(A) A 6 de Novembro de 2006, os dez excelsos membros da Academia Goncourt reunidos ao jantar no habitual primeiro piso do restaurante Drouant, na rua Gaillon em Paris, decidiram atribuir prestigiado Prix Goncourt ao romance As Benevolentes (Les Bienveillantes) do escritor norte-americano Jonathan Littell, por unanimidade e aclamação. Aliás, as declarações do júri posteriores ao anúncio podem sintetizar-se nas palavras enfáticas do autor espanhol Jorge Semprún (um dos dez membros): «um acontecimento assombroso»; «o livro acontecimento do último meio século»; ou «Dentro de uma ou duas gerações, os jovens saberão o que se passou em meados do século XX graças a um romance com este.» Concordo, e quando o li, desacompanhado de outros livros que pudessem fazer divergir a minha mente focada para aquele objecto, também entrei na espiral de hipérboles (a geometria do exagero encomiástico), colocando-o de imediato na lista dos meus dez livros de sempre (ainda tenho de ver qual foi o destronado…)
(B) A 5 de Novembro de 2007, o mesmo júri escolhia para vencedor do prestigiado prémio das letras francesas ou francófonas, o romance do autor francês Gilles Leroy (n. 1958), Alabama Song. Segundo noticiou o Público na altura, o vencedor apenas foi eleito numa 14.ª volta de votações à mesa do Drouant, em acesa disputa com o romance de Olivier Adam, A l’abri de rien.
O que distingue ambos os vencedores?
Tudo. A começar pela nacionalidade e a acabar na volumetria biblíaca (conceito construido agora a preceito): nas edições portuguesas, (A), editado pela Dom Quixote, dispõe de 895 páginas, totalmente preenchidas por uma letra potencialmente geradora de problemas do foro oftalmológico; (B), editado pela Esfera do Caos, estende-se por 172 páginas, tamanho de letra normal, algumas páginas em branco e bastantes espaços entre parágrafos, e apenas menos centímetro e meio de comprimento relativamente a (A) (22 contra 23,5 cm; apresentam a mesma largura: 15 cm). Embora, os junte o instrumento História – embora em dimensões diferentes, o período mais negro da historiografia do século XX, no primeiro caso, e o negrume de um casamento atribulado e falhado, no seio do voraz mundo literário, de um dos casais mais famosos nos anos vintes do mesmo século: Zelda e Francis Scott Fitzgerald –, a pulsão especulativo-melodramática acentua-se exponencialmente no segundo. Se em As Benevolentes a história enquadra um nazi empedernido que, para sair incólume, se movimenta silenciosamente e sem piedade sobre os escombros da barbárie; em Alabama Song, a narrativa é-nos contada na primeira pessoa por uma vítima, Zelda, onde a barbárie se transforma num putativo espezinhamento psíquico infligido pelo marido, Scott, na sua busca da fama e da glória no meio mundano das letras norte-americanas de principio de século.
Fim de comparação. Quiçá um exercício potencialmente desonesto quando falamos de duas obras literárias distintas, com pretensões díspares, que, por fortuna ou por azar, depende da perspectiva, foram unidas pela atribuição consecutiva do prémio literário, concedido a uma obra de ficção, mais importante no pentágono (geográfico) francês.
Alabama Song é uma obra de ficção que parte de acontecimentos verídicos, cujo desenvolvimento retrata, na voz ficcional de Zelda Sayre (futuramente apelidada de Fitzgerald), em pouco mais de centena e meia de páginas, a vida (a começar pela sua infância em Montgomery, no Estado do Alabama) e a morte de uma das mais conhecidas, badaladas e vituperadas mulheres entre os escritores norte-americanos de “A Geração Perdida”.
Zelda (1900-1948), filha de um austero juiz e presidente do Supremo Tribunal do Alabama, neta e sobrinha-neta de proeminentes senadores, é a mais nova de seis filhos de um casal abastado tipicamente sulista, que respirava o miasma que, no virar do século, persistia ainda no ar, emanado da relativamente recente guerra da Secessão e das práticas de escravidão sulistas nas grandes plantações de tabaco ou de algodão. A história real parte, então, de uma sociedade onde se legitima e pratica às claras a segregação racial – trocadilho involuntário –, fortemente machista e puritana, que não se adequa com as eternas rebeldia e juventude de Zelda e da sua amiga e companheira inseperável de infância Tallulah Bankhead, num futuro próximo famosa e escandalosa estrela de Hollywood e dos palcos, em concomitância com os bistros e leitos, sem discriminação de género (diz-se), de gente famosa.
