domingo, 11 de junho de 2006

Da destruição: dor e memória

«O fogo, que se erguia a dois mil metros no ar, sugava o oxigénio com tal força que as correntes de ar atingiram a violência de um furacão e ressoavam como poderosos órgãos com todos os registos abertos ao mesmo tempo. Tudo ardeu assim durante três horas. No seu auge, a tempestade levantou coberturas e telhados de casas, atirou ao ar vigas e tabuletas inteiras, arrancou árvores do solo e levou pessoas à sua frente como tochas vivas. (…) Em alguns canais a água ardia. Os vidros das janelas dos eléctricos derreteram, o açúcar armazenado ferveu nas caves das padarias. Os que tinham fugido dos seus abrigos afundaram-se, grotescamente contorcidos, nas bolhas espessas formadas pelo asfalto derretido. Não se sabe realmente quantos perderam a vida nessa noite nem quantos enlouqueceram antes de a morte os levar. (…) Por toda a parte havia cadáveres horrivelmente desfigurados. Em muitos deles luziam ainda chamas de fósforo azuladas, outros estavam queimados com uma cor castanha ou roxa e reduzidos a um terço do seu tamanho normal. Jaziam dobrados em poças da sua própria gordura derretida, por vezes já em parte solidificada» [relato sobre os efeitos do ataque aéreo da RAF, levado a cabo na madrugada de 27 de Julho 1943, sobre a cidade alemã de Hamburgo].
W.G. Sebald, História Natural da Destruição: Guerra Aérea e Literatura, Teorema, Fevereiro de 2006, pp. 31-32. [Tradução de Telma Costa] (Luftkrieg und Literatur, 2003).

