©José Gama, São Leonardo da Galafura, (imagem respigada da página pessoal do fotógrafo José Gama).«Um dia esta porra acaba. Não há xisto que dê americano. E dou um tiro nos cornos… ai dou!», ribombava Joaquim Lopes Touriga, mais conhecido por Quim da Touriga, por entre lágrimas salgadas, que corriam num dilúvio pelos grossos socalcos do seu rosto, esparramando-se na terra inculta. O Douro ao fundo amarelo, verde, cor de céu, parado, sem vida, sem alma, por certo formado pelas excrescências salinas que brotavam das faces dos miseráveis que dele já viveram e sustentaram a numerosa família a massa com feijão, pedaços –poucos – de carne de porco ressequida e couve galega acabada de colher na horta mantida à noitinha, quando o sol já se despedia, expelindo uma brisa gelada, mergulhando numa lubricidade esfusiante nos altos picos do Marão.
Assim estava o Quim da Touriga, todos os dias cumprindo o seu ritual dilacerante, no meio daqueles socalcos desertos, recessos, queimados pelo cartel que no início do ano estipulava, de forma livre como um condenado, o preço dos 550 litros que haviam de matar a fome àquelas bocas sujas de mosto e de barriga inchada pela fermentação do bago... no limiar da indigência.
Subiu à Galafura, incrustou os joelhos nos degraus da ermida, persignou-se e rezou a São Leonardo para que este intercedesse junto do Altíssimo, livrando de mácula a família que o esperava. Broa de milho partida à navalha, no tampo esconso de uma mesa, e uma mísera sardinha de conserva encaixada nas duas metades.
Remirou aquela massa caudalosa que serpenteava, outrora com esperança, provento da batalha diária. Na mão já não há o sacho, fiel amigo das longas jornas da lavoura. Foi abandonado, resvalando pela encosta num ruído metálico anunciando a despedida. Touriga segurava agora a Savage preta, destramente lubrificada com óleo de armeiro, e reluzia… faíscas bruxuleantes reverberando a sonância dos raios de Ouro, cuja terra dera nome ao rio – ou seria o contrário?
Era tão pesada, tão dolorosamente pesada, como o fardo que se anichava no recanto obscuro da sua consciência. Já vira a morte de frente pintada nos crânios do Zé Cerceal, do Nelo Roriz e do Quim Zé do Rabigato. Rostos plúmbeos para sempre arrancados à vida.
Os melros rastejantes de bico amarelo, véus negros de carvão esvoaçantes, adejando numa coreografia aprendida que espalha a boa nova ao irmão corvo: solta o teu trinado!
O azulejo gravado da ermida por letras de Torga exibe, agora, o estigma do sangue derramado pelo desespero da extrema miséria.
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«À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.
Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.
Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!»
Miguel Torga, “São Leonardo da Galafura”, Diário IX, 1964
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Dedicado às gentes laboriosas do Douro que, trabalhando de sol a sol, produzem a nossa mais estimável marca no mundo, cujos proventos retirados do Paiz Vinhateiro já não dão para se sustentarem no limiar da sobrevivência. Acorde, Sr. Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República Portuguesa! O Douro está a morrer!