Tal como aqui havia prometido, publico a segunda parte da minha apreciação retirada de algumas das minhas leituras de Janeiro deste ano, relativamente a livros editados em Portugal ainda em 2006.
A segunda leitura – bem longe das famosas epístolas moralistas e de certa forma responsáveis por algum cerceamento de perspectivas da civilização ocidental – versou sobre o livro O Engenho do poeta e escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990), acérrimo opositor do regime cubano instaurado em 1959 por Fidel Castro – após uma curta militância inicial como contestatário do regime de Batista –, expulso da pátria amada em 1980, havendo morrido dez anos depois no exílio em Nova Iorque.
A obra e a personalidade do escritor mantiveram-se de certa forma esquecidas no nosso país – refiro-me à opinião pública – até ao ano 2000, ano em que o realizador norte-americano Julian Schnabel – que se havia notabilizado anteriormente pela realização do filme biográfico de Jean-Michel Basquiat – imortaliza Arenas com o filme Before Night Falls (Antes que Anoiteça), incarnado pelo actor espanhol Javier Bardem (tendo-lhe valido vários prémios internacionais e a nomeação para os Oscar de Melhor Actor, prémio que nesse ano foi arrecadado pelo tumultuoso Russell Crowe com o filme Gladiador de Ridley Scott).
O ano de 2006 foi pródigo nas edições para a língua lusa dos trabalhos de Arenas. O Engenho, editado pela Antígona, de pendor autobiográfico, foi edificado sobre experiência pessoal de Arenas como trabalhador forçado nas unidades de refinação de açúcar, descrevendo a brutalidade do regime cubano e o seu desrespeito pela diferença.
O engenho – todo o complexo no qual se produz o açúcar – aproxima-se de um sistema de produção taylorista em que objectivamente o homem é visto como uma extensão da máquina, porém divergindo radicalmente deste pela utilização indiscriminada da força de trabalho sem a contrapartida remuneratória: um modelo de aniquilação fundado na escravatura pela dissidência, pela diferença de orientação sexual – Arenas era homossexual assumido – e/ou pela cor da pele.
Numa obra de catalogação indefinida, uma vez que se torna difícil destrinçar a realidade (componente autobiográfica) da ficção para efeitos dramáticos, a que se junta a prosa e a poesia, Arenas descreve magistralmente a exploração desapiedada do homem por um regime que, pelo menos em tese, defende uma sociedade sem classes e a luta do proletariado, mas que condena ao cativeiro bárbaro os dissidentes, os negros, os homossexuais e negoceia com traficantes de escravos, ao mesmo tempo que beneficia da anuição de uma burguesia conformada pelo peso da revolução, estabelecendo-se um paralelismo com a exploração e a aniquilação dos índios perpetrada há séculos pelos conquistadores espanhóis e com o tráfico de escravos africanos pela Coroa espanhola.
No fim, a resignação; a impotência contra o degredo e o massacre:
«Oh, mas que bicha mais pessimista, dirá o burguês modernizado (assolapado num cadeirão de vime prestes a desabar), ele próprio arregimentado graças às optimistas palavras de ordem ocasionais do marxista que sabe muito bem que, sem a santa fé do imbecil, não conseguirá devorar a tempo a terra, antes de esta por fim explodir.
Mas
eu
Eu vejo um continente de índios escravizados e famintos fossando e estiolando nas minas ou no fundo do mar.
(Lá fora, no meio do aguaceiro ribombante, os invasores atravessam o rio agarrados a cordas oscilantes.)
Mas
eu
Eu vejo três milhões de negros escravizados e famintos fazendo sucumbir as plantações de cana-de-açúcar aos pés do senhor.
(Lá fora, no meio da chuva, um grande navio pirata deita ferro no porto.)
Mas
eu
Eu vejo um exército de adolescentes escravizados e famintos esgaravatando a terra.
(Chuvas. A frota soviética chega para uma «visita amigável».)
Que gostarias tu que eu te dissesse? Que queres tu ouvir da minha boca?
De que posso eu falar-te,
diz-me
que mais poderei eu
dizer-te
sem que me cortem a língua
por traição?
Diz-me»
Excerto de “«grandioso» finale”, de Reinaldo Arenas, O Engenho. Lisboa: Antígona, 1.ª edição, Outubro de 2006, pp. 99-100 (tradução de Carla da Silva Pereira; obra original: El Central, 1981).
Um livro admirável e inquietante, não só pela revelação das atrocidades cometidas em nome de um ideal putativamente pacífico e humanizante, mas também pelo paralelismo que cada um à sua maneira poderá transportar para a sua vivência quotidiana, onde debaixo da aparente liberdade se esconde um leviatã pronto a emergir: “um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta” (Thomas Hobbes, Leviatã. Lisboa: INCM, pág. 111).
