segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Submissão (parte II)

«As forças revolucionárias [era a voz do Guia] são capazes e têm o direito de usar o terror para eliminar todo aquele que se oponha à revolução. Agora já podemos verdadeiramente acabar com a velha sociedade líbia e construir uma nova, na qual os elementos revolucionários se ajudam uns aos outros na luta contra todos os movimentos anti-revolucionários das universidades, das fábricas e das ruas.» (pp. 237-238)

Estas palavras são atribuídas ao infame Coronel Muamar Khadafi, o Guia, presidente da Líbia desde o golpe de estado, levado a cabo pelos militares, de 1 de Setembro de 1969 que depôs o regime monárquico líbio liderado pelo rei Idris I e formou a República Árabe da Líbia.

Hisham Matar, nascido em 1970 na cidade de Nova Iorque, é filho de pais líbios. Aos três anos sai dos Estados Unidos para viver a sua primeira infância na Líbia, de súbito interrompida quando, em 1979, por acusações de dissidência política, a família é deportada para o Cairo, cidade que o acolherá até 1986, ano em que se estabeleceu definitivamente em Londres, para onde viajou sozinho e se licenciou em arquitectura. Em 2006 publica o seu primeiro romance In the Country of Men que, desde logo, integrou em 2006 o restrito grupo de finalistas do mais prestigiado prémio literário da língua inglesa fora dos Estados Unidos, o
Booker Prize, vencido pela escritora de origem indiana Kiran Desai – filha da escritora Anita Desai – com o romance, ainda não editado no nosso país, The Inheritance of Loss.

Em Terra de Homens, Matar descreve a triste realidade de uma família líbia pertencente à classe média-alta que, no Verão de 1979, se vê envolvida na opressiva e discricionária trama da justiça do seu país, comandada pelo despótico Coronel Khadafi e pelos Comités Revolucionários, os doutrinadores e algozes do regime.
A história é narrada pelos olhos de Suleiman, um rapaz de 9 anos – idade que o próprio autor atingira nesse ano – que vivencia, na plenitude da sua inocência – a qual muita vezes o leva a pactuar com os malfeitores do regime –, todo o tipo de atrocidades e de selvajaria em nome de uma revolução que a maioria não entende.
Hisham Matar descreve, usando uma linguagem aparentemente simples, a complexa relação entre uma Líbia conservadora e arcaica e a resignada aceitação do regime ditatorial instaurado por Khadafi, fortemente incentivador da delação, da traição e da desconfiança entre os elementos pertencentes a uma sociedade que, de acordo com a sua tradição ancestral, renega o papel e o contributo da mulher e vive profundamente absorvida e circunscrita pela teosofia islâmica e pelos seus dogmas, ritos e preceitos.

Em Terra de Homens é um relato apaixonante, comovente e, por vezes, arrasador dos efeitos da barbárie e da iniquidade do ser humano – a tal relação perene "vergastador e vergastado" – na vida de uma simples criança submetida, desde nova, aos dilemas existenciais e às duras opções, mutuamente exclusivas, sobre o exercício do poder de amar.

Depois da leitura completa deste relato romanceado, porém com alguma base factual e eminentemente ocular, apenas fica um desabafo: Quão espúrio e aviltante é este mundo – estende-se aos políticos, aos estrategas da política e aos abutres que dela vivem – que agora acolhe, reverencia e visita com regularidade este facínora e as suas ideias! Em nome de quê e de quem?

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Hisham Matar, Em Terra de Homens. Porto: Civilização, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 270 pp. (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz; obra original: In the Country of Men, 2006).

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