quarta-feira, 30 de junho de 2010

O Capitão Metro

Uma fábula do n.º 7, o não-whitmaniano Capitão, Meu Capitão (a jornada assustadora prossegue): «Perguntem ao Carlos Queiroz.»
«Vivo no 11.º andar do edifício American Gardens na West 81st Street. Chamo-me Patrick Bateman e tenho 27 anos. Eu creio no cuidar de nós próprios com uma dieta equilibrada e um rigoroso programa de exercícios. De manhã, se a minha cara está um pouco inchada, aponho-lhe um saco de gelo enquanto faço abdominais – agora, já chego aos mil. Depois de retirar o saco de gelo, uso uma loção forte de limpeza dos poros. No duche, uso um gel refrescante de limpeza. De seguida utilizo uma escova com creme de mel e amêndoas e na cara esfrego um gel esfoliante. Depois aplico uma máscara de ervas e menta, que deixo na cara durante dez minutos enquanto preparo o resto da minha rotina. Uso sempre uma loção aftershave com o mínimo ou mesmo sem álcool, porque este seca-nos a pele do rosto e faz-nos parecer mais velhos. Depois vem o hidratante e de seguida aplico o bálsamo anti-rugas para os olhos, a que se segue a loção protectora hidratante final. Existe uma ideia de um Patrick Bateman, um género de abstracção, mas na realidade não existe um eu; é apenas uma entidade, algo de ilusório. E embora consiga esconder o meu olhar frio e até me consigam dar um aperto de mão e sentir a minha carne a envolver firmemente a sua carne, e até sentir que os nossos estilos de vida são provavelmente comparáveis; eu, simplesmente, não estou lá.»
Do argumento do filme Psicopata Americano (American Psycho, 2000), adaptado ao cinema por Mary Harron e baseado no romance homónimo, publicado em 1991, de autoria do escritor californiano Bret Easton Ellis.
Trabalhar? Com toda esta beleza e preparos, com ecrãs gigantes que me procuram e fixam, em que atesto as formas etéreas do meu rosto, senão do corpo inteiro, a cada cinco segundos!? Gritos histéricos de mulherio (e não só, valha-nos a sorte da lucrativa ambiguidade!) esfaimado… Trabalhar, unir esforços, respeitar hierarquias, lutar por um ideal. Assumir as funções de Capitão, que não passam apenas por ostentar aquela liga que nos aperta o braço, o mais fino adorno futebolístico que nos permitem usar em campo – deveria ser cravado de diamantes, tal como os círculos que enfeitam as minhas frágeis orelhas no pós-desafio. Porém, uma marca não faz isso, quando muito é multinacional, global na sua abstracção. Eu não existo. 
¡Hala Madrid!... y, pues que, con “El Especial” y los euros.

sábado, 26 de junho de 2010

O Mural (nova versão)