A segunda leitura – bem longe das famosas epístolas moralistas e de certa forma responsáveis por algum cerceamento de perspectivas da civilização ocidental – versou sobre o livro O Engenho do poeta e escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990), acérrimo opositor do regime cubano instaurado em 1959 por Fidel Castro – após uma curta militância inicial como contestatário do regime de Batista –, expulso da pátria amada em 1980, havendo morrido dez anos depois no exílio em Nova Iorque.
A obra e a personalidade do escritor mantiveram-se de certa forma esquecidas no nosso país – refiro-me à opinião pública – até ao ano 2000, ano em que o realizador norte-americano Julian Schnabel – que se havia notabilizado anteriormente pela realização do filme biográfico de Jean-Michel Basquiat – imortaliza Arenas com o filme Before Night Falls (Antes que Anoiteça), incarnado pelo actor espanhol Javier Bardem (tendo-lhe valido vários prémios internacionais e a nomeação para os Oscar de Melhor Actor, prémio que nesse ano foi arrecadado pelo tumultuoso Russell Crowe com o filme Gladiador de Ridley Scott).
O ano de 2006 foi pródigo nas edições para a língua lusa dos trabalhos de Arenas. O Engenho, editado pela Antígona, de pendor autobiográfico, foi edificado sobre experiência pessoal de Arenas como trabalhador forçado nas unidades de refinação de açúcar, descrevendo a brutalidade do regime cubano e o seu desrespeito pela diferença.
O engenho – todo o complexo no qual se produz o açúcar – aproxima-se de um sistema de produção taylorista em que objectivamente o homem é visto como uma extensão da máquina, porém divergindo radicalmente deste pela utilização indiscriminada da força de trabalho sem a contrapartida remuneratória: um modelo de aniquilação fundado na escravatura pela dissidência, pela diferença de orientação sexual – Arenas era homossexual assumido – e/ou pela cor da pele.
Numa obra de catalogação indefinida, uma vez que se torna difícil destrinçar a realidade (componente autobiográfica) da ficção para efeitos dramáticos, a que se junta a prosa e a poesia, Arenas descreve magistralmente a exploração desapiedada do homem por um regime que, pelo menos em tese, defende uma sociedade sem classes e a luta do proletariado, mas que condena ao cativeiro bárbaro os dissidentes, os negros, os homossexuais e negoceia com traficantes de escravos, ao mesmo tempo que beneficia da anuição de uma burguesia conformada pelo peso da revolução, estabelecendo-se um paralelismo com a exploração e a aniquilação dos índios perpetrada há séculos pelos conquistadores espanhóis e com o tráfico de escravos africanos pela Coroa espanhola.
No fim, a resignação; a impotência contra o degredo e o massacre:
«Oh, mas que bicha mais pessimista, dirá o burguês modernizado (assolapado num cadeirão de vime prestes a desabar), ele próprio arregimentado graças às optimistas palavras de ordem ocasionais do marxista que sabe muito bem que, sem a santa fé do imbecil, não conseguirá devorar a tempo a terra, antes de esta por fim explodir.
Mas
eu
Eu vejo um continente de índios escravizados e famintos fossando e estiolando nas minas ou no fundo do mar.
(Lá fora, no meio do aguaceiro ribombante, os invasores atravessam o rio agarrados a cordas oscilantes.)
Mas
eu
Eu vejo três milhões de negros escravizados e famintos fazendo sucumbir as plantações de cana-de-açúcar aos pés do senhor.
(Lá fora, no meio da chuva, um grande navio pirata deita ferro no porto.)
Mas
eu
Eu vejo um exército de adolescentes escravizados e famintos esgaravatando a terra.
(Chuvas. A frota soviética chega para uma «visita amigável».)
Que gostarias tu que eu te dissesse? Que queres tu ouvir da minha boca?
De que posso eu falar-te,
diz-me
que mais poderei eu
dizer-te
sem que me cortem a língua
por traição?
Diz-me»
Excerto de “«grandioso» finale”, de Reinaldo Arenas, O Engenho. Lisboa: Antígona, 1.ª edição, Outubro de 2006, pp. 99-100 (tradução de Carla da Silva Pereira; obra original: El Central, 1981).
Um livro admirável e inquietante, não só pela revelação das atrocidades cometidas em nome de um ideal putativamente pacífico e humanizante, mas também pelo paralelismo que cada um à sua maneira poderá transportar para a sua vivência quotidiana, onde debaixo da aparente liberdade se esconde um leviatã pronto a emergir: “um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta” (Thomas Hobbes, Leviatã. Lisboa: INCM, pág. 111).
1 comentário:
Bem, André. O André, de facto, é um gande leitor.
Eu gostaria de ter a mesma vontade e o afinco, para ler. Não me vou desculpar com a falta de tempo, porque sempre se arranja algum. Certo é que quando tenho tempo para pegar num livro, acabo por o gastar noutras actividades. Enfim, é igualmente bem aproveitado.
Mas, todavia, a literatura anda a ficar em segundo plano, o que me deixa apreensivo.
Vou experimentar uma solução: os audiobooks!
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