Em 1918, a sua vida dá uma volta completa. Zelda conhece num baile do Country Club local o Tenente Scott Fitzgerald (1896-1940) «tem vinte um anos e possui já muitos talentos. […] escreve novelas que a imprensa irá publicar em breve, tem a certeza; é asseado e elegante, sabe francês – foi graças ao conhecimento da língua francesa que foi promovido a Tenente da infantaria depois das aulas em Princeton, onde os francófonos gozam de um privilégio que os catapulta a oficiais» (p. 18).
Scott foi colega de Edmund Wilson e de John Peale Bishop em Princeton, com quem se introduz nas lides literárias antes do alistamento, e que o irão ajudar no início da sua carreira em tempos de paz. Também eles serão vítimas, revela o autor, da fúria de Zelda.
Segundo reza a história e de acordo com uma promessa arrebatada só ao alcance de um espírito lírico, Scott só aceitaria casar-se com Zelda quando se tornasse num escritor famoso – visionado por ele, um peralvilho narcísico, como uma inevitabilidade. Nos meses em que se refugia na estridência de Nova Iorque, Scott escreve The Romantic Egotist, que é sucessivamente recusado por uma miríade de editoras: «Ele chamou-lhe “O Egotista Romântico”, um título de não entusiasmar ninguém […] Claro que ele não ouve os meus reparos: só lhe interessam os elogios enamorados de Winston [Edmund Wilson] e Bishop, os seus lambe-botas de Princeton. Eles também querem escrever. O que é que todos eles têm, estes jovens tipos, para desejarem ser escritores? Contentem-se em ser ricos e célebres!» (pp. 32-33). Mais tarde, Scott, derrotado e endividado, regressa às cidades gémeas (em concreto St. Paul) e o romance é rescrito e acrescentado, e a Scribner resolve finalmente publicar o manuscrito sob o título This Side of Paradise (ed. port. Relógio D’Água; Este Lado do Paraíso).
Zelda abandona o Alabama e casa com Scott Fitzgerald na Catedral de São Patrício em Nova Iorque.
Aqui começam os tormentos do casal, agravados pelo nascimento da sua única filha em 1921, Patricia Frances, e o fenómeno da errância boémia na vida de Scott, destilando o seu «hálito fétido» (álcool) entre Paris, a Riviera francesa, Roma, Capri.
Entretanto, Zelda apaixona-se por um jovem aviador francês Edouard Jozan, com quem mantém um tórrido romance e concebe um ficcionado filho que Scott mandou desembaraçar. O romance termina ao fim de um mês, com o famoso encarceramento de Zelda na sua própria casa, imposto pelo marido e guardada por um casal de campónios assaz soturno.
Scott mergulha na boémia francesa, embrenha-se nas tertúlias etílicas em casa de Gertrude Stein, conhece Hemingway, detestado por Zelda e que, no entanto, surge no romance de Leroy com o nome fictício “Lewis O’Connor”, facilmente descortinável por qualquer pessoa que se interesse minimamente por literatura: «Depois este monte de banha entrou na nossa vida. O amador de touradas e de sensações fortes. O escritor mais puta e a glória ascendente do nosso país. Não era assim tão gordo e tão célebre na altura. Não tinha sequer publicado nada. […] Fiquei imediatamente chocada com a arrogância de Lewis, com o convencimento que só os imbecis e os falsos artistas têm de si mesmos. Ainda mal tínhamos apertado a mão, tive vontade de o esbofetear.» (p. 73)
Insistindo neste ponto, que as próprias biografias registam – em especial a de Nancy Milford, Zelda (1970) –, o do ódio visceral de Zelda por Ernest, Leroy estende a sua narrativa zeldiana adjectivando profusamente o novo companheiro literário do marido. Depois de aflorar a possibilidade de uma relação homossexual entre ambos e de presumir que aquele gostaria de «roubar a glória de Scott», zelda pela mão de Gilles disserta com erudição sobre o que aquele escroto poderá esconder:
«Chateia-nos com as suas descrições sanguinolentas. O plumitivo gosta de apanhar o touro pelos colhões… Isso deve impressioná-lo, ou excitá-lo, ele que os não tem. A menos que prefira os colhões do toureiro, que apesar de tudo são os que se vêem melhor, ensacados nos seus calções apertados, ouro e rosa.»