«A raiz da palavra hipócrita em grego antigo encontra-se no verbo hypokrino, que possuía um conjunto de sentidos, podendo ir do simples discurso, à oratória, à representação cénica, à dissimulação ou à falsidade.»* [tradução AMC]
Robert Scholes, The Rise and Fall of English [em tradução livre A Ascensão e Queda da Língua Inglesa], p. 81 [Yale University Press, February 1998, 220 pp.]
Houve de tudo, viu-se de tudo, falou-se de tudo, mas com uma deformação sectária apriorística capaz de fazer retinir as campainhas da pura náusea ao ser mais resistente das intoxicações de pendor unanimista. A intelligentsia estava presente. O camarada Jerónimo discursou, o coordenador Louçã (o eufemismo mais bem esgalhado da política portuguesa, que o diga Joana Amaral Dias que foi bem co-ordenada rumo à empoeirada prateleira trotskista, onde porventura jazem uma famosa picareta e a expressão, com o mesmo prefixo, “colaborador”) vituperou, usando todo o seu fel – cujas reservas parecem não se esgotar –, levantando o seu queixo anguloso e bradando com toda a sua acrimónia facciosa, o mais alto magistrado da nação.
António Costa, numa atitude nobre, sem nunca deixar os seus laivos de populismo – está-lhe na massa do sangue e acautela-se já o problema sucessório –, ao franquear as portas da Câmara Municipal de Lisboa, previu um velório, seguido de funeral em homenagem ao notável escritor recentemente desaparecido. Porém, e basta seguir a voragem da apropriação com que se digladiam as esquerdas nacionais, o velório passou num ápice a comício, cujos senhores disseminadores da moral, proprietários do pacifismo e edificadores da ética (republicana, tão em moda) organizaram sob o pretexto da morte de mais um sectário, cujas tragédias monstruosas do século XX não desfizeram a irredutibilidade das suas posições de apoio incondicional à tirania comunista, um verdadeiro espectáculo de multimédia (só faltou a pirotecnia, não se esquecendo, porém, da useira piromania ad hominem) com comentários de circunstância, intervenções da laia de flash interviews, conferências de imprensa, comunicados, uma espécie de feijoada da Caras da Bibá, um “quem é quem” à moda portuguesa, a que só faltou a destreza criativa com as t-shirts estandardizadas previamente distribuídas.
Falou-se de um tal de Lara – o mesmo que fez parte da turba Moderna e foi um dos condenados no processo da famosa Universidade, sentenciado em 2003 a dois anos de prisão com pena suspensa pelo crime de “administração danosa” –, que nos idos de 1992, então Subsecretário de Estado da Cultura de Santana Lopes num Governo de Cavaco Silva, vetou o acesso de O Evangelho Segundo Jesus Cristo à lista de candidatos do Prémio Literário Europeu. E este incidente lamentável com dezoito anos, serviu para, na hora do luto, apoucar, depreciar, enxovalhar o Presidente da República Portuguesa apelidando-o de iletrado, mesquinho, revanchista, ressentido, tacanho e provinciano, chegando mesmo em diversos foros à desfaçatez do insulto brejeiro, boçal e ordinário que me eximo de expor neste texto. De banal e medíocre o defunto já o houvera insultado. Deixou, no entanto, os sequazes colectivistas para terminar a obra, de cujas agitação, histeria, insensatez e imundície provêm do acto eleitoral onde o candidato-Alegre-trovador-combatente-intelectual-humanista – um homem sisudo, poeta de primeira água, todavia, um prosador mais que mediano, político resvaladiço e volúvel, plantado num campo de paradoxos movido por um tropismo meramente eleitoralista – disputará com aquele demónio de Boliqueime – o tal sobre quem caíram os pecados do mundo da dialéctica em espiral.
Cavaco (tal como Gama, a 2.ª figura na hierarquia do Estado) pode ter errado ao não comparecer no funeral-comício aos Paços do Concelho de Lisboa (onde da mesma forma e com o mesmo matiz rubro se celebrou, uns meses antes, a vitória rara do clube do regime); mas com toda a certeza não se enganou nos valores democráticos e de liberdade, de uma imutabilidade recalcitrante, preconizados pelo camarada-defunto (demonstrados à saciedade em pleno PREC), baseados na filosofia, na doutrina e na práxis dos quatro acima representados no mural – é essa moral deles. Não foi a estética, muito menos a técnica, mas porventura a moral, assim grafada, das diversas diatribes e anátemas do camarada-defunto que estiveram na origem da omissão presencial, que no entanto se fez representar pelo segundo elemento da hierarquia do círculo presidencial. E se acima disse que Cavaco pode ter errado, restrinjo o campo de acção do verbo apenas à falta de iniciativa de elevar as exéquias fúnebres à condição de “nacional”, num país em que é constitucionalmente garantida a plena liberdade de expressão e consagrado o livre pensamento, independentemente da maior ou menor identificação com os conceitos do homenageado.
E facilmente se percebe o que a ambos, em vida, os distinguia, através de uma simples análise dos presentes. Se para uns a Coreia do Norte é quase uma democracia, para outros o Terror Vermelho trotskista era um mal necessário. E no século XXI continuamos a discutir Maiakovsky contra Mandelstam. Purgas contra a luta pela sobrevivência das diferenças num espaço comum de liberdades. Os Gulags, o colectivismo intelectual, o pensamento único contra a energia criadora em cada um de nós.
