segunda-feira, 14 de junho de 2010

Beat to its socks

Pode ler-se, num círculo autocolante aposto à capa da edição portuguesa de mais uma entre dezenas de biografias e livros de memórias sobre o pai beatnik Jack Kerouac, a seguinte frase: «Primeira biografia em português» a rodear o nome do autor biografado, que surge estampado a vermelho e encimando o recorte vazio dos emblemáticos sinais de trânsito que demarcam as estradas norte-americanas.
Apesar de a edição brasileira do mesmo livro datar de 2007, não belisca de forma alguma a veracidade da frase promocional. Na realidade, e nos dias que correm, também no Brasil é a única biografia de Kerouac disponível na língua de Camões.
Para quem conhece outros livros versados sobre a vida do autor de Pela Estrada Fora, para além de alguns factos que, à custa da reiteração, fazem parte do folclore que rodeou aquele bando de desordeiros, toxicómanos, bêbados, pederastas, criminosos (também escreviam livros e pintavam), e que são do conhecimento de alguém com o mínimo interesse na coisa literária, especialmente na literatura americana da segunda metade do século XX, o livro de Yves Buin é uma síntese de biografias de maior fôlego – cito as do lynchiano Barry Gifford e a de Gerald Nicosia, que aliás são profusamente referenciadas por Buin ao longo do texto; como os testemunhos oculares escritos pelos companheiros de viagem do próprio biografado, também eles parte integrante do ruidoso movimento Beat: destaco, neste caso, as obras de John Clellon Holmes ou as de Joyce Johnson (Glassman), assim como as referências cruzadas da omnipresente Carolyn Cassady (mulher de Neal Cassady durante quinze anos e mãe dos seus três filhos – o inspirador do magnum opus de Kerouac, na pele de “Dean Moriarty” – e vértice de um sórdido triângulo luxurioso completado por aqueles).
A obra apresentada por Buin é um apanhado, como uma súmula académica pronta a servir de única base de estudo ao estudante mais indolente, da tortuosa biografia de Kerouac. O livro do pedopsiquiatra francês – e é curioso o prefixo profissional, já que, no auge do movimento cultural retratado, o biógrafo poderia ter sido de uma utilidade ímpar pelos diversos traumas decerto infundidos por aquele bando a inúmeros potenciais clientes – em nada acrescenta ao já publicado, para além de, por um lado e porventura num esforço de síntese, funcionar como um repositório de nomes sem qualquer referência biográfica (prática comummente conhecida por name dropping, que pode ser bem mais viciante que o consumo de yage), e, por outro, se tratar de um texto cronologicamente confuso, sem um marco histórico definido, com recurso a analepses e prolepses consecutivas, que por vezes faz distar dois parágrafos em duas ou mais dezenas de anos. E para dar o remate final poderia trazer à colação a objectividade do investigador que, na prática, sai prejudicada por uma longa narrativa que espremida se assemelha a uma espécie de elegia ao inocente mago literário canuck, apesar de nela se evidenciar uma posição íntima, como um severo ralhete paternalista, de censura pelos excessos cometidos.
Mas o pior não está no texto publicado originalmente pela Gallimard em 2006. A sua edição portuguesa é um verdadeiro desastre: uma tradução miserável, o que indica uma revisão literária ausente ou negligente. Ao longo das trezentas páginas não há um par que não escape a, pelo menos, um erro ortográfico e/ou de sintaxe, e até a um enxame de erros nitidamente tipográficos. É simplesmente inadmissível e ultrajante para o leitor luso, aquele que, em vias de extinção, gasta os seus parcos recursos na aquisição de uma obra com esta especificidade literária, apresentar um livro cujo chorrilho de asneiras torna quase impraticável a sua leitura. Se há casos em que mesmo uma má tradução não implica inexequibilidade da leitura, este seguramente que não é um deles. Muito do que foi dito nos parágrafos anteriores poderá, admito, advir do estado de irritação crescente à medida que me fui embrenhando no livro – erros de género e de número, então, são aos magotes, assim como, é assaz perceptível uma espreitadela, talvez à laia de muleta, na edição brasileira, bem patente no emprego de alguns termos apenas usados por terras de Vera Cruz. Aos responsáveis da editora atrevo-me a lançar um desafio: retirem, rápida e prontamente, a 1.ª edição do mercado, façam uma revisão literária, remodelem a capa com a aposição de uma frase do género “nova tradução” ou “2.ª edição revista”.
A beatitude lusa compadece-se destes casos, sem que se vislumbre qualquer hipótese de usar o qualificativo como um catalisador do engrandecimento do espírito, como defendia Kerouac e Clellon Holmes para a sua embrionária geração; talvez fosse preferível começarmos por adoptar e a adaptar, de uma vez por todas, como uma fatalidade, a origem do termo criado, em primeira mão, pelo beatnik Herbert Huncke, neste caso como a nação estéril, derrotada ou prostrada: beat to its socks.
Referência bibliográfica:
Yves Buin, Jack Kerouac – Biografia. Lisboa: Bertrand, Abril de 2010, 301 pp; tradução de Ana Godinho; obra original: Kerouac, 2006.