Um livro e um filme (este último, para o capítulo II).
O livro
Cormac McCarthy, esse grandessíssimo autor da sublime escola literária norte-americana contemporânea, novelista que vou aprendendo a admirar, residente no Novo México, nascido em Providence, Rhode Island, em 1933, escreveu um dos melhores romances mascarados de thriller que li nos últimos tempos: Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men, 2005).
Com uma economia e uma precisão narrativas, McCarthy constrói uma fábula sobre a perversidade e o apodrecimento humanos provindos de uma decadência, aparentemente irreversível, do outrora admirável Novo Mundo: terra dos bravos e dos homens livres, agora terreno fértil para as elucubrações literárias – alguém disse, e não me lembro quem, que o grau de excelência da Literatura (entendida como profusão de livros e do número de autores coetâneos de altíssima qualidade) representativa de um lugar, de uma região, de um país num dado momento é directamente proporcional ao seu grau de anomia, de desintegração e de desenraizamento sociais.
McCarthy e DeLillo são, neste momento, as vozes literárias que, de forma precisa, testemunham e alertam para essa desolação travestida de um, tão inútil como afanoso, fervor vivencial que invadiu a sociedade americana, cujo destino real – lê-se nas entrelinhas –, quiçá num futuro mais próximo que o conjecturado, poderá ir muito além da ficção, da visão distópica modelada pela obra de arte.
Este País Não É para Velhos é, na sua aparência, uma obra de ficção policial: um frio e calculista assassino, Anton Chigurh, a soldo dos grandes traficantes de droga que operam na fronteira territorial entre os Estados Unidos e o México, e um banal mecânico de província, soldador de peças de automóveis, veterano da guerra do Vietname, Llewelyn Moss, que descobre, enquanto caçava na paisagem desértica da fronteira, uma mala recheada com mais de 2 milhões de dólares, um carregamento de heroína mexicana e um estranho morticínio que apenas deixou um homem moribundo e uns tantos cadáveres espalhados pelo terreno.
Contado assim, o enredo do penúltimo romance de McCarthy não passaria de mais um thriller paraliterário, potencialmente hollywoodiano, pejado de cenas de uma violência gratuita, abordando, com uma reflexão exasperantemente débil e minimalista, a eterna disputa entre o bem e o mal, neste caso transformado no visto e revisto jogo do gato e do rato entre o criminoso e o inocente; em suma, uma história sobre a presciência, a frieza e a sabedoria de um assassino que se empenha numa busca desenfreada para recuperar o dinheiro sujo que foi roubado por um inexperiente e anódino homem da província, com uma vida banal e de escassa inteligência prática.
No entanto, é precisamente aí, nesse jogo de ilusão e de aparência, que reside o desafio que McCarthy lança ao leitor. A lhaneza dos diálogos, o emagrecimento descritivo e a frenética sequência dos factos exigem ao leitor atento, amante das artes literárias, um esforço de desconstrução: ler um subtexto supostamente inexistente, mas que o autor, de forma engenhosa, deixou visível, como o novelo de fio de Teseu que desenrolado o pôde conduzir à saída do labirinto de encontro à sua amada Ariadne.
McCarthy mostra-nos o fio da narrativa através das intervaladas reflexões do velho xerife Ed Tom Bell, ex-combatente da II Guerra Mundial, sobre o envelhecimento e a memória de um passado obscuro que nos persegue – «Ele disse que eu estava a ser demasiado severo comigo mesmo. Disse que era sinal da velhice. Tentar emendar os erros que se cometeram. Se calhar há nisto alguma verdade. Mas não é a verdade toda. Concordei com ele quando disse que não havia muita coisa boa para dizer sobre a velhice e ele disse que tinha descoberto uma e eu perguntei o que era. E ele disse: É que não dura muito.» (pág. 203) –, sobre a inadaptação por um país em que a violência parece tomar conta de vida dos seus filhos, embora, com um mínimo esforço de memória, se possa concluir que toda a sua história foi construída sob o domínio da violência, desde as primeiras investidas territoriais dos primeiros colonos, passando pela Guerra da Secessão, acabando no Vietname (o romance decorre no final da década de 70 do século XX) – «Pensei na minha família e pensei nele, sozinho naquela velha casa, na cadeira de rodas, e dei comigo a pensar que este país tem uma estranha história e bem sanguinolenta, diga-se, chiça.» (pág. 205); «As pessoas dizem que foi o Vietname que pôs este país de rastos. Mas eu nunca acreditei nisso. O país já estava em muito mau estado. O Vietname foi só a cereja em cima do bolo.» (pág. 214).
