Grande parte dos livros, obedecendo a escrupulosos critérios editoriais de carácter meramente comercial, trazem na capa, na contracapa e/ou nas badanas frases curtas, apelativas e bombásticas enaltecedoras da eminente qualidade da história que se desenrolará naquelas páginas impressas. Muitas, se atentarmos nas recensões de base, estão completamente descontextualizadas daquilo que o crítico citado, em boa verdade, pretendeu preconizar. Outras são retiradas de publicações de qualidade duvidosa, cujos nomes aparecem num tipo de letra que rivaliza com as tais cláusulas abusivas tão típicas dos contratos celebrados com as beneméritas empresas seguradoras.
Contudo, e seria um exercício deveras falacioso se não o dissesse, há asserções desse género que me cativam, mesmo que de forma subliminar, e outras – poucas – que acertam no alvo.
Um exemplo destas últimas:
«O Mar é indispensável para quem leva os livros e a literatura a sério. Um romance indiscutivelmente brilhante».
Segundo a editora Asa, esta afirmação é de autoria do recenseador do periódico norte-americano USA Today relativamente ao último romance do escritor irlandês John Banville «O Mar», vencedor do Man Booker Prize for Fiction de 2005.
Fui ver e a neve caía do azul cinzento… Perdão, a dita recensão é de Deirdre Donahue, que considera o romance de Banville sublime e uma “extraordinária meditação sobre a mortalidade, a dor do luto, a morte, a infância e a memória” [tradução livre].
Muitas outras vão neste sentido – por exemplo esta no Independent por John Tague –, porém aquela frase inicial de Donahue substancia o apelo da narrativa, fortemente elaborada, ao grau de introspecção e de lenta degustação à medida que nela vamos avançando. Não é um page-turner, é, ao invés, um delicado page-returner – e perdoem-me o uso destes inevitáveis estrangeirismos.
Muito se falou acerca deste livro a propósito da inesperada atribuição do prémio máximo da literatura de ficção britânica (Ilhas Britânicas, Commonwealth e República da Irlanda). Por exemplo, no New York Times, a habitualmente maniqueísta, truculenta e corrosiva Michiko Kakutani desanca, sem algum tipo de pudor, na prosa do escritor irlandês, chegando ao ponto de lhe chamar um romance “frio, fastidiosamente árido e de escrita espaventosa que contrasta radicalmente com a energia vibrante que irradia de outros nomeados para o Booker” [tradução livre]. Curiosamente, no mesmo periódico há uma crítica quase que diametralmente oposta, publicada apenas vinte e seis dias depois, de autoria de Terrence Rafferty. Num ponto dou razão a Kakutani, o ano de 2005 foi uma das melhores colheitas de sempre para a literatura de ficção britânica, desde logo se atentarmos nos restantes cinco finalistas (shortlist, 6 livros) derrotados por este livro de Banville: «Nunca Me Deixes» de Kazuo Ishiguro (Gradiva), «A Acidental» de Ali Smith (Bico de Pena), e os ainda não lidos e traduzidos para português «On Beauty» de Zadie Smith, «Arthur & George» de Julian Barnes e «A Long Long Way» de Sebastian Barry; não esquecendo os livros «Sábado» de Ian McEwan (Gradiva) e «Shalimar, o palhaço» de Salman Rushdie (Dom Quixote), ou mesmo «Slow Man» do sul-africano Nobel da literatura J.M. Coetzee, que se ficaram pela primeira lista de finalistas (longlist, 17 livros).
Do aforismo
“Conhece-te a ti mesmo” é na realidade a melhor frase para descrever este livro. Esta máxima, na sua versão latina, é atribuída a Cícero enquanto se dirigia, em discurso, ao senado romano. No entanto, as suas origens são gregas – a expressão original é “gnothi seauton” –, as palavras estão gravadas na parede do Templo de Apolo em Delfos, desconhecendo-se o seu autor, embora seja considerada a base de toda a filosofia de Sócrates. Este aforismo traduz a necessidade de cada um reconhecer os seus próprios defeitos e problemas antes de apontar o dedo ao próximo. Isto significa que o primeiro passo para a resolução de grande parte dos nossos problemas parte do reconhecimento e da assunção deles mesmos, cuja mente não dispõe da solução mas que esta reside na mente dos outros. Em suma, a solução do problema resulta, quase sempre, da interacção entre os indivíduos mediante a troca de experiências e a compreensão mútua.
Do romance
Este é o retrato de Max Morden, no ocaso da vida, diletante e um projecto de historiador de arte, que concentra os seus esforços no estudo do pintor francês Pierre Bonnard e na relação com a sua companheira Marthe, estabelecendo uma certa analogia com a sua mulher Anne Morden, cujas consequências do seu trágico desaparecimento marcam a narrativa, na medida em que o assaltam as dolorosas e difusas rememorações da infância, de uma vida atribulada enquanto filho de uma família despedaçada pela escassez de afectos e de bens materiais, assim como pelo precoce abandono do lar perpetrado pelo seu pai.
A narrativa é delimitada por dois acontecimentos marcantes: as recordações das suas férias de Verão em Ballyless, tinha Max 11 anos, e a recente morte da mulher, Anne, que o conduzem à revivescência desse Verão, ocorrido há cinco décadas atrás, onde conhece a família Grace na Casa dos Cedros, junto ao mar, e o levam, após o decurso destes anos, a instalar-se num dos seus quartos.
Max é, agora, um velho amargurado e ressentido, que reconhece, através das tais rememorações, subliminarmente autocríticas, a vacuidade que sempre pontuou a sua existência, denegando as suas próprias imperfeições, vícios e incapacidades, à laia de Sartre que professava que o inferno são os outros.
A edição portuguesa de O Mar, de responsabilidade da Asa, contém 166 páginas. Todavia, a densidade narrativa é de tal ordem que as 166 se transformam em 332 páginas. Podê-lo-emos considerar como um exemplar barroco, na medida em que Banville explora ao máximo e com mestria as capacidades da linguagem e da narrativa. Um exemplo:
«Ali parado naquele cubículo de luz branca, vejo-me transportado por momentos para uma praia distante, real ou imaginada, não sei bem, embora os detalhes possuam uma definição onírica precisa, estou sentado ao sol num rebordo duro de areia xistosa e seguro nas mãos uma grande pedra azul, lisa e macia. A pedra é seca e quente, pressiono-a contra os lábios, possui um sabor salgado evocativo do fundo do mar, de ilhas distantes, de lugares perdidos sob folhagens imensas, de frágeis esqueletos de peixe, de destroços e de restos em decomposição. A leve ondulação à minha frente junto à linha de água sussurra numa voz animada, segredando impetuosa uma catástrofe antiga, o saque de Tróia, talvez, ou o desaparecimento da Atlântida. As margens são salgadas e brilhantes. Pérolas de água desfazem-se numa corrente prateada na pá de um remo. Vejo ao longe o barco negro a aproximar-se imperceptivelmente a cada instante que passa. Eu estou lá. Ouço o silvo da vossa sirene. Estou lá, estou quase lá.» (pp. 84-85).
Avaliação final
O Mar é um romance sublime, minimalista – como alguns lhe chamaram – e verdadeiramente inebriante, que nos alerta para o perigo iminente, que espreita ao virar de cada esquina, da tenebrosa amargura e do sombrio ressentimento que, de forma inelutável, uma vida mal vivida nos poderá determinar e marcar para todo o sempre.
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