quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Pós-Humano

Para o antigo fã de Carpenter e dos restantes subprodutos da arte da realização cinematográfica, não é sem um arrepio de um horror declarado que me vou lembrando da atribuição do romance Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste (Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985) do escritor norte-americano Cormac McCarthy ao realizador britânico Ridley Scott para dele erigir um filme. O argumento passará, no entanto, pelas mãos curiosamente mais subtis de William Monahan – reescreveu o argumento de Entre Inimigos (The Departed, 2006) de Scorsese.

Este devaneio de tons negros (o medo de um acontecimento que, com forte probabilidade, ocorrerá num futuro próximo) fez-me recordar um artigo publicado na novíssima revista
n+1, no seu primeiro número no Outono de 2004. Apesar de aí se discutir de forma lateral o assunto que me levou a escrever este texto, não resisto a enunciar a matéria principal que aí se tratava: a crítica literária praticada pela rival The New Republic. Os editores da n+1 dedicam-se a zurzir no negativismo do mais destacado crítico literário da revista e, certamente, da sua geração, o inglês James Wood (n.1965), actualmente ao serviço da revista The New Yorker, depois de quinze anos de serviço de recenseador repartidos pelo jornal britânico de The Guardian e pela já mencionada The New Republic.
O editorial da n+1 ataca-o em diversas frentes, por um lado acusando-o por exemplo de uma perseguição implacável a escritores consagrados como Don DeLillo, Toni Morrison (Nobel da Literatura em 1993), John Updike, Thomas Pynchon, Ian McEwan, Julian Barnes, Martin Amis e ao seu alvo dilecto Salman Rushdie, tal como a novos talentos que incluem autores como Zadie Smith ou Jonathan Frazen. E, por outro lado, afirmando que o esteticismo preconizado por Wood pretende pôr os escritores contemporâneos a escrever como os realistas do século XIX.
Wood defende-se, e bem, numa longa carta aos editores publicada na íntegra na edição número 3 da revista. Para além de refutar o negativismo militante que lhe é apontado, recordando um extenso rol de autores vivos e recentemente falecidos de quem as suas recensões foram assaz positivas – relembrando, ainda, outros que deixaram de publicar quando iniciou as suas funções e que de certa forma fazem parte do seu panteão pessoal –, Wood defende-se da crítica da sua alegada apologia do arcaizamento da escrita contemporânea ou pós-moderna. O crítico inglês diz que defender isso seria um total absurdo, porque apesar das realidades envolventes diferentes, hoje mais mediática e informacional, e das constantes mutações que afectam a arte da escrita, há toda uma ontologia da identidade que atravessa e supera as modas, as tendências e as formas de criação artística, concretamente a Literatura.

Eis uma explicação mais clara, usando para isso a suas próprias palavras:

«A forma e a linguagem da ficção encontram-se em permanente mudança. E o eu pode também estar a mudar. Mas não de forma tão rápida como as representações desse eu. A nossa geração pós-moderna cai frequentemente numa espécie de superioridade histórica ou provincianismo metafísico, já que nos orgulhamos no quão diferente é a nossa subjectividade – menos evidente, mais fracturada, mais consciente de si, etc. – em relação à dos nossos antepassados. Se isto fosse verdadeiro, seríamos incapazes de ler a ficção produzida por esses predecessores. Além disso, há escritores, como Hamsun e Dostoievski, cujas ideias do eu continuam a ser mais radicais do que qualquer coisa engendrada por, digamos, Thomas Pynchon. Nada na ficção contemporânea, nem mesmo as fantasias sádicas de Dennis Cooper ou as destruições sangrentas de Cormac McCarthy, é mais chocante que o momento em que o narrador de Hunger (1890) de Hamsun põe o seu próprio dedo na boca e começa a comê-lo. Não é pós-modernismo, é pós-humano. Beckett pediu claramente de empréstimo esta cena a Hamsun, quando Molloy come as suas pedras. E, claro, Beckett é um bom exemplo de escritor cujas forma e linguagem são completamente diferentes dos seus predecessores, mas cuja metafísica do eu seria reconhecível não só por Schopenhauer, mas provavelmente por Tomás de Aquino. (Poderão chamar a Beckett o último dos realistas.)» (pp. 135-136)
James Wood, “A Reply to the Editors”, n+1, n. 3, Fall 2005, pp. 129-139 [tradução: AMC]

O que hoje há, seguramente, de diferente em relação a épocas mais remotas é a possibilidade de perpetuação mediática de pós-humano referido por Wood, através de novas formas de representação artística, que ultrapassam a simples mimese, confundida amiúde com literalismo, a representação da beleza – conceito indissociável aos fundamentos da arte –, para entrar no domínio da repetição, do choque gratuito, em suma, da dita pornografia pseudo-artística.
O choque faz despertar sensações, retira-nos do torpor da indiferença. Porém, a sua reiteração faz desviar-nos do objecto de criação artística para um estado de catarse convulsiva, onde náusea passa à condição de reflexo condicionado sempre que as campainhas anunciam a chegada do seu criador.

O tal devaneio ridley-scottiano, levam-me já a vislumbrar uma sucessão inimaginável de cabeças cortadas e de escalpes arrancados. Começo a salivar… vem aí a náusea.

2 comentários:

Ricardo Pulido Valente disse...

bem;)

J.L. disse...

James Wood tem poucos competidores na crítica contemporânea.