E se muitos, fornidos do magnésio para a memória – fumos, injecções e aspirações – não se esquecem da negra data de 1992, eu, como muita boa gente, não me esqueço de uma outra, mais negra e inquietante: 17 de Outubro de 1998 (e por curiosidade, os números têm destas coisas, a data combina-se para formar a cosmogonia do terror; ah, aquele Outubro juliano!...) Foi um sábado, no Centro de Desportos e Congressos de Matosinhos (cf. Pravda Lusitano, de 22/10/1998), a noite da infâmia: enquanto milhares são martirizados e assassinados por delito de opinião nas prisões cubanas, enquanto nesse sítio os “laras” estão armados de Kalashnikov, investidos com a mão de ferro da tortura, munidos do livro vermelho que suspende os direitos do Homem em prol de uma ideologia totalitária, Saramago entra em palco de braço dado a Fidel Castro, discursa em primeiro lugar e ouve de seguida, embevecido, hipnotizado, o comandante durante horas a fio a ditar o discurso estafado de quase quarenta anos (na altura, hoje já são mais de cinquenta). E como dizia Isaiah Berlin em The First and the Last (1999; NYRB, p. 57): «Causar dor, matar e torturar são actos geralmente condenados; mas se não forem cometidos para meu benefício pessoal e sim em prol de um ismo – socialismo, nacionalismo, fascismo, comunismo, de crenças religiosas fanáticas, do progresso, ou do cumprimento das leis da História –, então, esses actos são aceitáveis.»**
Mas esses (e regressemos à citação inicial do eminente filólogo Robert Scholes, aludindo aos descendentes da voz grega hypokrino), os que agora criticam, vituperam e desancam o mais elevado magistrado da nação – com espaços bem remunerados nos jornais, rádios e televisões, dominados historicamente pela esquerda mais radical e sectária – foram os mesmos que boicotaram a prestação do devido e merecido tributo na Assembleia da República ao poeta, ensaísta, dramaturgo António Manuel Couto Viana (1923-2010) que, curiosamente, tinha a mesma idade de Saramago e morreu apenas dez dias antes, sob o pretexto de supostas ligações fascistas de outrora, aventando-se a possibilidade de se haver alistado ao lado de Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) – seria um rapaz precoce que entre os 13, no mínimo, e os 16 anos, no máximo, já combatia por terras espanholas em nome de um ideal. Pobre país em que 20% da população votante se faz representar por gente deste calibre, onde a verdade, a honestidade intelectual e a transparência de procedimentos são aniquilados em nome de um colectivismo cuja História mostrou a índole e a prática torcionária e aniquiladora das liberdades individuais. Foram alguns desses que nos idos de 1980 festejaram a morte trágica do Primeiro-Ministro e do Ministro da Defesa nacionais, quando voavam sobre Camarate com destino ao Porto, e um rapaz incrédulo, com apenas 8 anos, e com alguma memória, questionava a autoridade familiar mais provecta a razão de ser das garrafas de champanhe, dos foguetes e dos urros de alegria perante as vidas despedaçadas naquele 4 de Dezembro.
Porém, a verdade, que todos querem arrebatar, subsiste e remanescerá pelos tempos nos escritos feéricos do autor da Azinhaga do Ribatejo. A verdade está nas narrativas inovadoras na, já de si, tão maltratada língua portuguesa e pungentes no seu lirismo, cuja ficção foi estonteando o mundo pela sua arte de contar histórias. A verdade está na sua ficção: no Memorial do Convento (1982), em O Ano da Morte de Ricardo Reis (1986) e em As Intermitências da Morte (2005; e, após um período de dura resistência, o meu primeiro de muitos contactos com a ficção saramaguiana) – a minha trilogia pessoal.
---
Para terminar, uma curiosa passagem de um interessantíssimo artigo, publicado em 2007:
«Há cinco anos, [Saramago] conseguiu provocar um escândalo à escala global quando, numa visita à Faixa de Gaza, comparou a situação nos territórios palestinianos a “Auschwitz”.
»Para o crítico literário Harold Bloom, a comparação com Auschwitz foi “de uma falta de imaginação e de humanidade imperdoável” por parte de um romancista que ele considera “o segundo melhor, apenas atrás de Philip Roth” entre os escritores vivos. “Os romances de Saramago são ilimitadamente inventivos, ilimitadamente bondosos, ilimitadamente engenhosos”, disse-me Bloom, “mas deixa-me perplexo como é que o homem não consegue crescer politicamente. Em 2007, ser um português estalinista significa simplesmente não estar a viver no mundo real.”»
Fernanda Eberstadt, “José Saramago, the Unexpected Fantasist”, The New York Times, August 26, 2007.
---
Notas: *Citação reproduzida da fonte primária, por sugestão da obra autobiográfica O Regresso do Hooligan, de Norman Manea (ed. port. Asa; p. 300).
**Citação retirada de Paul Hollander, O Fim do Compromisso (ed. port. Pedra da Lua, Fev/2009, p. 32, trad. de Virgílio Viseu).

