Estupidamente, depois de ter visto o filme e sem haver lido qualquer análise crítica sobre o filme intitulado Capítulo 27, procuro na minha biblioteca a nova tradução da obra-prima de Salinger que li há uns anos, À Espera no Centeio – a versão anterior, a da editora Livros do Brasil, chamava-se de forma esdrúxula Uma Agulha em Palheiro. Procuro nele o significado do tal capítulo que serve de leitmotiv ao filme, e a sensação do cometimento de uma burrice ainda maior apodera-se de mim com maior acuidade: 27, qual 27?
É com as palavras que se reproduzem a seguir que termina o famoso livro do relato da inocência perdida de um tal Holden Caulfield:
«É esquisito. Nunca contem nada a ninguém. Se contam, acabam por ter saudades de toda a gente.»E assim termina o capítulo 26 do bestseller escrito pelo clandestino (por opção) escritor norte-americano Jerome David Salinger (n. 1919), que narra, na primeira pessoa, a história do jovem de dezasseis anos Holden Caulfield que, após expulsão da escola, aproveita as férias do Natal para escapar das garras parentais e passar três dias sozinho de intensa descoberta em Nova Iorque.
J.D. Salinger, À Espera no Centeio, pág. 226.
Salinger, antes de se dedicar à família Glass e aos seus pequenos prodígios ocidentalizados proto-tântricos, criou um dos personagens mais populares da história da literatura: um jovem que, provavelmente, no divã do seu psicanalista conta, um ano depois, o seu descrédito pelo mundo: corrompido e falso, clivado entre os baby-boomers e os adolescentes que, de forma metafórica, são atiradas por essa indiferença generalizada de um penhasco antecedido de um campo de centeio onde o avanço do cereal não permite o vislumbre dos jovens que nele se precipitam. Caulfield propõe-se a ser o “apanhador” dessa massa que resvala pelo campo e termina, ironicamente, como alguém que, perante a sordícia testemunhada, necessita de salvação. Nada mais a acrescentar.
Qual foi, então, o erro de Salinger? Trata-se do erro comum a todos os escritores: escrever ficção, que determinados psicóticos interpretam de forma messiânica, justiceira e apocalíptica, instrumentalizando a palavra escrita de outrem para, através da violência, alcançar a fama nas suas vidinhas enfadonhas. Por princípio, mas essencialmente, por pudor e honestidade intelectual, estas vidinhas deveriam no momento seguinte ao cometimento da barbárie – seja ela de que natureza for – voltar para o atroz e insuportável anonimato, condição cujas cabeças doentes, pervertidas e atormentadas dos perpetradores não conseguem aguentar. Mas, o voyeurismo da sociedade contemporânea jamais o permitiria. Logo, há que pôr a trabalhar a máquina de fazer milhões, e saciar a sede necrófila e sanguinária de uma massa tão banal como anónima. Todavia, a máquina falha, e muitas vezes devido a um erro na aquisição de uma simples peça que completa a engrenagem. Deixa de funcionar, ou funciona mal, virando-se o feitiço contra o cúpido feiticeiro.
A 8 de Dezembro de 1980, um inadaptado social chamado Mark David Chapman, no portão principal do edifício Dakota em Nova Iorque, onde John Lennon e Yoko Ono tinham um apartamento, consegue à saída do eminente ex-Beatles um autógrafo no disco Double Fantasy. No regresso ao Dakota, Chapman mata Lennon pelas costas, debaixo da mesma arcada do portão principal do edifício, com cinco tiros revólver – uma das balas foi a fatal, seccionou a aorta do cantor.
Chapman, para além do disco autografado e da arma do crime, trazia consigo um exemplar de À Espera no Centeio, e disse em entrevistas posteriores que se sentia maioritariamente como Holden Caulfield, procurando trazer justiça ao mundo – aquele que espera num campo de centeio e impede que os jovens se precipitem no penhasco da vida.
O filme Capítulo 27 – O Assassinato de John Lennon (Chapter 27, 2007), primeiro filme escrito e realizado pelo desconhecido germano-americano, cujo apelido encerra uma estranha coincidência*, Jarrett Schaefer (ou J.P. Schaefer, n. 1979), retrata os dias de insanidade de Chapman, interpretado por um irreconhecível Jared Leto, que engordou cerca de 30 quilos para poder desempenhar o papel – e que já o levou a confessar-se como arrependido, afirmando que jamais repetirá tal façanha.
O filme é igual a zero. Sem chama, sem ritmo, sem conteúdo, retrata o assassino sob a perspectiva do livro de base de Jack Jones Let Me Take You Down de 1992, correcta e impiedosamente massacrado pela crítica literária da altura, que se inspirou em entrevistas com o assassino e lhe dá uma configuração arrojada de propósito justificado pela cabeça de Chapman.
No ecrã aparecem sucessivas transcrições dos pensamentos – se é que lhe poderemos chamar pensamentos num sentido mais erudito do termo – a letras de fogo do assassino, misturadas com passagens do romance de Salinger.