E completa com uma metáfora luminosa: «O seu olhar não é apenas um olhar: é uma nuvem de borboletas que se abatem, cegas, sobre a braguilha de Scott. Não, não estou demente. Não invento. Enuncio.» (p. 74)
E a história desenvolve-se em torno do alcoolismo crescente de Scott e da sua progressiva decadência, do afastamento da filha que este inflige e impõe à mãe, dos diversos internamentos compulsivos de Zelda em clínicas psiquiátricas, da usurpação de material escrito por Zelda que é posteriormente inserido nos romances do autor, assim como o uso e abuso de material biográfico, episódios da vida privada que surgem nos romances encobertos pelos nomes dos personagens, mas suficientemente visíveis e inteligíveis como verdadeiras cenas da vida conjugal para os demais.
Entrecortada por analepses e prolepses, entre os anos 20 e os anos do fim, os 40 (Scott morre em 1940, quatro dias antes do dia de Natal; Zelda morre à meia-noite em ponto do dia 10 de Março de 1948 durante um incêndio num asilo psiquiátrico na Carolina do Norte, onde se encontrava internada desde 1943), Leroy procura demonstrar-nos a espiral de loucura que se abateu sobre um casal em busca das luzes da ribalta, do luxo e do glamour das figuras da alta sociedade americana e europeia, cosmopolita e frívola. Ele filho de um falido vendedor de sabões do Minnesota, ela a «Rainha dos Labregos» (p. 32) do Alabama, «filha do juiz, neta de um senador e de um governador», engolidos pelo vórtice mediático dos famosos, esquecidos no fim das suas vidas: «Scott é o homem redimido do seu pai – ele brilhou tanto – ao mesmo tempo que o filho relapso do seu pai: ele fracassou tanto!» (p. 151)
É curta de ideias e parcial esta versão semi-ficcionada da vida de Zelda Sayre, de onde apenas parece sobressair, dada a ênfase do próprio autor, a qualidade de vítima impotente de uma mulher nas garras de um mundo machista e às mãos de uma subclasse inconsequente, hedonista e materialista, arrastada de forma involuntária e impiedosa para a inevitável desgraça.
Nas suas notas finais, Leroy adverte que deve ler-se «Alabama Song como um romance e não como uma biografia de Zelda Fitzgerald enquanto pessoa histórica.» (p. 171). E de seguida enumera alguns dos momentos fortes da obra, distinguindo a realidade da ficção. Descansei, não por qualquer prurido de laivos homofóbicos ou por alguma questão de higiene ligada à prática pura e simples do acto, mas por ser incapaz de tomar como possível a situação, dada a animosidade que historicamente envolveu ambos os autores, quando Leroy diz que o burlesco episódio do Hotel George V em Paris foi inventado. Ou seja, quando Zelda entra no quarto do referido hotel e descobre O’Connor (Hemingway) ajoelhado com a cabeça entre as coxas do marido, ao mesmo tempo que um projector de filmes exibia pornografia gay… as consequências materiais e físicas de tamanho flagrante engrandecem a risibilidade do episódio – só lido.
Por fim, uma pequena referência à tradução portuguesa. Uma vez mais, pobre (como muitas, ou a grande maioria, em Portugal), gaguejante, imprecisa, que irrita pela necessidade constante de releitura. Atente-se, por exemplo, neste parágrafo inteiro (entre muitos outros, mas que a preguiça aliada à minha tão típica mania de não profanação dos livros com anotações de qualquer tipo exigem um esforço de memória assinalável para os localizar): «Os homens franceses, não é que sejam mais belos, longe disso. É precisamente porque nos desejam: para eles, uma mulher que cede não é uma puta mas uma rainha.» (p. 57); ou a construção da frase: «É tão horrendo, nesse momento, o que sofro para me separar dele.» (p. 35); ou ainda «Repelia-me do próprio coração do meu amor, este coração que formavam os nossos dois corpos nus enlaçados na areia – e era como se ele, com um pontapé no rabo, me tivesse metido no barco de volta a Nova Iorque.» (p. 61); and so on…
Classificação: *** (A Ler)
Referência bibliográfica:
Gilles Leroy, Alabama Song. Lisboa: Esfera do Caos, 1.ª edição, Novembro de 2008, 172 pp. (tradução de José Júdice e José Alberto Quaresma; obra original: Alabama Song, 2007).