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Amizade Volúvel

Uma sucessão de repetições, de signos, de argumentos estafados que permitam sustentar uma justificação para algo que nem eu próprio consigo compreender: a manutenção deste blogue. Começou como um vício entendido como uma amálgama de paixão pela arte de escrever e uma imperiosa necessidade de catarse, e que agora se arrasta pela rede como um tormento, em que um título de um radicalismo inusitado emerge como um combatente obstinado frente a uma vontade persistente de encerramento definitivo. Voltar ao anonimato da vidinha enfadonha – talvez seja esse o obstáculo, mesmo conhecendo o pequeníssimo alcance dos escritos aqui produzidos. Não é um lamento, nem uma falsa modéstia, é uma constatação empírica, que tarda em ser racionalizada, derrotando as emoções, essas vadias que me vão deixando nu perante o mundo.
Volto a repetir-me. Nunca mais. É o terceiro título que aponho a este blogue desde que, em 17 de Dezembro de 2005, iniciei a minha viagem quase solitária pela blogosfera – sem compromissos, vínculos, reservas e obediências, senão à minha consciência, manifestação da minha liberdade individual jamais coarctada ou circunscrita a qualquer directório.
Volto a pisar os passos históricos destes quase cinco anos. Todos os títulos tiveram a sua origem em Sophia, sempre fundamentados em estados de espírito, de cuja incansável e persistente indagação sobre a obra poética da minha autora de eleição possibilitou que pressentisse a emergência de uma harmonia perfeita entre aqueles e os poemas escolhidos que foram figurando neste espaço.
Nunca mais, bem poderia ser um título interjectivo como reacção à sentida necessidade de isolamento – uma demanda pela integridade da minha consciência, pela minha liberdade intelectual. Por vezes invejando a coragem de um eremita, outras lastimando um destino que me impuseram como forma de luta perante o fingimento, a desconsideração episódica, o desprezo intermitente, o sórdido jogo de interesses a que nenhuma amizade deveria resistir, sob pena de se transformar numa relação parasitária, aviltante e potencialmente destrutiva: a insistência na sua manutenção – por indolência, apatia ou até pelas grilhetas da mais sórdida subjugação –, vai contribuindo de forma subliminar para a alienação total do eu.
A conclusão pela interjeição, agora realizada, serve-me de argumento quase perfeito para defender que o processo corrosivo de uma convivência insana se transforme num facto irreparável – som estrídulo que me mantém alerta –, permanente, sem remissão, de pura e simples abdicação, de aprovação sem resistência de um método de tortura auto-infligida. Mas, já não são eles, somos nós o nosso inferno, em que a misantropia abusando da sua simplicidade – como é fácil desprezar os outros – se vai hospedando nos interstícios dessa fragilidade, o “nunca mais” absolutiza-se e daí a interrogação de DeLillo que decora, como epígrafe, a parte cimeira deste blogue: até onde? Qual é a chave para encontrar o equilíbrio entre a cedência desmedida inculcadora de infelicidade e o isolamento como busca da felicidade? Perante a ubiquidade do inferno, em nós, nos outros, que caminho escolher? Haverá neste caso um jogo iterativo de escolha do “mal menor” que se renova a cada segundo que passa? Para que fogueira deveremos arremessar os toros de madeira lúbrica à espera de ser lambida? Sustentar o fogo de uma amizade volúvel ou avivar lume cujas labaredas são meras manifestações de uma angústia que advém da terrível agnição dos nossos medos e distorções do espírito, outrora em estado latente, hoje alimentadas pelo rugido do silêncio do isolamento?
Abro livros com uma avidez estonteante para neles encontrar as chaves que permitam descodificar e validar o meu estado de alma, como se um todo emaranhado de caracteres se combinasse no momento exacto em que os meus olhos indagadores cruzam vorazmente esse conjunto estruturado de palavras. Recorro, pois, a Orwell e ao seu extraordinário ensaio “A Prevenção da Literatura” (1946), que parte da discussão da Areopagitica (1644) de Milton, como denúncia de todas as formas de totalitarismo que cerceiam a liberdade de expressão, intelectual e criativa. Volvidas as primeiras páginas, Orwell cita o refrão de um velho hino religioso da América puritana composto em 1873 por Philip P. Bliss (1838-1876), para demonstrar mais adiante o processo em curso da colectivização do eu, que aniquila, acima das outras artes, a literatura enquanto exercício puro dessas liberdades. O hino oitocentista baseou-se na personagem bíblica de Daniel, condenado à cova dos leões por desafiar as ordens iníquas do seu rei, Dario: «Ousa ser um Daniel, / Ousa erguer-te só; / Ousa o teu fito vincar, / Ousa dar-lhe voz.» Orwell acusa: «Para tornar este hino actual, teríamos de iniciar cada verso com a expressão “Não ouses”, já que a nossa época possui como traço peculiar o facto de os rebeldes contra a ordem vigente […] se oporem também à ideia de integridade individual.» (in George Orwell, “A Prevenção da Literatura”, Livros & Cigarros. Lisboa: Antígona, 2010, trad. Paulo Faria, p. 44).
E prossigo com Enrique Vila-Matas quando este regista no seu volúvel caderno do “deve e haver” o regresso insólito de alguém que julgara haver perdido para sempre:

