Dead Can Dance, Electronic, Faith No More, Killing Joke, Nine Inch Nails, Q. Lazzarus, The Dandy Warhols, The Durutti Column, The Fall e Tones on Tail.
Ouvi e desfrutai, irmãos bloggers!
«Glenn Gould said, "Isolation is the indispensable component of human happiness."» [Contraponto] «How close to the self can we get without losing everything?»
Don DeLillo, “Counterpoint”, Brick, 2004.
Na coluna do lado direito deste blogue figurará, durante algumas semanas, uma pequena colectânea de 45 músicas que povoaram o meu imaginário entre o início da minha adolescência de rebeldia sem causa e o início da idade das grandes decisões – esta última poder-se-ia definir como os meus middle twenties.
A lista contém algumas das bandas ou cantores que me acompanharão até ao fim dos dias. Todavia, as canções seleccionadas não querem significar que são as melhores entre as melhores, resultaram apenas de um rápido processo de escolha na impossibilidade – auto-imposta – de abarcar mais do que um intérprete por lugar nos 45 postos à disposição pelo fornecedor do serviço de escuta.
Ei-las (por ordem alfabética do nome de quem as interpreta):
Nota: Agradecimentos a CJ do blogue (éter) pelo facto de me ter dado a conhecer esta plataforma à laia de jukebox.
Sessões de apresentação do livro:
PRÉ-PUBLICAÇÃO
2
Da infância, Guilherme guarda a leveza do céu que sobrevoava Portalegre e o inesperado pico da Penha onde se adivinham os altos de Sousel, as ogivas da Flor da Rosa, a delicadeza do Crato e os longínquos mármores de Estremoz. Aos quinze anos, quando o pai foi trabalhar para a Sacor em Cabo Ruivo, entrou no Liceu D. Diniz nos Olivais e o paraíso encantado começou a desfazer-se. Era uma Lisboa de relvados, de vigas e torres, de autocarros podengos com dois andares esverdeados e uma ingénua combustão de transatlântico. Onde antes reinava a placidez das braseiras de cisco e pinhão, havia agora máscaras inquietas, jogos da sedução e algumas guitarras eléctricas. Guilherme parecia outra pessoa: subitamente ficou com dois metros de altura, a tez muito morena perdeu o ar eclesiástico e o cabelo encaracolado e almorávida passou a realçar ainda mais o nariz subido e o bigode sulcado. Mas quando aos dezassete anos os pais enviaram o rapaz para Évora para estudar sociologia, Guilherme sentiu um pasmo violento. Ao menos na “cidade museu” não havia “subversão”, nem “gorilas”, nem confusões e entre os alunos havia gente de “boas famílias”. Apesar dos breves protestos e da metáfora mágica da passagem “de cavalo para burro”, assim aconteceu.
Quando naquele início de Outono chegou a Évora, Guilherme teve a impressão de que a cidade era uma espécie de âncora que caíra abrupta e desamparadamente no fundo do mar. Depois dessa biogénese remota, os oceanos ter-se-iam evaporado e sobrara em torno da urbe a planura extensa e lisa onde choravam granitos austeros e sorriam com timidez as alvenarias claras. Uma catedral desproporcionada face ao resto do casario dominava e domava a quase desolação dos pátios, dos muros, dos ciprestes solitários e dos rostos paralisados que desciam pelas sombras das ruas estreitas e frias.
“A minha primeira imagem foi a de uma profunda solidão e arrepio. Lembro-me que subia a ladeira que conduz ao Jardim Diana, mesmo ao lado da faculdade (um Instituto superior regido por jesuítas), quando avistei sobre o pórtico dos Lóios um corvo que se aproximava de outro pássaro igualmente negro e espesso de plumagens. No meio daquele breu esculpido pela manhã de Outubro, apenas o bico deste último, era um melro, se distinguia do conjunto. Os pássaros pareciam ter cristalizado os seus movimentos e encostaram a certa altura os bicos um ao outro em agouro ainda hoje por explicar. Foi então que percebi que a cidade arrastava asas ocultas e semeava segredos e talvez fel a quem vinha de fora. O quadro, ao mesmo tempo arrepiante e tentador, persistia ainda no momento em que decidi avançar e cruzei a calçada granítica do templo romano para entrar finalmente no Instituto. O bico cor de mel e a azáfama negra das cabeças quase erguidas das aves acabaria assim por sinalizar o meu ingresso na ordem dos sociólogos que nunca viriam a sê-lo. De facto, desde esse ano de 1973 e durante vários e intensos meses de estudo, nunca chegaria a compreender o significado de tal ciência.”