Uma entrevista dada pelo casal Lennon/Ono funciona como catalisador, para um homem que se julga investido de um poder redentor de um personagem de ficção (no argumento):
O auge da risibilidade no filme – a medir forças com a cena a la Taxi Driver retratada na imagem acima – dá-se quando Chapman faz uma terrível associação, para cultivar o seu estribilho celerado de “phoniness” realçado por Caulfield. Num diálogo com Jude (papel interpretado pela actriz mal-amada em Hollywood Lindsay Lohan) Chapman fica a saber que naquele mesmo edifício foi rodado o icónico filme de terror A Semente do Diabo (Rosemary's Baby, 1968) de Roman Polanski. Chapman faz a associação entre o filme, o edifício onde germina o diabo, e a vida particular de Polanski, no que se refere ao trágico episódio do assassinato, em 1969, da sua jovem mulher Sharon Tate, grávida no fim de gestação, às mãos dos sequazes do demoníaco psicopata Charles Manson. Manson e as suas visões apocalípticas do fim do mundo a que chamou Helter Skelter, que se baseou no título de uma canção dos Beatles gravada em 1968 para o duplo álbum do mesmo ano The White Album, que por acaso foi integralmente escrita por Paul McCartney, sem qualquer participação de Lennon. O horrível diálogo que consta do argumento é o que se segue, contudo o desastre só é inteiramente assimilável vendo a histriónica interpretação de Leto no diálogo com Lohan:«Li o artigo sobre o John Lennon. Ele dizia que apenas comia sushi e sashimi, e barras de chocolate com amêndoas “Hershey”. E que só fumava cigarros franceses. Quando lhe perguntaram se os Beatles alguma vez se voltariam a juntar, ele disse que lá porque um monte de idiotas perdeu a oportunidade na primeira vez, ele não teria de ser novamente crucificado. Não teria de voltar a caminhar sobre as águas. Ele disse que não teria de voltar a indicar o caminho às multidões.
«Ele, na realidade, disse isso tudo. E olhem para ele a viver a sua vida sumptuosa. Imaginem-no sem o seu património. O canalha tem milhões: iates, quintas, terrenos e sabe-se lá o que mais? Ele voltou as costas a toda a gente. Esta é para mim uma terrível confirmação.» [tradução: AMC]
«– Espera… esse é o tipo a quem Charles Manson matou a mulher. Certo?Não há uma única ideia aproveitável, uma técnica narrativa e fílmica inovadoras, um fio condutor da história para além do que se conhece do trágico incidente, nem sequer uma esperada interpretação de encher o olho por Leto – a não ser pela desmesura corporal do actor. Apenas diálogos primários e espúrios, circunlóquios estafados, uma cadência de planos repetitiva e cansativa.
– Sharon Tate.
– Pois, ela estava grávida.
– E bonita.
– “Helter Skelter”. O John Lennon vive num edifício onde foi rodado um filme sobre a vinda de Satanás à Terra de um realizador cuja mulher e o filho foram assassinados devido a uma canção do John Lennon. Oh Meu Deus, isto não é uma coincidência. Hoje é o dia. Hoje é o dia.
– É uma maneira de ver as coisas.
– Não há coincidências.**» [tradução: AMC]
Se no ano passado tive algumas dúvidas em atribuir a classificação de “pior filme do ano” a Ao Anoitecer (Evening, 2007) do realizador húngaro Lajos Koltai, com argumento de Michael Cunningham, baseado num romance de Susan Minot ou a Peões em Jogo (Lions for Lambs, 2007) realizado e protagonizado por Robert Redford (acabou por vencer o primeiro); este ano, ainda no início de Agosto, não vislumbro qualquer hipótese de salvação para esta sequência de imagens inanes a que alguns ousam chamar de filme, cinema, arte.
«Não estava para começar uma discussão. “OK – disse eu. E então de repente lembrei-me de uma coisa. – Oiça – disse eu. – Está a ver os patos naquela lagoa mesmo junto ao Central Park South? Um laguinho pequeno? Por acaso faz ideia para onde vão eles, os patos, quando aquilo fica gelado? Faz ideia, por acaso?” – Sabia bem que havia uma hipótese num milhão.»Notas:
J.D. Salinger, À Espera no Centeio, pág. 71.
*A 18 de Julho de 1989 a jovem actriz norte-americana Rebecca Schaeffer (1967-1989) era assassinada a tiro no seu apartamento em Hollywood por um perseguidor e assediador chamado Robert John Bardo; ele, tal como Chapman, trazia consigo um exemplar de À Espera no Centeio de Salinger no momento do homicídio. Não há coincidências! Os apelidos da actriz e do realizador do slapstick, diferem apenas num “f” – ah, as liberdades poéticas que isso não me permitiria…
**Já o dizia MRP®, figura de proa do último número da revista Ler, entrevistada por Carlos Vaz Marques (e que bem lhe fez incluí-la no seu pobre currículo). E, não fosse o filho de Rosemary tecê-las, a celebrada “escritora” foi também merecedora de entrevista pela rival Os Meus Livros.
Referência bibliográfica:
J.D. Salinger, À Espera no Centeio. Algés: Difel, Janeiro de 2005, 226 pp. (tradução de José Lima; obra original: The Catcher in the Rye, 1951).
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