«O amigo que regressou depois de um ano de ausência. Liga cá para casa só para cumprimentar e quase sem ocultar que o faz por puro compromisso. Está mais calculista do que nunca. E eu, seja como for, não faço parte do seu campo de interesses. Creio perceber que não gosta nada de mim. […] Trata-se apenas que me tem um certo afecto, mas não está interessado em mim e é muito possível que, na realidade, eu nunca tenha tido qualquer interesse para ele. Talvez se sinta melhor com gente que o admira, ou talvez melhor com outros, apenas. Não tem importância, digo para comigo. Não vejo por que razão as amizades haveriam de durar mais do que as paixões.»
Enrique Vila-Matas, Diário Volúvel, p. 250 [Lisboa: Teorema, Fevereiro de 2010, 287 pp; tradução de Jorge Fallorca; obra original: Dietario Voluble, 2008].

A descoberta das marcas já profundas de uma amizade falhada que se foi alimentando de bons momentos – que, todavia, serviram para toldar equívocos, faltas de respeito e ataques implacáveis à nossa auto-estima –, tal como o fim abrupto de uma paixão, é susceptível de infundir no nosso espírito a inevitabilidade (como um pesadelo que se repete ab aeterno) de uma longa travessia por campos de destruição surrados e sombrios, que só o será – a dura constatação desse malogro – se não assumirmos uma ruptura definitiva, sem meias medidas e dando por esgotado o crédito de sucessivos pedidos de clemência, como o fogo passional que se extinguiu, cujos agravos o tempo se encarregará de dissolver pelos difusos refúgios da memória. Para isso, para evitar esse sofrimento que não se cala com um mero pedido de explicações, oriento a minha vida para um rotundo, definitivo, interjectivo e irreversível: partir, sempre; regressar, na sua significação de retroceder, calcar os caminhos já trilhados, “nunca mais!
Ah, como era sábio Antonio Machado.
Nota: na imagem acima, reprodução de Daniel na Cova dos Leões, de Peter Paul Rubens (1577-1640), circa 1615, óleo sobre tela.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