O Instituto Superior Económico e Social de Évora, assim se chamava a faculdade, estava instalado no edifício onde uns séculos antes a segunda inquisição mais mortífera do país tinha feito jus à “História”. Não havia parede que não exalasse esse destino de horror. Nem era preciso subir ao primeiro andar para visitar a antiga sala do tribunal, local onde agora a sessão de boas-vindas se assemelhava a uma liturgia de capoeira que emprestara ao galo-mor um tremendo esporão de ornitorrinco. “Sempre imaginei, aliás, que antes de este edifício ter sido construído por aqui abundaria um cardume de limoeiros muito altos, árvores caprichosas que herdavam o ronronar antigo do mar e que haviam transformado a sua saudade naqueles citrinos de cor quente, cujo cheiro me fazia agora imaginar maresia, velames e as fontes da antiga fauna manuelina e mudéjar. E foi, de facto, quando dava a volta completa ao limoeiro gigante que escala ainda hoje pelos muros traseiros do edifício – estaria há um mês em aulas –, que vi a Rute pela primeira vez. Há sinas que vêm por bem.
Por trás do teatro de sombras densas que Évora nunca chegaria a desocultar, havia pequenos acenos de uma genealogia suave. À noite, punha-me a ver as lanternas que se perdiam nas travessas desertas, uma espécie de ferro meio forjado que embalava quatro trapézios laterais de vidro sempre coberto de pó. Dessas construções inocentes saía uma luminosidade baça como a das traineiras descoradas por excesso de navegação, ou por cisma e teima do sal. Suspensas das paredes liminarmente brancas, estas lanternas eram as jóias da desolação de Évora. E foi sob a sua luz auspiciosa que vi na expressão de Rute o grande milagre da vida. O amor. Havia uma mesma tonalidade no bico do melro, nos limões do pátio do Instituto e naquela luz de embalar a perdição das noites. A pouco e pouco, Évora começava a parecer-se com um minúsculo jardim das delícias: era uma nova cidade que se desenhava nos lençóis da cama do meu quarto onde o sangue e a iniciação se tornaram em dádiva única dos deuses.
E enquanto na cátedra falavam os descendentes das espécies maléficas que os oceanos aqui teriam há muito preservado, eu limitava-me a auscultar o olhar de Rute. Ela tinha um sorriso que se enrolava e que fazia lembrar a água a sair com fúria de uma represa. Era uma pessoa de rosto esguio, dedos finos e olhos transparentes, amarelados e bastante fixos. O cabelo muito liso da cor daquelas lagoas perdidas nas minas de cobre abandonadas. Era boa aluna e deve ter percebido, desde o primeiro dia, o que significava a ciência sociológica. Viera de Loulé, era filha de professores primários e encontrara em mim o primeiro ‘voo de longo alcance’ – cito as suas próprias palavras da época para evitar qualquer tipo de prosápia. Nesse tempo, eu empenhava-me em variadíssimas revoltas e ela achava graça ao figurão sem contudo se intrometer nos meus jogos. Lembro-me que interrompia as aulas com uivos, provocava os professores mais escolásticos, lia livros proibidos e gostava de os exibir; criava pequenos escândalos nos cafés, misturava Deep Purple com ‘mortes ao fascismo’, exibia-me portanto sem qualquer ar apaziguador ou cordato. E ela, como se fosse ainda uma doce pena apaixonada, dava-me cobertura e acompanhava-me com a maior das calmas e como se nada se passasse. No fundo, achava piada ao meu perfil de inconsequente.
Embora mais velha, havia uma prima direita do meu pai que morava em Évora há já várias décadas. Era filha de uma das muitas irmãs e irmãos que o meu bisavô, um filho bastardo da nobreza latifundiária, espalhara entre Portalegre, Monforte, Estremoz, Elvas, Borba, Vila-Viçosa, Moura, Olivença, Badajoz e até Trujillo. Casara com um veterinário que tinha grandes suíças e que arrastava botas altas de cabedal pelas calçadas da cidade e pelas mesas do Café Arcada onde praticamente só entravam homens. Essa prima, Maria Filomena (mais uma mão cheia de nomes) adorava brasões e morava numa casa grande de bons soalhos que se perdia ao longo de um corredor sombrio e cheio de retratos, molduras, jarrões, arcas e algumas cristaleiras atafulhadas por alfaias religiosas e santos carecas ou debruados com talha dourada. O casal não tinha filhos, nem quase recebia visitas, mas, durante a tarde, a minha prima convidava-nos de vez em quando para lanchar. Tratava-nos então ternamente por “filhos” e achava talvez graça ao que considerava ser a transgressão do nosso namoro. Ria muito alto como se fosse uma hiena sem forças para a caça, mas sem qualquer compaixão para com as suas presas. Untava as unhas de um vermelho muito forte e na sua face via-se ainda a menina que nunca deixara de ser. As elites locais aceitavam-na no Movimento Nacional Feminino e na Misericórdia. Mas não mais do que isso.
A meio da Primavera de 1974, estávamos a acabar o primeiro ano quando chegou a revolução.”