Uma sucessão de repetições, de signos, de argumentos estafados que permitam sustentar uma justificação para algo que nem eu próprio consigo compreender: a manutenção deste blogue. Começou como um vício entendido como uma amálgama de paixão pela arte de escrever e uma imperiosa necessidade de catarse, e que agora se arrasta pela rede como um tormento, em que um título de um radicalismo inusitado emerge como um combatente obstinado frente a uma vontade persistente de encerramento definitivo. Voltar ao anonimato da vidinha enfadonha – talvez seja esse o obstáculo, mesmo conhecendo o pequeníssimo alcance dos escritos aqui produzidos. Não é um lamento, nem uma falsa modéstia, é uma constatação empírica, que tarda em ser racionalizada, derrotando as emoções, essas vadias que me vão deixando nu perante o mundo.
Volto a repetir-me. Nunca mais. É o terceiro título que aponho a este blogue desde que, em 17 de Dezembro de 2005, iniciei a minha viagem quase solitária pela blogosfera – sem compromissos, vínculos, reservas e obediências, senão à minha consciência, manifestação da minha liberdade individual jamais coarctada ou circunscrita a qualquer directório.
Volto a pisar os passos históricos destes quase cinco anos. Todos os títulos tiveram a sua origem em Sophia, sempre fundamentados em estados de espírito, de cuja incansável e persistente indagação sobre a obra poética da minha autora de eleição possibilitou que pressentisse a emergência de uma harmonia perfeita entre aqueles e os poemas escolhidos que foram figurando neste espaço.
Nunca mais, bem poderia ser um título interjectivo como reacção à sentida necessidade de isolamento – uma demanda pela integridade da minha consciência, pela minha liberdade intelectual. Por vezes invejando a coragem de um eremita, outras lastimando um destino que me impuseram como forma de luta perante o fingimento, a desconsideração episódica, o desprezo intermitente, o sórdido jogo de interesses a que nenhuma amizade deveria resistir, sob pena de se transformar numa relação parasitária, aviltante e potencialmente destrutiva: a insistência na sua manutenção – por indolência, apatia ou até pelas grilhetas da mais sórdida subjugação –, vai contribuindo de forma subliminar para a alienação total do eu.
A conclusão pela interjeição, agora realizada, serve-me de argumento quase perfeito para defender que o processo corrosivo de uma convivência insana se transforme num facto irreparável – som estrídulo que me mantém alerta –, permanente, sem remissão, de pura e simples abdicação, de aprovação sem resistência de um método de tortura auto-infligida. Mas, já não são eles, somos nós o nosso inferno, em que a misantropia abusando da sua simplicidade – como é fácil desprezar os outros – se vai hospedando nos interstícios dessa fragilidade, o “nunca mais” absolutiza-se e daí a interrogação de DeLillo que decora, como epígrafe, a parte cimeira deste blogue: até onde? Qual é a chave para encontrar o equilíbrio entre a cedência desmedida inculcadora de infelicidade e o isolamento como busca da felicidade? Perante a ubiquidade do inferno, em nós, nos outros, que caminho escolher? Haverá neste caso um jogo iterativo de escolha do “mal menor” que se renova a cada segundo que passa? Para que fogueira deveremos arremessar os toros de madeira lúbrica à espera de ser lambida? Sustentar o fogo de uma amizade volúvel ou avivar lume cujas labaredas são meras manifestações de uma angústia que advém da terrível agnição dos nossos medos e distorções do espírito, outrora em estado latente, hoje alimentadas pelo rugido do silêncio do isolamento?
Abro livros com uma avidez estonteante para neles encontrar as chaves que permitam descodificar e validar o meu estado de alma, como se um todo emaranhado de caracteres se combinasse no momento exacto em que os meus olhos indagadores cruzam vorazmente esse conjunto estruturado de palavras. Recorro, pois, a Orwell e ao seu extraordinário ensaio “A Prevenção da Literatura” (1946), que parte da discussão da Areopagitica (1644) de Milton, como denúncia de todas as formas de totalitarismo que cerceiam a liberdade de expressão, intelectual e criativa. Volvidas as primeiras páginas, Orwell cita o refrão de um velho hino religioso da América puritana composto em 1873 por Philip P. Bliss (1838-1876), para demonstrar mais adiante o processo em curso da colectivização do eu, que aniquila, acima das outras artes, a literatura enquanto exercício puro dessas liberdades. O hino oitocentista baseou-se na personagem bíblica de Daniel, condenado à cova dos leões por desafiar as ordens iníquas do seu rei, Dario: «Ousa ser um Daniel, / Ousa erguer-te só; / Ousa o teu fito vincar, / Ousa dar-lhe voz.» Orwell acusa: «Para tornar este hino actual, teríamos de iniciar cada verso com a expressão “Não ouses”, já que a nossa época possui como traço peculiar o facto de os rebeldes contra a ordem vigente […] se oporem também à ideia de integridade individual.» (in George Orwell, “A Prevenção da Literatura”, Livros & Cigarros. Lisboa: Antígona, 2010, trad. Paulo Faria, p. 44).
E prossigo com Enrique Vila-Matas quando este regista no seu volúvel caderno do “deve e haver” o regresso insólito de alguém que julgara haver perdido para sempre:
«O amigo que regressou depois de um ano de ausência. Liga cá para casa só para cumprimentar e quase sem ocultar que o faz por puro compromisso. Está mais calculista do que nunca. E eu, seja como for, não faço parte do seu campo de interesses. Creio perceber que não gosta nada de mim. […] Trata-se apenas que me tem um certo afecto, mas não está interessado em mim e é muito possível que, na realidade, eu nunca tenha tido qualquer interesse para ele. Talvez se sinta melhor com gente que o admira, ou talvez melhor com outros, apenas. Não tem importância, digo para comigo. Não vejo por que razão as amizades haveriam de durar mais do que as paixões.»Enrique Vila-Matas, Diário Volúvel, p. 250 [Lisboa: Teorema, Fevereiro de 2010, 287 pp; tradução de Jorge Fallorca; obra original: Dietario Voluble, 2008].
A descoberta das marcas já profundas de uma amizade falhada que se foi alimentando de bons momentos – que, todavia, serviram para toldar equívocos, faltas de respeito e ataques implacáveis à nossa auto-estima –, tal como o fim abrupto de uma paixão, é susceptível de infundir no nosso espírito a inevitabilidade (como um pesadelo que se repete ab aeterno) de uma longa travessia por campos de destruição surrados e sombrios, que só o será – a dura constatação desse malogro – se não assumirmos uma ruptura definitiva, sem meias medidas e dando por esgotado o crédito de sucessivos pedidos de clemência, como o fogo passional que se extinguiu, cujos agravos o tempo se encarregará de dissolver pelos difusos refúgios da memória. Para isso, para evitar esse sofrimento que não se cala com um mero pedido de explicações, oriento a minha vida para um rotundo, definitivo, interjectivo e irreversível: partir, sempre; regressar, na sua significação de retroceder, calcar os caminhos já trilhados, “nunca mais!”
Ah, como era sábio Antonio Machado.
Nota: na imagem acima, reprodução de Daniel na Cova dos Leões, de Peter Paul Rubens (1577-1640), circa 1615, óleo sobre tela.