Ainda sobre os livros editados em Portugal no ano de 2006, dediquei, quase em exclusivo – porque não perco de vista os clássicos ainda não lidos –, as minhas horas de leitura a 4 livros que foram inseridos por essa blogosfera fora nas listas de melhores livros de 2006 (os tão badalados ensaios de Žižek estão em lista de espera).
Apesar do desgaste pelo uso, a expressão que melhor poderá designar a sensação por mim experimentada na leitura do conjunto de contos da escritora norte-americana Flannery O’Connor, intitulado de Um Bom Homem É Difícil de Encontrar, é “um autêntico murro no estômago”. A crueza e o realismo emprestados às narrativas curtas de Flannery são de deixar qualquer leitor desconcertado, a começar desde logo pelo conto que deu o título à obra, onde a cada momento a piedade, qualidade que estatuímos inerente a qualquer ser humano por mais vil que se possa revelar, só existe na Literatura e, paradoxalmente, não tem lugar, pelo arrepiante realismo, na escrita da autora.
A maldade e a insensibilidade intrínsecas ao homem ganham corpo e sublimam-se, de forma abrupta, no final de cada história.
Um bom exemplo da perversidade latente que habita silenciosamente a nossa alma e que a todo o momento se exibe numa violência que até então nos fora desconhecida, é o conto “O Preto Artificial” – o meu preferido –, do qual deixo aqui um pequeno excerto:
«Mr. Head ficou totalmente imóvel e sentiu uma vez mais a misericórdia descer sobre si mas desta vez sabia que nem teria palavras para descrever o que sentia. Percebeu finalmente que a misericórdia nasce da agonia, que não é negada a nenhum homem e que é dada as crianças de formas estranhas e inesperadas. Compreendeu que era isso tudo o que um homem podia levar consigo depois da morte para apresentar ao juízo do seu Criador, e, pela primeira vez, ficou aterrado com o que teria para levar consigo. Nunca se considerara um grande pecador mas agora compreendia que a sua verdadeira perversidade estivera a vida inteira escondida dentro de si, aguardando apenas um instante de desespero autêntico para poder manifestar-se.» (pp. 122-123)
Um livro esmagador, que exige uma leitura atenta e cuidada. Já o li no início de Janeiro e ainda não me consegui esquecer das entrelinhas que aparentemente – dada a forte subjectividade que inunda a afirmação – moldam o texto.
Classificação: Muito Bom (*****)
Referência bibliográfica:
Flannery O’Connor, Um Bom Homem É Difícil de Encontrar. Lisboa: Cavalo de Ferro, 1.ª edição, Abril de 2006, 235 pp. (tradução de Clara Pinto Correia; obra original: A good man is hard to find, 1955).
Próximas análises nesta categoria (por ordem de leitura em Janeiro de 2007): II – Reinaldo Arenas, O Engenho (Antígona); III – Agustina Bessa-Luís, A Ronda da Noite (Guimarães Editores); IV – Michel Houellebecq, A Possibilidade de Uma Ilha (Dom Quixote).
Apesar do desgaste pelo uso, a expressão que melhor poderá designar a sensação por mim experimentada na leitura do conjunto de contos da escritora norte-americana Flannery O’Connor, intitulado de Um Bom Homem É Difícil de Encontrar, é “um autêntico murro no estômago”. A crueza e o realismo emprestados às narrativas curtas de Flannery são de deixar qualquer leitor desconcertado, a começar desde logo pelo conto que deu o título à obra, onde a cada momento a piedade, qualidade que estatuímos inerente a qualquer ser humano por mais vil que se possa revelar, só existe na Literatura e, paradoxalmente, não tem lugar, pelo arrepiante realismo, na escrita da autora.
A maldade e a insensibilidade intrínsecas ao homem ganham corpo e sublimam-se, de forma abrupta, no final de cada história.
Um bom exemplo da perversidade latente que habita silenciosamente a nossa alma e que a todo o momento se exibe numa violência que até então nos fora desconhecida, é o conto “O Preto Artificial” – o meu preferido –, do qual deixo aqui um pequeno excerto:
«Mr. Head ficou totalmente imóvel e sentiu uma vez mais a misericórdia descer sobre si mas desta vez sabia que nem teria palavras para descrever o que sentia. Percebeu finalmente que a misericórdia nasce da agonia, que não é negada a nenhum homem e que é dada as crianças de formas estranhas e inesperadas. Compreendeu que era isso tudo o que um homem podia levar consigo depois da morte para apresentar ao juízo do seu Criador, e, pela primeira vez, ficou aterrado com o que teria para levar consigo. Nunca se considerara um grande pecador mas agora compreendia que a sua verdadeira perversidade estivera a vida inteira escondida dentro de si, aguardando apenas um instante de desespero autêntico para poder manifestar-se.» (pp. 122-123)
Um livro esmagador, que exige uma leitura atenta e cuidada. Já o li no início de Janeiro e ainda não me consegui esquecer das entrelinhas que aparentemente – dada a forte subjectividade que inunda a afirmação – moldam o texto.
Classificação: Muito Bom (*****)
Referência bibliográfica:
Flannery O’Connor, Um Bom Homem É Difícil de Encontrar. Lisboa: Cavalo de Ferro, 1.ª edição, Abril de 2006, 235 pp. (tradução de Clara Pinto Correia; obra original: A good man is hard to find, 1955).
Próximas análises nesta categoria (por ordem de leitura em Janeiro de 2007): II – Reinaldo Arenas, O Engenho (Antígona); III – Agustina Bessa-Luís, A Ronda da Noite (Guimarães Editores); IV – Michel Houellebecq, A Possibilidade de Uma Ilha (Dom Quixote).
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