Desde o dia em que solta o primeiro gorjeio à saída do útero materno até ao último estertor antes da misteriosa – e definitiva? – interrupção das ondas ritmadas que reflectem o pulsar da vida, o ser humano é um todo complexo de emanações que resultam de um processo de aprendizagem da tentativa e do erro, e da doutrina que aqueles que nos rodeiam zelosamente querem perpetuar naquele que lhes é próximo.
Como já tive a oportunidade de referir neste espaço de catarse e de expiação, hoje sou um ser descrente que caminha inexoravelmente para o cepticismo mais radical, porque entendo a vida como um sofrimento perene cortado por ocasionais e efémeros momentos de alegria e/ou de exultação. Todavia, não poderia aqui negar que o meu processo de desenvolvimento ontogenético, nas suas etapas preliminares, foi fortemente circunscrito por uma educação de forte índole religiosa – sem ser fundamentalista ou de uma devoção extrema – que os meus famíiliares mais próximos me quiseram incutir, porque, na sua fé inabalável, haviam postulado como a melhor solução para o fortalecimento do meu ser e da minha condição humana. Não os recrimino por isso, tal como agora não sou recriminado, embora aconselhado, pelo facto de não acreditar com as mesmas força e convicção na Divina Providência que um dia – sabes lá quando – fará justiça em nosso nome.
Assim, lembro-me – e apenas decorreram cerca de nove anos – da 2.ª leitura da celebração religiosa do meu casamento, que eu e a minha mulher havíamos escolhido apenas uma semana antes, quando a ouvíramos na eucaristia que precedeu o casamento de dois eternos amigos – os quais considero hoje como irmãos. Falo como é óbvio do Cântico do Amor (Capítulo13 da 1.ª Epístola de S. Paulo aos Coríntios), onde outrora, nesse mesmo espaço, existia a palavra “caridade”.
O amor e a caridade são, hoje em dia, conceitos perfeitamente distintos no seu campo semântico. Todavia brotam da mesma raiz que assenta na exteriorização pelas palavras e pelos actos dos nossos afectos, seja qual for a sua natureza.
O curtíssimo romance de André Gide «A Sinfonia Pastoral» trata dessa dualidade ou, para ser mais exacto, da ténue fronteira entre caridade e amor.
Publicado pela primeira vez em 1919, este romance curto – como prefiro chamar-lhe, em oposição a “novela” –, de escassas cem páginas, mostra-nos essa dualidade através do processo de aprendizagem de uma rapariga cega que até aos 15 anos vivera com a sua mãe, que entretanto faleceu, revelando-se as condições de miséria e abandono a que estivera votada, vivendo como um animal enjaulado longe do mundo e da mácula do século.
O nome da obra provém dos primeiros passos desse processo, conduzido por um Pastor Protestante numa vila da Suíça, casado e pai de 5 filhos, que havendo adoptado a rapariga, a quem chamou Gertrude, procura obstinadamente ensinar a falar, a ler através do tacto, as regras mais basilares de comportamento social e os princípios espirituais da fé cristã. Porém, quando Gertrude não entende o que é a cor e todo o seu espectro de tons escuros e claros, o Pastor leva-a a um concerto onde se interpretava A Sinfonia Pastoral de Beethoven, para lhe explicar através dos diferentes sons e das suas tonalidades, provindos dos diferentes tipos de instrumentos, a paleta iridescente que pinta o mundo à sua volta.
Por outro lado, nesta obra, discute-se a fé, a assunção e a liturgia do cristianismo por Protestantes e Católicos, efabuladas nas lições de Cristo e de Paulo. Fala do ressentimento, da indiferença e do egoísmo tão próprios e imanentes do ser humano.
Não me atrevo a contar muito mais, sob pena de prejudicar a sua leitura, todavia tenho que referir que esta pequena maravilha literária é uma obra negra, agreste e soturna, porém conduz-nos à dúvida e apela ao duro escrutínio da nossa conduta que, de forma ufana e na estridência do dia-a-dia, não ousamos sequer pensar em executar.
Sublime!