Tenho de terminar com o portentoso epitáfio gravado na pedra tumular de Scott e Zelda, em Rockville, Maryland. Corresponde ao último parágrafo de um dos melhores romances de sempre na literatura universal (dificilmente destronável dos lugares cimeiros na minha lista pessoal das dez melhores obras de ficção de sempre):
(B) A 5 de Novembro de 2007, o mesmo júri escolhia para vencedor do prestigiado prémio das letras francesas ou francófonas, o romance do autor francês Gilles Leroy (n. 1958), Alabama Song. Segundo noticiou o Público na altura, o vencedor apenas foi eleito numa 14.ª volta de votações à mesa do Drouant, em acesa disputa com o romance de Olivier Adam, A l’abri de rien.
O que distingue ambos os vencedores?
Tudo. A começar pela nacionalidade e a acabar na volumetria biblíaca (conceito construido agora a preceito): nas edições portuguesas, (A), editado pela Dom Quixote, dispõe de 895 páginas, totalmente preenchidas por uma letra potencialmente geradora de problemas do foro oftalmológico; (B), editado pela Esfera do Caos, estende-se por 172 páginas, tamanho de letra normal, algumas páginas em branco e bastantes espaços entre parágrafos, e apenas menos centímetro e meio de comprimento relativamente a (A) (22 contra 23,5 cm; apresentam a mesma largura: 15 cm). Embora, os junte o instrumento História – embora em dimensões diferentes, o período mais negro da historiografia do século XX, no primeiro caso, e o negrume de um casamento atribulado e falhado, no seio do voraz mundo literário, de um dos casais mais famosos nos anos vintes do mesmo século: Zelda e Francis Scott Fitzgerald –, a pulsão especulativo-melodramática acentua-se exponencialmente no segundo. Se em As Benevolentes a história enquadra um nazi empedernido que, para sair incólume, se movimenta silenciosamente e sem piedade sobre os escombros da barbárie; em Alabama Song, a narrativa é-nos contada na primeira pessoa por uma vítima, Zelda, onde a barbárie se transforma num putativo espezinhamento psíquico infligido pelo marido, Scott, na sua busca da fama e da glória no meio mundano das letras norte-americanas de principio de século.
Fim de comparação. Quiçá um exercício potencialmente desonesto quando falamos de duas obras literárias distintas, com pretensões díspares, que, por fortuna ou por azar, depende da perspectiva, foram unidas pela atribuição consecutiva do prémio literário, concedido a uma obra de ficção, mais importante no pentágono (geográfico) francês.
Alabama Song é uma obra de ficção que parte de acontecimentos verídicos, cujo desenvolvimento retrata, na voz ficcional de Zelda Sayre (futuramente apelidada de Fitzgerald), em pouco mais de centena e meia de páginas, a vida (a começar pela sua infância em Montgomery, no Estado do Alabama) e a morte de uma das mais conhecidas, badaladas e vituperadas mulheres entre os escritores norte-americanos de “A Geração Perdida”.
Zelda (1900-1948), filha de um austero juiz e presidente do Supremo Tribunal do Alabama, neta e sobrinha-neta de proeminentes senadores, é a mais nova de seis filhos de um casal abastado tipicamente sulista, que respirava o miasma que, no virar do século, persistia ainda no ar, emanado da relativamente recente guerra da Secessão e das práticas de escravidão sulistas nas grandes plantações de tabaco ou de algodão. A história real parte, então, de uma sociedade onde se legitima e pratica às claras a segregação racial – trocadilho involuntário –, fortemente machista e puritana, que não se adequa com as eternas rebeldia e juventude de Zelda e da sua amiga e companheira inseperável de infância Tallulah Bankhead, num futuro próximo famosa e escandalosa estrela de Hollywood e dos palcos, em concomitância com os bistros e leitos, sem discriminação de género (diz-se), de gente famosa.
Em 1918, a sua vida dá uma volta completa. Zelda conhece num baile do Country Club local o Tenente Scott Fitzgerald (1896-1940) «tem vinte um anos e possui já muitos talentos. […] escreve novelas que a imprensa irá publicar em breve, tem a certeza; é asseado e elegante, sabe francês – foi graças ao conhecimento da língua francesa que foi promovido a Tenente da infantaria depois das aulas em Princeton, onde os francófonos gozam de um privilégio que os catapulta a oficiais» (p. 18).