José Saramago
(1922 - 2010)

IMPAC 2010 - Vencedor

Foi anunciado ontem, ao fim da tarde, o romance vencedor da edição de 2010 do milionário International IMPAC Dublin Literary Award. Uma vez mais (tal como ocorreu com Rawi Hage em 2008), foi premiado um primeiro romance, desta feita do escritor holandês Gerbrand Bakker (n. 1962) – que já antes se estreara na literatura infanto-juvenil – trata-se do elucidativo, para a esmagadora maioria da blogosfera lusa que não entende uma palavra sequer de neerlandês, Boven is het stil (2006), obra que foi nomeada na fase inicial por quatro bibliotecas, todas holandesas. Ainda sem edição marcada para Portugal, o romance foi traduzido para inglês em 2008 sob o título The Twin. De notar, que Bakker, para além de haver sido o primeiro holandês a vencer este galardão desde a sua fundação em 1996, derrotou, entre outros, nomes já consagrados como Christoph Hein, Joseph O’Neill, Marilynne Robinson ou Zoe Heller.

Nota: para mais informações consultar o sítio oficial do prémio.




Vencedores anteriores:
2009 – Michael Thomas – Man Gone Down
2008 – Rawi Hage – Como a Raiva ao Vento (Civilização, 2008)
2007 – Per Petterson – Cavalos Roubados (Casa das Letras, 2008)
2006 – Colm Tóibín – O Mestre (Dom Quixote, 2007)
2005 – Edward P. Jones – The Known World
2004 – Tahar Ben Jelloun – Uma Ofuscante Ausência de Luz (Asa, 2003)
2003 – Orhan Pamuk – O Meu Nome é Vermelho (Presença, 2007)
2002 – Michel Houellebecq – Partículas Elementares (Temas e Debates, 1999)
2001 – Alistair MacLeod – No Great Mischief
2000 – Nicola Barker – À Flor da Pele (Gradiva, 2000)
1999 – Andrew Miller – A Dor Industriosa (Teorema, 1999)
1998 – Herta Müller – A Terra das Ameixas Verdes (Difel, 1999)
1997 – Javier Marías – Coração Tão Branco (Relógio D’Água, 1994)
1996 – David Malouf – Recordando a Babilónia (Assírio & Alvim, 2009)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Tratado sobre o isolamento

Querido Diário,
Ainda não encontrei a minha Alicudi, (in)felizmente. Porventura impotente para me interrogar sobre quão próximo poderei estar de mim próprio (o inferno?), eu e a natureza… sem tudo perder. (cf. epígrafe, DeLillo)
Nada Pessoal. Vi a desolação interior de Urszula Antoniak e lembrei-me do inefável “Gerardo” (Renato Carpentieri), correndo como um louco, fugindo da isola, gritando, enconsta abaixo, enquanto o ferry soltava amarras:
«Televisione! Ascensore! Telefono! Acqua calda!»
Caro Diário,
Distancio-me. Vou abandonando o mundo dos afectos… álgido. Explicar-te-ei em nova entrada… uma teoria do equilíbrio?
Por enquanto vejo-me ao espelho, esquadrinho o meu rosto em busca de uma realidade alternativa, paralela e intermutável, de que possa escapar assim que os meus braços caírem puxando o fio – marioneta que grita ao criador – que fará soar o alarme:

