domingo, 7 de dezembro de 2008

La sangre

«Nesse dia, um cavalo foi sacrificado a fim de que a barbárie recebesse o seu tributo. E a barbárie foi duplamente lisonjeada: após a interminável agonia do cavalo arrastado por uma carroça pela areia da vergonha, ela teve direito à execução do touro criminoso cujo sangue não borbulhou menos em longas golfadas generosas. Um relinchava e debatia-se, os seus olhos aterrorizados revolviam-se de não compreender, as patas apontadas ao céu imploravam uma razão; o outro, o negro criminoso, tinha entre as omoplatas uma espada tão comprida que o atravessava de lado a lado e o fez flectir sobre as patas dianteiras e render-se (se é que houve batalha) e quando o viu assim curvado e entregando as armas a Multidão das bancadas ergueu-se para gritar a sua Felicidade, os Coveiros abriram as braguilhas, as Mulheres arrancaram as mantilhas e todas se precipitaram sobre os Rabos malcheirosos que no Dia do Senhor é permitido comungar, e enquanto elas engoliam o Corpo de Cristo e a Semente do Pai, os Meninos aterrorizados procuravam onde debicar, onde e como inventar um novo Matadouro, um novo Fornicadouro, e tudo aquilo chupava, tagarelava, examinava, enquanto em cima da padiola o malvado touro mal acabado chorava ainda como um vitelo desmamado. E ninguém lhe prestava já atenção, o emissário moribundo, outrora tão perigoso, outrora chamado o Diabo.»
Gilles Leroy, Alabama Song, p. 76
[Lisboa: Esfera do Caos, 1.ª edição, Novembro de 2008, 172 pp.; tradução de José Júdice e José Alberto Quaresma; obra original: Alabama Song, 2007]

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