É nestas reflexões de Ed Tom, verbalizadas num estilo de linguagem coloquial, em que se funda e materializa a mensagem, transformando a aparente acção principal num teatro de sombras do inexorável caminho para o apocalipse de uma sociedade corrupta, perversa e materialista que deprecia o valor absoluto da vida humana, estabelecendo-se um paralelismo bíblico com as profecias de São João Evangelista determinadas no último dos Livros do Novo Testamento.
«Dizem que os olhos são as janelas da alma. Eu cá por mim não sei de que é que os olhos são as janelas e se calhar até prefiro não saber. Mas há uma outra maneira de ver o mundo e outros olhos para o ver e é por esse caminho que nós vamos. Eu próprio o trilhei e conduziu-me a um lugar na minha vida que nunca imaginei chegar a conhecer. Algures por aí anda um profeta da destruição, um profeta genuíno, de carne e osso, e eu não o quero enfrentar.» (pp. 15-16).
Com este romance, Cormac McCarthy traz-nos de novo uma atroadora e descoroçoante alegoria. Uma narrativa com vida própria, autónoma, para além da vontade do próprio escritor, viril, brutal, desoladora e inóspita, sem mesuras e lamentos, expurgada de derivações metafísicas ou de pretensas respostas sobre o declínio da América e da nossa civilização, e a percebida inexorabilidade – o espírito deste tempo – na aproximação das trevas.
Classificação: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica:
Cormac McCarthy, Este País Não É para Velhos. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Outubro de 2007, 231 pp. (tradução de Paulo Faria; obra original: No Country for Old Men, 2005).
Nota: Os fabulosos irmãos Coen (Joel e Ethan) – responsáveis por alguns dos filmes do meu Olimpo íntimo e intransmissível: Fargo (1996) ou O Grande Lebowski (The Great Lebowski, 1998) – produziram, realizaram, montaram e escreveram o argumento do filme homónimo – estreou na semana passada nas salas de cinema norte-americanas –, com interpretações de Tommy Lee Jones, Javier Bardem, Woody Harrelson, entre outros. Tanto a crítica, como a esmagadora maioria dos espectadores, têm demonstrado, empregando algumas hipérboles encomiásticas, a sua admiração irrestrita pelo último filme desta dupla.
Por aqui vou esperando, dando por mim a desejar que a história, na versão fílmica dos irmãos Coen, haja logrado captar a verdadeira essência do romance de McCarthy. Todavia, enfatizando a ressalva, a um filme dessincronizado com a obra literária que lhe deu origem não pode, nem deve, seguir-se uma imediata sentença de repúdio ou de rotulagem de inabilidade na adaptação do romance de base. São artes diferentes que merecem um tratamento diferenciado. Normalmente, a natureza descritiva de um livro é incompatível com o imediatismo imagético de uma obra cinematográfica. De outro modo, correríamos o risco de cair na célebre imagem satírica de Hitchcock das duas cabras que pastavam bobines de celulóide talvez nas colinas de Hollywood, em que a primeira pergunta à segunda se esta está a gostar da refeição; ao que a segunda responde: “Nada mal!... Mas, gostei mais de comer o livro…»