terça-feira, 13 de junho de 2006

De se lhe cortar a cabeça

Se gosta de Dostoiévski, Kafka, Vian, Bradbury e Huxley, este romance é absolutamente…
[pausa reflectiva]
Ponto de Ordem
Acabei de ler um livro que se intitula «Convite para uma decapitação». Uma sensação de puro contentamento, paradoxalmente interposta por um sentimento de pena pelo dobrar da última folha, assolou-se de mim. Contudo, não me sentiria bem se não deixasse aqui neste lugar, quase em forma de solilóquio – dada a reduzida audiência –, o meu testemunho de leigo, embora amante das letras, acerca do romance – ou outra coisa qualquer que se lhe queira chamar – escrito pelo genial criador russo-americano Vladimir Nabokov.
Da publicação
«Convite para uma decapitação» foi publicado em russo em forma de folhetim entre os anos de 1935 e 1936. Em 1959 foi publicado em língua inglesa nos Estados Unidos sob o título «Invitation to a Beheading». Finalmente, a notável editora Assírio & Alvim publicou-o, pela primeira vez na língua de Camões, no início deste ano (2006) [referência completa: Vladimir Nabokov, Convite para uma decapitação, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2006, 217 pp. Tradução do inglês por Carlos Leite].
Da literatura comparada e dos críticos
No prefácio da edição portuguesa – escrito originalmente aquando da sua publicação no ano de 1959 nos Estados Unidos – Nabokov, no seu melhor estilo, truculento e polémico, diz que os críticos «julgaram distinguir neste livro uma veia kafkiana, sem saberem que eu não sabia alemão, que era completamente ignorante da literatura alemã moderna e não lera ainda nenhuma das traduções francesas ou inglesas das obras de Kafka» (pág. 9) dando a estocada final quando refere que as «afinidades espirituais não têm lugar no meu conceito de crítica literária, mas se tivesse de escolher uma alma afim, seria certamente esse grande artista [Kafka], e não G.H. Orwell ou outros populares provedores de ideias ilustradas e ficção publicitária» (pág. 10). Daí a minha propositada interrupção no início deste texto.
Do conteúdo
Sem querer revelar muito mais, já que, decerto, estragaria o prazer da sua descoberta, «Convite para uma decapitação» é uma brilhante alegoria sobre a coarctação da liberdade de expressão e do livre pensamento numa sociedade massificada sob a alçada dos valores e dos princípios dimanados pelo poder instituído. O pobre protagonista, Cincinnatus C., é condenado à morte por decapitação pela perpetração do crime de “torpeza gnóstica”.
Mas o que é a "torpeza gnóstica"? O narrador não a refere cabalmente, porém convida-nos a perscrutá-la durante o desenvolvimento da narrativa, repleta de personagens surreais com comportamentos estranhos, embora socialmente aceites, que giram em torno do condenado como um mostruário da vacuidade da sociedade na qual se inseriu antes da pronúncia da sua sentença. Todo o discurso é desconcertante, episódios surreais sucedem-se em cadeia, porém a opacidade de que Cincinnatus é acusado vai-se revelando nas cartas que vai escrevendo, com o toco do lápis roído na ponta, durante a estadia na sua cela. São os sentimentos e comportamentos típicos de um ser humano saudável: as memórias da infância, os afectos, os medos, as angústias, as paixões, o amor nas suas diversas manifestações, os sentimentos de justiça, de lealdade e de fraternidade.
Avaliação final
Diga-se o que se disser, venha quem vier, este romance é uma obra-prima sob todos os aspectos que deverão presidir à apreciação de uma obra literária que me desobrigo de enumerar porque advém da minha tão subjectiva, e por isso tão válida como outra qualquer, bitola literária.
Relativismos!

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