Referência completa:
André Gide, A Sinfonia Pastoral, Ambar, Janeiro de 2006, 101 pp. [Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira] (La Symphonie Pastorale, 1919).
Como já tive a oportunidade de referir neste espaço de catarse e de expiação, hoje sou um ser descrente que caminha inexoravelmente para o cepticismo mais radical, porque entendo a vida como um sofrimento perene cortado por ocasionais e efémeros momentos de alegria e/ou de exultação. Todavia, não poderia aqui negar que o meu processo de desenvolvimento ontogenético, nas suas etapas preliminares, foi fortemente circunscrito por uma educação de forte índole religiosa – sem ser fundamentalista ou de uma devoção extrema – que os meus famíiliares mais próximos me quiseram incutir, porque, na sua fé inabalável, haviam postulado como a melhor solução para o fortalecimento do meu ser e da minha condição humana. Não os recrimino por isso, tal como agora não sou recriminado, embora aconselhado, pelo facto de não acreditar com as mesmas força e convicção na Divina Providência que um dia – sabes lá quando – fará justiça em nosso nome.
Assim, lembro-me – e apenas decorreram cerca de nove anos – da 2.ª leitura da celebração religiosa do meu casamento, que eu e a minha mulher havíamos escolhido apenas uma semana antes, quando a ouvíramos na eucaristia que precedeu o casamento de dois eternos amigos – os quais considero hoje como irmãos. Falo como é óbvio do Cântico do Amor (Capítulo13 da 1.ª Epístola de S. Paulo aos Coríntios), onde outrora, nesse mesmo espaço, existia a palavra “caridade”.
O amor e a caridade são, hoje em dia, conceitos perfeitamente distintos no seu campo semântico. Todavia brotam da mesma raiz que assenta na exteriorização pelas palavras e pelos actos dos nossos afectos, seja qual for a sua natureza.
O curtíssimo romance de André Gide «A Sinfonia Pastoral» trata dessa dualidade ou, para ser mais exacto, da ténue fronteira entre caridade e amor.
Publicado pela primeira vez em 1919, este romance curto – como prefiro chamar-lhe, em oposição a “novela” –, de escassas cem páginas, mostra-nos essa dualidade através do processo de aprendizagem de uma rapariga cega que até aos 15 anos vivera com a sua mãe, que entretanto faleceu, revelando-se as condições de miséria e abandono a que estivera votada, vivendo como um animal enjaulado longe do mundo e da mácula do século.
O nome da obra provém dos primeiros passos desse processo, conduzido por um Pastor Protestante numa vila da Suíça, casado e pai de 5 filhos, que havendo adoptado a rapariga, a quem chamou Gertrude, procura obstinadamente ensinar a falar, a ler através do tacto, as regras mais basilares de comportamento social e os princípios espirituais da fé cristã. Porém, quando Gertrude não entende o que é a cor e todo o seu espectro de tons escuros e claros, o Pastor leva-a a um concerto onde se interpretava A Sinfonia Pastoral de Beethoven, para lhe explicar através dos diferentes sons e das suas tonalidades, provindos dos diferentes tipos de instrumentos, a paleta iridescente que pinta o mundo à sua volta.
Por outro lado, nesta obra, discute-se a fé, a assunção e a liturgia do cristianismo por Protestantes e Católicos, efabuladas nas lições de Cristo e de Paulo. Fala do ressentimento, da indiferença e do egoísmo tão próprios e imanentes do ser humano.
Não me atrevo a contar muito mais, sob pena de prejudicar a sua leitura, todavia tenho que referir que esta pequena maravilha literária é uma obra negra, agreste e soturna, porém conduz-nos à dúvida e apela ao duro escrutínio da nossa conduta que, de forma ufana e na estridência do dia-a-dia, não ousamos sequer pensar em executar.
Sublime!
Referência completa:
André Gide, A Sinfonia Pastoral, Ambar, Janeiro de 2006, 101 pp. [Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira] (La Symphonie Pastorale, 1919).
Adenda: ler este excerto sobre o romance retirado da biografia de André Gide escrita por George D. Painter.
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