da suas inquietações ensaísticas do início de carreira: a religião, a política, o relacionamento com o Estado Novo e as suas figuras, as mulheres… sempre as mulheres. A propósito da sua publicação, em entrevista dada ao JL, pressagia (ou tratou-se apenas de, como dizia “A Voz”, vivi uma vida em cheio, e termino como comecei): «Acho que este é o meu último livro.»
Para memória futura deixo ficar os três primeiros parágrafos do deslumbrante O Riso de Deus (que em parte, já havia referido aqui em Agosto de 2006). Livro dedicado a Edgar Morin, e a Zélia e Jorge Amado. Ao primeiro por causa da sua amizade, aos segundos porque «souberam descobrir que o afecto é o nosso destino.» [destaque meu]
Com epígrafes de Pessoa e Borges e:

«O homem pensa, Deus ri.»
Provérbio judeu

António Alçada Baptista

(Covilhã, 29 de Janeiro de 1927 – Lisboa, 7 de Dezembro de 2008)

«A letra de Deus nem sempre é decifrável e ninguém conhece a língua em que escreveu a alma humana. Às vezes, a gente julga que as palavras chegam para esclarecer a vida mas, hoje, estou certo de que muitas coisas permanecem por detrás de palavras que ainda não foram feitas e outras, por detrás de palavras de que perdemos o uso.
Quando penso na minha vida e nas circunstâncias atribuladas do tempo que me foi dado viver, pressinto o que será a incomodidade dum bêbedo no dia seguinte ao da sua bebedeira, porque nos encharcámos de razão e esperança terrena e tudo ficou aquém de todas as promessas: tudo mais pequenino e mais cruel. Pior: é uma sensação misturada da ressaca do bêbedo com uma certa forma de orfandade: um desamparo perante a perda da herança prometida no texto fundador que fixou o projecto da nossa condição, como se, ao decretar-se a morte de Deus, ele tivesse levado consigo todos os seus bens. É isso que me leva a olhar para tudo o que vivi como se fosse um ensaio falhado duma harmonia possível.
Tudo me leva a crer que as marcações que nos deram para o desempenho da vida passam ao lado do caminho por onde os nossos afectos poderiam fluir conforme o que está inscrito no mapa oculto do ser humano. Pressinto que continuamos fora do essencial e que as razões das circunstâncias – que, muitas vezes, são poderosas e reais – só servem para nos afastar dos enigmas que estão à frente das coisas e que nos caberia decifrar. Porque, algumas vezes, até parece que a simplicidade emana do andamento da vida e que bastaria um pequeno gesto de espírito para passarmos para o lado de lá de tantas incomodidades que nos fazem viver como se tivéssemos calçado dois números abaixo da forma da alma.
»
António Alçada Baptista, O Riso de Deus, p. 13
[Lisboa: Presença, 16.ª edição, Novembro de 2005, 206 pp.]

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