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Beat to its socks

Pode ler-se, num círculo autocolante aposto à capa da edição portuguesa de mais uma entre dezenas de biografias e livros de memórias sobre o pai beatnik Jack Kerouac, a seguinte frase: «Primeira biografia em português» a rodear o nome do autor biografado, que surge estampado a vermelho e encimando o recorte vazio dos emblemáticos sinais de trânsito que demarcam as estradas norte-americanas.
Apesar de a edição brasileira do mesmo livro datar de 2007, não belisca de forma alguma a veracidade da frase promocional. Na realidade, e nos dias que correm, também no Brasil é a única biografia de Kerouac disponível na língua de Camões.
Para quem conhece outros livros versados sobre a vida do autor de Pela Estrada Fora, para além de alguns factos que, à custa da reiteração, fazem parte do folclore que rodeou aquele bando de desordeiros, toxicómanos, bêbados, pederastas, criminosos (também escreviam livros e pintavam), e que são do conhecimento de alguém com o mínimo interesse na coisa literária, especialmente na literatura americana da segunda metade do século XX, o livro de Yves Buin é uma síntese de biografias de maior fôlego – cito as do lynchiano Barry Gifford e a de Gerald Nicosia, que aliás são profusamente referenciadas por Buin ao longo do texto; como os testemunhos oculares escritos pelos companheiros de viagem do próprio biografado, também eles parte integrante do ruidoso movimento Beat: destaco, neste caso, as obras de John Clellon Holmes ou as de Joyce Johnson (Glassman), assim como as referências cruzadas da omnipresente Carolyn Cassady (mulher de Neal Cassady durante quinze anos e mãe dos seus três filhos – o inspirador do magnum opus de Kerouac, na pele de “Dean Moriarty” – e vértice de um sórdido triângulo luxurioso completado por aqueles).
A obra apresentada por Buin é um apanhado, como uma súmula académica pronta a servir de única base de estudo ao estudante mais indolente, da tortuosa biografia de Kerouac. O livro do pedopsiquiatra francês – e é curioso o prefixo profissional, já que, no auge do movimento cultural retratado, o biógrafo poderia ter sido de uma utilidade ímpar pelos diversos traumas decerto infundidos por aquele bando a inúmeros potenciais clientes – em nada acrescenta ao já publicado, para além de, por um lado e porventura num esforço de síntese, funcionar como um repositório de nomes sem qualquer referência biográfica (prática comummente conhecida por name dropping, que pode ser bem mais viciante que o consumo de yage), e, por outro, se tratar de um texto cronologicamente confuso, sem um marco histórico definido, com recurso a analepses e prolepses consecutivas, que por vezes faz distar dois parágrafos em duas ou mais dezenas de anos. E para dar o remate final poderia trazer à colação a objectividade do investigador que, na prática, sai prejudicada por uma longa narrativa que espremida se assemelha a uma espécie de elegia ao inocente mago literário canuck, apesar de nela se evidenciar uma posição íntima, como um severo ralhete paternalista, de censura pelos excessos cometidos.
Mas o pior não está no texto publicado originalmente pela Gallimard em 2006. A sua edição portuguesa é um verdadeiro desastre: uma tradução miserável, o que indica uma revisão literária ausente ou negligente. Ao longo das trezentas páginas não há um par que não escape a, pelo menos, um erro ortográfico e/ou de sintaxe, e até a um enxame de erros nitidamente tipográficos. É simplesmente inadmissível e ultrajante para o leitor luso, aquele que, em vias de extinção, gasta os seus parcos recursos na aquisição de uma obra com esta especificidade literária, apresentar um livro cujo chorrilho de asneiras torna quase impraticável a sua leitura. Se há casos em que mesmo uma má tradução não implica inexequibilidade da leitura, este seguramente que não é um deles. Muito do que foi dito nos parágrafos anteriores poderá, admito, advir do estado de irritação crescente à medida que me fui embrenhando no livro – erros de género e de número, então, são aos magotes, assim como, é assaz perceptível uma espreitadela, talvez à laia de muleta, na edição brasileira, bem patente no emprego de alguns termos apenas usados por terras de Vera Cruz. Aos responsáveis da editora atrevo-me a lançar um desafio: retirem, rápida e prontamente, a 1.ª edição do mercado, façam uma revisão literária, remodelem a capa com a aposição de uma frase do género “nova tradução” ou “2.ª edição revista”.
A beatitude lusa compadece-se destes casos, sem que se vislumbre qualquer hipótese de usar o qualificativo como um catalisador do engrandecimento do espírito, como defendia Kerouac e Clellon Holmes para a sua embrionária geração; talvez fosse preferível começarmos por adoptar e a adaptar, de uma vez por todas, como uma fatalidade, a origem do termo criado, em primeira mão, pelo beatnik Herbert Huncke, neste caso como a nação estéril, derrotada ou prostrada: beat to its socks.
Referência bibliográfica:
Yves Buin, Jack Kerouac – Biografia. Lisboa: Bertrand, Abril de 2010, 301 pp; tradução de Ana Godinho; obra original: Kerouac, 2006.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Decepção

