sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Jogos florais

Em Outubro deste ano apareceu nos escaparates franceses o livro improvável: um livro epistolar que reúne a correspondência trocada entre dois dos mais fervorosos opositores no campo do pensamento, das ideias e da filosofia francesas: Ennemis publics (Inimigos públicos, ed. Flammarion/Grasset).
Eles são o escritor Michel Houellebecq (n. 1956) e o jornalista, ensaísta, pensador e projecto de cineasta Bernard-Henri Lévy (n. 1948), o criador do termo “Nova Filosofia” com a ajuda de Maurice Clavel, que reuniu num só grupo nomes como André Glucksmann ou Jean-Marie Benoist, com o propósito de mediatizar e de aproveitar o espaço comunicacional para difundir as sua ideias filosóficas, acercando-se das fontes de poder.

A Harper’s deste mês publicou um excerto da troca epistolar, sob a denominação Náusea (não sem uma certa ambiguidade, trata-se do título do primeiro trabalho ficcional de Sartre, a base da sua criação filosófica no campo do existencialismo), que reproduzo aqui uma parte. Um excerto de um excerto para não transformar a leitura da pessoa e meia que lê este blogue numa sensação desagradável ou enjoativa, como se houvesse ingerido um Roquefort inteiro, não esquecendo a fase que, de forma inelutável, antecede a degustação, o suplício odorífero.

«Bruxelas, 26 de Janeiro de 2008

Caro Bernard-Henri Lévy,

Tudo, como se diz, nos separa – com a excepção de um ponto fundamental: somos tanto um como o outro indivíduos assaz desprezíveis.
Especialista em golpes baixos e intrujices mediáticas, você até com as camisas brancas que veste consegue desonrar-se. Um confidente dos poderosos, elanguescendo desde a infância numa riqueza obscena, você é um exemplo acabado do que determinadas revistas de terceira categoria como a
Marianne considera a “esquerda-caviar” e que os jornalistas alemães, de forma mais elegante, chamam de Toskana-Fraktion. Filósofo sem pensamento mas não sem ligações, você é, além disso, o autor do filme mais ridículo da história do cinema*.
[Chama-me] Niilista, reaccionário, cínico, racista e um misógino vergonhoso – ainda assim, ser colocado nas posições repugnantes da direita anarquista seria uma honra injustificada, porque, fundamentalmente, eu sou apenas um bronco. Um autor insípido e sem estilo, alcancei notoriedade literária somente depois de um improvável erro de gosto cometido por críticos desorientados. Felizmente, as minhas provocações arquejantes deixaram, desde então, de os aborrecer.
Para ambos, simbolizamos perfeitamente a horrível deformação da cultura e da inteligência francesas, recentemente retratada, com severidade, no entanto justa, pela revista
Time.
Nós não contribuímos com nada de novo para o panorama da música electrónica francesa. Nem sequer aparecemos nos créditos do
Ratatui.
Estão reunidas as condições do debate.


Paris, 27 de Janeiro

O debate?
Três vias possíveis, caro Michel Houellebecq.
Via número um: Bravo. Está tudo aí. A sua mediocridade. A minha irrelevância. O vazio reverberante que domina o nosso pensamento. O gosto que temos pela comédia quando não é simples impostura. Durante trinta anos tenho-me perguntado a mim próprio como é que um tipo como eu conseguiu, e ainda consegue, criar tais ilusões. Trinta anos que, cansado de esperar pelo bom leitor que saberá desmascarar-me, eu prolongo as autocríticas cobardes, sem talento, inofensivas. E aqui estamos nós. Com a sua ajuda, sou capaz de o conseguir fazer. A sua e a minha vaidade. A minha imoralidade e a sua. Como diria outro degenerado – embora um eminente degenerado –, você mostra o seu jogo, eu mostro o meu – que alívio!
Via número dois: Você, tudo bem. Mas porquê eu? Porque é que, apesar de tudo, hei-de eu participar neste exercício de autodenigração? E porque hei-de eu segui-lo nesse gosto que você manifesta pela autodestruição fulminante, pejorativa e mortificante? Eu não gosto do niilismo. Eu odeio o ressentimento e a melancolia que vêm com ele. Penso que a literatura é a única coisa a combater este
depressionismo que, mais do que nunca, é a palavra-chave do nosso tempo. Eu posso devotar-me, nesse caso, à explicação de que há trabalhos mais prazenteiros, obras mais bem sucedidas, vidas mais harmoniosas que os desmancha-prazeres que nos detestam poderão pensar. Eu ficarei com o mau papel, aquele de Filinto contra Alceste**, e contribuirei com um aceitável tributo aos seus livros e, enquanto estiver nisso, para os meus.
Finalmente, a terceira via. Respostas à questão que formulou naquele serão no restaurante, quando a ideia deste diálogo surgiu. Porquê tanto ódio? De onde vem esse ódio?*** E donde ele vem que adquire, quando se trata de escritores, uma tonalidade, uma virulência sem extremos. Você, com efeito. Eu. Mas bem mais sério, o caso de Sartre, vomitado pelos seus contemporâneos… O de Cocteau que nunca podia ver um filme até ao fim porque tinha sempre alguém à sua espera, para lhe partir a cara, à saída… Pound dentro da sua cela… Camus dentro da sua caixa… Baudelaire a descrever, numa caligrafia terrível,
“a raça humana” conluiada contra ele… a lista seria longa. Porquanto é a história da literatura que deverá reunir tudo isso na íntegra. E possivelmente – essa é a minha tese – o próprio desejo dos escritores que deveríamos tentar compreender. Que desejo? O desejo de desagradar, veremos. O gosto da rejeição. A vertigem, o gozo, na infâmia. Você escolhe.» (p. 21) [tradução a partir do inglês, com revisão em francês (texto original): AMC]
in Harper’s, “Nausea”, December 2008, pp. 21-24.
[Michel Houellebecq e Bernard-Henri Lévy, Ennemis publics. Paris: Flammarion/Grasset, octobre, 2008, 332 pp.]

Notas do excelso tradutor deste excerto:
*Referência ao filme Le jour et la nuit de 1997, escrito e realizado por BHL, com Alain Delon e Lauren Bacall, entre outros, com uma misérrima interpretação do primeiro – críticos mais contundentes dizem que o declínio do charmoso actor francês começou, qual maldição, com este filme –, tendo sido fortemente pateado na sua estreia em Cannes, visto como o exemplo acabado de “como não fazer um filme”.
**Personagens de O Misantropo de Molière (Le Misanthrope ou l'Atrabilaire amoureux, 1666).
***A partir deste ponto, traduzido a partir do texto original em francês.

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