quinta-feira, 1 de junho de 2006

Fiat Lux #10: Experiências com a Verdade

Intróito
Nesta compilação Auster relata-nos alguns detalhes e manias do seu processo de escrita que, normalmente, se inicia – como nas suas histórias espectrais – com um incidente da vida real.
Esta obra contém o venerável e pequeno ensaio de culto a que Auster chamou “O Caderno Vermelho” – falarei dele à parte, uma vez que foi publicado em separado. Seguidamente há prefácios, entrevistas e artigos ou crónicas do autor.

Uma oração por Salman Rushdie
Em 1993, Auster escreveu este texto como prece ao direito à vida e à liberdade de expressão do seu colega de profissão e amigo pessoal Salman Rushdie, após o assassinato do seu tradutor japonês e o atentado sofrido pelo seu editor norueguês, William Nygaard – que sobreviveu, apesar dos ferimentos graves.
Coincidência ou acaso – neste circunstância a citação foi mesmo fruto da minha vontade –, hoje finalmente pude adquirir o último romance de Rushdie «Shalimar, o palhaço» publicado em 2005 em língua inglesa (Shalimar the Clown) e agora traduzido e publicado em português pela Dom Quixote.

«Quando me sentei para escrever esta manhã, a primeira coisa que fiz foi pensar em Salman Rushdie. Há quase quatro anos e meio que faço isto todas as manhãs, e, agora, é já uma parte essencial da minha rotina diária. Pego na caneta e, antes de começar a escrever, penso no meu colega romancista que está do outro lado do oceano. Rezo para que ele continue vivo por mais vinte e quatro horas. Rezo para que os seus protectores ingleses o mantenham escondido da gente a quem encomendaram o seu assassínio – a mesma gente que já matou um dos seus tradutores e feriu outro. Sobretudo, rezo para que venha um tempo em que estas orações deixem de ser necessárias, para que venha um tempo em que Salman Rushdie tenha tanta liberdade como eu para caminhar pelas ruas do mundo.
Rezo por este homem todas as manhãs, mas, no fundo, sei que estou também a rezar por mim. A sua vida corre perigo porque escreveu um livro. O meu trabalho é também escrever livros e eu sei que poderia estar na mesma situação que ele, não fossem os caprichos da história e uma questão de sorte, de pura e cega sorte. Se não hoje, então talvez amanhã. Pertencemos ao mesmo clube: uma irmandade secreta de solitários, confinados, e excêntricos, homens e mulheres que passamos a maior parte do nosso tempo fechados em pequenos quartos, travando a batalha de pôr palavras numa página.
(…)
Ele carrega o fardo por todos nós e eu já não consigo pensar no que faço sem pensar nele. O transe por que está a passar arrebatou toda a minha atenção, levou-me a reexaminar as minhas crenças, ensinou-me a nunca dar por adquirida a liberdade de que desfruto. Por tudo isso, tenho para com ele uma imensa dívida de gratidão. Apoio Salman Rushdie na luta que trava para reconquistar a sua vida, mas a verdade é que ele também me tem apoiado. Quero agradecer-lhe por isso. Sempre que pego na caneta quero agradecer-lhe. (1993)»
Paul Auster, “Uma oração por Salman Rushdie”, em Experiências com a Verdade, Asa, 1.ª Edição, Março de 2003, pp. 163-165
[Tradução de José Vieira de Lima] (Experiments in truth, 1995)

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