Princípio de 2010. Ainda mal acabara a época consumista da quadra natalícia, aproveitada pelo meio editorial para os lançamentos das mais retumbantes novidades literárias em carteira, após o aquecimento outonal pós-férias, e já se anunciavam as obras que, com as andorinhas (e insisto nisto, com os malfadados pólenes, que enfraquecem, pelo sofrimento, a minha certeza sobre a necessidade desta passagem terrena), chegariam aos escaparates das nossas livrarias. Um dos anunciados e mais aguardados era o mais recente romance do escritor irlandês (publicado em 2009), muito aqui da casa, Colm Tóibín, Brooklyn, sob a chancela da Bertrand.
Aguardei pelo dia 21 de Maio. Comprei o livro. Deixei de lado as potencialmente distractivas leituras paralelas. Encetei a leitura e no dia seguinte agarrei-me de novo aos livros que abandonara. Fosse eu presidente do Supremo Tribunal de Justiça e dir-vos-ia que li Brooklyn às “bochechas” – expressão que zarpará, pela força do consuetudinário, do idiolecto da quarta figura soberana da nação rumo à riqueza semântica da língua portuguesa –, enfastiado, a espaços nauseado pelo descomedimento melodramático, que, em suma, mereceu três estrelas no meu guia bibliófilo de novidades literárias, não só pelos laços afectivos que criei com o autor através da leitura das suas obras, que não se dissolvem por um ou dois desatinos ou delírios literários do autor (o número reduzido dá-me esperanças de uma brevíssima transitoriedade do novo estilo), mas também porque a estrutura de base do romance em causa não me deixou de todo desconfortável; o problema está no seu enchimento, mera adiposidade soberanamente viscosa – e a capa da edição portuguesa em nada auxilia o conteúdo (na imagem) –, que o autor, sobretudo, do extraordinário O Mestre (The Master, 2004), mas também de A História da Noite (The Story of the Night, 1996) e de O Navio-Farol de Blackwater (The Blackwater Lightship, 1999), não habituou o seu leitor indefectível.
Curiosamente, com Brooklyn, Tóibín venceu o Costa Novel Award de 2009 (antigo Whitbread) e foi semifinalista (entre 13 romances) do Booker Prize de 2009.
Por publicar em Portugal continua o seu livro de contos, editado originalmente em 2006, Mothers and Sons, que, a demorar mais um pouco, levar-me-á à derrogação do meu (questionável) critério de só ler em português*, fundado na leitura como eminente exercício de prazer.
Bom, regressei com deleite e alívio ao ziguezaguear de Vila-Matas, e aos ensaios de inexequibilidade político-filosófica de Orwell na sua última colectânea editada entre nós pela Antígona.
Nota: *Por vezes um masoquismo, que no caso em apreço, se elevou ao paroxismo do martírio de São Sebastião, mas com os fácies sereno de Botticelli (talvez pelo conhecimento que advém do efectivo não cometimento de um erro de sintaxe), mas que, na verdade, tira a paciência a um santo: refiro-me à locução verbal “deve de ser”, repetida amiúde e sem melindre no texto traduzido.
Referência bibliográfica:
Colm Tóibín, Brooklyn. Lisboa: Bertrand, Maio de 2010, 253 pp; traduzido por C. Santos (não, não se trata do concessionário da Mercedes-Benz em Portugal); obra original: Brooklyn, 2009