Scott foi colega de Edmund Wilson e de John Peale Bishop em Princeton, com quem se introduz nas lides literárias antes do alistamento, e que o irão ajudar no início da sua carreira em tempos de paz. Também eles serão vítimas, revela o autor, da fúria de Zelda.
Segundo reza a história e de acordo com uma promessa arrebatada só ao alcance de um espírito lírico, Scott só aceitaria casar-se com Zelda quando se tornasse num escritor famoso – visionado por ele, um peralvilho narcísico, como uma inevitabilidade. Nos meses em que se refugia na estridência de Nova Iorque, Scott escreve The Romantic Egotist, que é sucessivamente recusado por uma miríade de editoras: «Ele chamou-lhe “O Egotista Romântico”, um título de não entusiasmar ninguém […] Claro que ele não ouve os meus reparos: só lhe interessam os elogios enamorados de Winston [Edmund Wilson] e Bishop, os seus lambe-botas de Princeton. Eles também querem escrever. O que é que todos eles têm, estes jovens tipos, para desejarem ser escritores? Contentem-se em ser ricos e célebres!» (pp. 32-33). Mais tarde, Scott, derrotado e endividado, regressa às cidades gémeas (em concreto St. Paul) e o romance é rescrito e acrescentado, e a Scribner resolve finalmente publicar o manuscrito sob o título This Side of Paradise (ed. port. Relógio D’Água; Este Lado do Paraíso).
Zelda abandona o Alabama e casa com Scott Fitzgerald na Catedral de São Patrício em Nova Iorque.
Aqui começam os tormentos do casal, agravados pelo nascimento da sua única filha em 1921, Patricia Frances, e o fenómeno da errância boémia na vida de Scott, destilando o seu «hálito fétido» (álcool) entre Paris, a Riviera francesa, Roma, Capri.
Entretanto, Zelda apaixona-se por um jovem aviador francês Edouard Jozan, com quem mantém um tórrido romance e concebe um ficcionado filho que Scott mandou desembaraçar. O romance termina ao fim de um mês, com o famoso encarceramento de Zelda na sua própria casa, imposto pelo marido e guardada por um casal de campónios assaz soturno.
Scott mergulha na boémia francesa, embrenha-se nas tertúlias etílicas em casa de Gertrude Stein, conhece Hemingway, detestado por Zelda e que, no entanto, surge no romance de Leroy com o nome fictício “Lewis O’Connor”, facilmente descortinável por qualquer pessoa que se interesse minimamente por literatura: «Depois este monte de banha entrou na nossa vida. O amador de touradas e de sensações fortes. O escritor mais puta e a glória ascendente do nosso país. Não era assim tão gordo e tão célebre na altura. Não tinha sequer publicado nada. […] Fiquei imediatamente chocada com a arrogância de Lewis, com o convencimento que só os imbecis e os falsos artistas têm de si mesmos. Ainda mal tínhamos apertado a mão, tive vontade de o esbofetear.» (p. 73)
Insistindo neste ponto, que as próprias biografias registam – em especial a de Nancy Milford, Zelda (1970) –, o do ódio visceral de Zelda por Ernest, Leroy estende a sua narrativa zeldiana adjectivando profusamente o novo companheiro literário do marido. Depois de aflorar a possibilidade de uma relação homossexual entre ambos e de presumir que aquele gostaria de «roubar a glória de Scott», zelda pela mão de Gilles disserta com erudição sobre o que aquele escroto poderá esconder:
«Chateia-nos com as suas descrições sanguinolentas. O plumitivo gosta de apanhar o touro pelos colhões… Isso deve impressioná-lo, ou excitá-lo, ele que os não tem. A menos que prefira os colhões do toureiro, que apesar de tudo são os que se vêem melhor, ensacados nos seus calções apertados, ouro e rosa.»
E completa com uma metáfora luminosa: «O seu olhar não é apenas um olhar: é uma nuvem de borboletas que se abatem, cegas, sobre a braguilha de Scott. Não, não estou demente. Não invento. Enuncio.» (p. 74)
E a história desenvolve-se em torno do alcoolismo crescente de Scott e da sua progressiva decadência, do afastamento da filha que este inflige e impõe à mãe, dos diversos internamentos compulsivos de Zelda em clínicas psiquiátricas, da usurpação de material escrito por Zelda que é posteriormente inserido nos romances do autor, assim como o uso e abuso de material biográfico, episódios da vida privada que surgem nos romances encobertos pelos nomes dos personagens, mas suficientemente visíveis e inteligíveis como verdadeiras cenas da vida conjugal para os demais.