Sebald em 1997 participa numa conferência em Zurique onde apresenta o seu ensaio “Guerra aérea e literatura”. Os jornais noticiam o seu conteúdo e uma onda de choque varre a comunidade académica. Sebald demonstra que a literatura no pós II Guerra Mundial, particularmente a alemã, esquece a destruição massiva das cidades alemãs perpetrada pela força aérea aliada e mais concretamente a britânica, seguindo o area bombing preconizado por Sir Arthur Harris – comandante-em-chefe do Bomber Command da Royal Air Force, também conhecido por “Carniceiro” Harris por parecer não se importar pela perda dos seus próprios militares nos bombardeamentos.
Anos mais tarde, Sebald publica “Guerra aérea e literatura: lições de Zurique” onde acrescenta um posfácio relatando as reacções recebidas, referindo-se a determinadas cartas que recebeu de académicos e não só, dizendo que «tudo o que me foi dito em dezenas de cartas confirmou a minha convicção de que aqueles que nasceram depois, se quisessem confiar apenas nos testemunhos dos escritores, dificilmente poderiam formar uma ideia da extensão, natureza e consequências da catástrofe que os bombardeamentos aéreos fizeram cair sobre a Alemanha.» (pág. 65)
Ao contrário do que se possa eventualmente pensar após uma primeira análise, Sebald não defende os alemães, nem tão-pouco o regime nazi, ao trazer à colação a devastação provocada pelos bombardeamentos dos aliados. A tese de Sebald é o esquecimento colectivo da literatura alemã do pós-guerra sobre a visão terrífica das suas cidades completamente destruídas e dos milhares de mortos e de refugiados que os bombardeamentos provocaram.
(Neste posfácio, Sebald termina com uma carta recebida por um tal Dr. H. – que Sebald se escusa a revelar a identidade – que pretende que o escritor sirva de braço literário a uma corrente ideológica eventualmente neonazi. Sebald irrita-se com a falta de assimilação e de cuidados interpretativos por parte do tal Dr. H., chegando a referir «Quanto às teses propriamente ditas que o Dr. H. oferece, com evidente orgulho na sua acutilância, mais não são que um derivado do chamado “Protocolo dos Sábios de Sião”, o falso pseudodocumental posto a circular na Rússia czarista que denunciava uma Internacional judia puxando os cordelinhos conspirativos, com aspirações ao poder mundial e a destruir povos inteiros.» (pág. 91) para mais à frente dizer que «De um ponto de vista actual, podemos ser tentados a menosprezar as declarações do Dr. H. como absurdos de alguém que nunca há-de melhorar. Absurdas são, sem dúvida, mas nem por isso menos hediondas. É que se alguma coisa está na base do sofrimento incomensurável que nós, alemães, infligimos ao mundo é esta linguagem insidiosa, feita de ignorância e ressentimento. A maioria dos alemães sabe hoje, pelo menos assim se espera, que fomos nós que provocámos a destruição das cidades em que vivíamos.» (pág. 92) Neste pequeno trecho está patenteada a tal chocante ignorância de que falei neste texto
aqui.)
Esta obra de Sebald, publicada em 2003 – já após a sua morte provocada por um acidente de viação em Inglaterra em 2001 – é constituída por 4 ensaios, cujo nome adveio do zoólogo e investigador britânico, Solly Zuckerman, encarregado por Churchill para a realização de uma investigação sobre os efeitos dos bombardeamentos na vida das pessoas. Zuckerman após ter testemunhado o horror da devastação da cidade alemã de Colónia, chegado a Inglaterra, propõe-se a escrever um relato “Sobre a história natural da destruição”, que nunca veio a completar e que, segundo disse, se deveu à sua falta de eloquência que seria indispensável incluir no tal terrífico e macabro relato.
A história natural da destruição é o relato da degradação sofrida pelo povo em termos físicos e psicológicos. Sebald fala da dor provocada pela destruição que, por certo, terá conduzido à amnésia colectiva de um povo acerca dos pormenores dessa mesma destruição. É um mecanismo de defesa da população face ao choque da ruína completa – tal como, em termos físicos, o nosso corpo se consegue desligar (estado de inconsciência) após a percepção da dor. Acresce ainda que a população alemã tem a consciência de que a dor de que padece foi provocada pelos dirigentes que directa ou indirectamente apoiaram. Um regime torcionário que professava uma política de extermínio e de aniquilação total.
Nos restantes 3 ensaios, Sebald fala-nos de 3 nomes da arte e da literatura que sobreviveram de maneiras diferentes ao terrível conflito: «O escritor Alfred Andersch», «Contra o irreversível: sobre Jean de Améry» e «Sinceros remorsos: sobre memória e crueldade na obra de Peter Weiss».
O artigo que mais me impressionou foi a descrição sobre o trajecto de vida do escritor alemão Alfred Andersch, uma vez que as suas atitudes e comportamentos dignos de um réptil se replicam na sociedade contemporânea. Aquele que adapta os valores, princípios e crenças segundo a doutrina do poder dominante, nem que para isso tenha que renegar a própria família. É o retrato fiel de um arrivista padrão. E quantos de nós não convivem ou já não conviveram com autênticos répteis que se socorrem de todos os meios para atingir os seus fins?
A propósito de Andersch e da sua adopção da nacionalidade suíça, para cujo país já havia emigrado em 1958, Sebald diz: «No fundo, Andersch era um homem que via as coisas de longe. É portanto inteiramente lógico que tenha adoptado a nacionalidade suíça no princípio dos anos setenta, embora não precisasse. Para apoiar o seu pedido de cidadania, Andersch contou durante anos com o apoio do seu vizinho em Ticino, o escritor Max Frisch, mas ficou muito desiludido, sentindo-se mesmo difamado, quando soube que Frisch tinha escrito “Ele gosta da Suíça; a Suíça não lhe dá que fazer”: esta história dá-nos mais uma perspectiva sobre uma vida interior povoada por ambição, egoísmo, ressentimento e rancor. A obra literária é a capa que envolve tudo isso. Mas o forro, mais fino, mostra tudo» (pág. 123).

De leitura indispensável!

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