Entrecortada por analepses e prolepses, entre os anos 20 e os anos do fim, os 40 (Scott morre em 1940, quatro dias antes do dia de Natal; Zelda morre à meia-noite em ponto do dia 10 de Março de 1948 durante um incêndio num asilo psiquiátrico na Carolina do Norte, onde se encontrava internada desde 1943), Leroy procura demonstrar-nos a espiral de loucura que se abateu sobre um casal em busca das luzes da ribalta, do luxo e do glamour das figuras da alta sociedade americana e europeia, cosmopolita e frívola. Ele filho de um falido vendedor de sabões do Minnesota, ela a «Rainha dos Labregos» (p. 32) do Alabama, «filha do juiz, neta de um senador e de um governador», engolidos pelo vórtice mediático dos famosos, esquecidos no fim das suas vidas: «Scott é o homem redimido do seu pai – ele brilhou tanto – ao mesmo tempo que o filho relapso do seu pai: ele fracassou tanto!» (p. 151)
É curta de ideias e parcial esta versão semi-ficcionada da vida de Zelda Sayre, de onde apenas parece sobressair, dada a ênfase do próprio autor, a qualidade de vítima impotente de uma mulher nas garras de um mundo machista e às mãos de uma subclasse inconsequente, hedonista e materialista, arrastada de forma involuntária e impiedosa para a inevitável desgraça.
Nas suas notas finais, Leroy adverte que deve ler-se «Alabama Song como um romance e não como uma biografia de Zelda Fitzgerald enquanto pessoa histórica.» (p. 171). E de seguida enumera alguns dos momentos fortes da obra, distinguindo a realidade da ficção. Descansei, não por qualquer prurido de laivos homofóbicos ou por alguma questão de higiene ligada à prática pura e simples do acto, mas por ser incapaz de tomar como possível a situação, dada a animosidade que historicamente envolveu ambos os autores, quando Leroy diz que o burlesco episódio do Hotel George V em Paris foi inventado. Ou seja, quando Zelda entra no quarto do referido hotel e descobre O’Connor (Hemingway) ajoelhado com a cabeça entre as coxas do marido, ao mesmo tempo que um projector de filmes exibia pornografia gay… as consequências materiais e físicas de tamanho flagrante engrandecem a risibilidade do episódio – só lido.
Por fim, uma pequena referência à tradução portuguesa. Uma vez mais, pobre (como muitas, ou a grande maioria, em Portugal), gaguejante, imprecisa, que irrita pela necessidade constante de releitura. Atente-se, por exemplo, neste parágrafo inteiro (entre muitos outros, mas que a preguiça aliada à minha tão típica mania de não profanação dos livros com anotações de qualquer tipo exigem um esforço de memória assinalável para os localizar): «Os homens franceses, não é que sejam mais belos, longe disso. É precisamente porque nos desejam: para eles, uma mulher que cede não é uma puta mas uma rainha.» (p. 57); ou a construção da frase: «É tão horrendo, nesse momento, o que sofro para me separar dele.» (p. 35); ou ainda «Repelia-me do próprio coração do meu amor, este coração que formavam os nossos dois corpos nus enlaçados na areia – e era como se ele, com um pontapé no rabo, me tivesse metido no barco de volta a Nova Iorque.» (p. 61); and so on…
Classificação: *** (A Ler)
Referência bibliográfica:
Gilles Leroy, Alabama Song. Lisboa: Esfera do Caos, 1.ª edição, Novembro de 2008, 172 pp. (tradução de José Júdice e José Alberto Quaresma; obra original: Alabama Song, 2007).
Tenho de terminar com o portentoso epitáfio gravado na pedra tumular de Scott e Zelda, em Rockville, Maryland. Corresponde ao último parágrafo de um dos melhores romances de sempre na literatura universal (dificilmente destronável dos lugares cimeiros na minha lista pessoal das dez melhores obras de ficção de sempre):
«Assim vamos teimando, proas contra a corrente, incessantemente cortando águas, a caminho do passado.»
F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby, p. 202
[Lisboa: Presença, 5.ª edição, Julho de 1997; 202 pp.; tradução de José Rodrigues Miguéis; obra original: The Great Gatsby, 1925.]
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